Humanismo Jurídico.
Gerson Lacerda Pistori é Juiz do Trabalho em Campinas, mestre em Direito Processual Civil pela Unip e Mestrando em Direito do Trabalho Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
Aspectos históricos.
O período Axial e seus desdobramentos (apud Fábio Konder Comparato, A afirmação histórica dos direitos humanos; Ed. Saraiva, 3a edição, São Paulo, pp. 8/36): período axial (de axis, ou Achsenzeit) na proposta de Karl Jasper, representa o eixo histórico da humanidade – entre séculos VIII e II a.C. – no centro do período axial (séculos 600 e 480 a.C.) coexistiram alguns dos maiores doutrinadores de todos os tempos: Zaratustra, na Pérsia; Buda, na Índia; Lao-Tsê e Confúcio, na China; Pitágoras, na Grécia e Dêutero-Isaías em Israel.
O século VIII, de Homero na Grécia, corresponde ao mesmo século de Isaías em Israel (responsável pelo pensamento monoteísta estruturado – até ele havia mais uma monolatria – coexistindo com outras formas de divindades) que serviu como a base futura da teologia do cristianismo.
E Homero (ou homeros, pois seriam vários autores), historiador e poeta canta e conta na Ilíada e na Odisséia, lendas e fatos narrados da Grécia arcaica, do período miceniano (cerca de 2.000 a um pouco menos de 1.000 anos antes de Cristo). Tais contos de heróis gregos relacionam-se com deuses e semi-deuses, e estão ali contidas as crenças e as valorações dadas ao homem, sempre em contato direto com as divindades, que interferem e interagem com suas ações. É importante notar a forma em versos das histórias de Ilíada e Odisséia, que retratam a forma do povo contar o passado – de cor e, porque mais fácil decorar, em versos. Vê-se ali o homem relativizado de importância em seus atos, sempre necessitando de uma autorização superior e imediata. E essas divindades atuam no máximo mediaticamente. Não há algo além do Olimpo. E o saber mitológico da tradição.
Como exemplo temos um fato narrado por Homero na Ilíada (apud Michel Foucault, A Verdade e as Formas Jurídicas; Nau Editora, Rio, 1999): os jogos em homenagem póstuma a Pátrolo: a disputa entre Antíloco e Menelau na corrida de carros – o retorno dos carros passando pelo marco – o desafio de Menelau a Antíloco para jurar com a mão sobre a testa do cavalo a Zeus; a negativa de Antíloco e a questão perante a divindade. O testemunho perante a divindade é a única prova. Testemunho humano? Descartável.
Zaratustra, ou Zoroastro (século VII aC.) é o profeta persa que estabeleceu o culto a um deus do bem, Masda ou Ormuzd, criador do mundo. Concebia-se um deus do mal, Arimã, em luta com o bem, que previa-se vitorioso. Cabia ao homem atuar para acelerar essa vitória de Masda. O símbolo de bem era a luz e o fogo. Havia uma escatologia: a vinda de um messias, Saoshyant, gerado por uma virgem e um juízo final após a derrota de Arimã. O zoroastrismo possuía um sentido ético e social. Havia uma regra de ouro: ‘só é bom aquele que não faz ao outro o que não for bom para si mesmo’. E sob o aspecto criminal o povo persa possuía três crimes importantes: um contra Masda; outro contra o rei e o mal contra o terceiro. O Zoroastrismo é uma religião revelada, diferente das demais que não se baseavam no conhecimento de uma verdade transmitida pela divindade.
Já Deutero-Isaías (século VI aC.), à época da dominação babilônica – com tal império sob influência persa – dispõe de um novo tipo de percepção monoteísta: “a relação religiosa torna-se mais pessoal e o culto menos coletivo ou indireto: a grande inovação é que os indivíduos podem, doravante, entrar em contato direto com Deus, sem necessidade da intermediação sacerdotal ou grupal”(K. Comparato, op. cit. p. 10). Transcrevo Isaías (2:2): “Irão muitas nações e dirão ‘Vinde, e subamos ao monte do Senhor e à casa do Deus de Jacó, para que nos ensine os seus caminhos, e andemos pelas suas veredas’...”; observa-se a força da idéia monoteísta de transcender aos limites nacionais religiosos, preparando-se o caminho do culto universal de Deus (a partir dos dez mandamentos mosaicos). Decorre daí uma extrapolação às outras nações e pessoas, das regras de moral e de cunho ético contidos no Pentateuco. O cristianismo mais tarde irá reciclar e adaptar tais preceitos e conceitos em um plano internacional a partir do critério do amor, sem dúvida, um critério de dimensão humana.
Logo depois, em um lugar muito distante, temos na antiga China o aparecimento de Lao Tse e, logo depois, Confúcio. Lao Tse, precursor do taoísmo, incentiva o homem para a via (Tao é via) da virtude, a razão que governa o mundo. Propõe sua descoberta pela meditação, pelo êxtase. Mas ainda sofre da influência da necessidade de interferência de chefes e monges, com ritos e sacrifícios.
Já Confúcio (ano 550-479 aC.) propõe um animismo tendente ao monoteismo, com seu pensamento filosófico extraído de concepção religiosa exposta em 5 livros sagrados: os King. Segundo John Gilissen (Introdução histórica ao Direito; Fund. C. Gulbenkian, Lisboa, 2001; pp. 110-111) “Confúcio deduziu daqui uma doutrina de sabedoria prática, baseada sobretudo no respeito de numerosas regras de etiqueta. Todos os homens têm o dever de cultivar o seu espírito, de desenvolver em si as virtudes essenciais: a humanidade e a retidão. O papel do soberano consiste em descobrir a lei natural que o Céu pôs no seu coração; para bem governar, ele deve pelo exemplo fazer observar uma exata concordância entre o universo e o homem.” Após Confúcio, um seu seguidor (Mêncio – Meng-Tse – por volta do ano 300 aC.) destacou as duas virtudes de Confúcio (humanidade e retidão) e, a partir delas o sentido da ordem social (li) e o conhecimento do bem e do mal (tche). E é o li, conceito mais próximo do direito, quem estabelece um conjunto de regras de conveniência e de bom comportamento, com base em uma ordem natural: basta respeitar essa ordem natural das coisas para que a harmonia reine entre os homens. Para essa ordem não há leis gerais, mas decorrem do tipo das pessoas que se relacionam: na família, no clã e na sociedade. E os homens não possuem direitos subjetivos, mas deveres: em relação a seus semelhantes, em relação a seus superiores, em relação à sociedade. É necessário buscar sempre o compromisso, a conciliação, a solução negociada que acomode uma e outra parte. O processo é desonroso.
Ainda em outro lugar distante, e quase ao mesmo tempo de Confúcio, na Índia (século V aC.), destacou-se do bramanismo um guerreiro que se tornou monge mendicante chamado Buda (iluminado). Sua pregação chegou a ser anti-castas, era adversário de sacrifícios e afirmou que cada um deveria fazer a sua própria salvação. Afirmou que havia um dharma (dever) para o homem, representado em três fontes: o veda (conhecimento), a tradição e o costume.
Em seguida, ainda no período axial referido, temos o chamado século de Péricles, destacando-se Atenas, mas também várias das cidades-estado gregas. E na Grécia antiga nasce a filosofia, que substitui, pela primeira vez na História, o saber mitológico da tradição, pelo saber lógico da razão (vide Marilena Chauí, Introdução à História da Filosofia; Cia. Das Letras, SP, pp.38/43). O poeta (Homero), o adivinho (mago – pitonisas de Delfos) e o rei-de-justiça (o sábio), de cunho místico (mágico) e secreto passam a ser substituídos pelos filósofos, sofistas (advogados), o exército, a ágora (democracia) e o teatro (drama). Note-se que há relação direta entre a polis (cidade-estado), sua relação externa (navegações) e o avanço tecnológico (a moeda, a escrita alfabética). E a filosofia, multinascida de tantas situações, e que tinha como características a tendência à racionalidade (a razão como critério de verdade), a busca de respostas concludentes, o acatamento às imposições de um pensamento organizado de acordo com certos princípios universais (princípios lógicos), ausência de explicações preestabelecidas, com exigência de investigação aos problemas da natureza e a possibilidade à generalização pelas explicações universais conquistadas, permite que se estabeleçam critérios reais e racionais a serem obedecidos pelos membros da polis: o direito e seu exercício. E o que fizeram de melhor os gregos antigos para o direito (já que o costume era a fonte principal do dia-a-dia) foi o exercício do pensamento para o governo ideal da polis na vida de seu cidadão: Platão escreveu sobre A República, sobre A política e As Leis; Aristóteles escreveu sobre Constituições e Política, além de um sem número de textos que se relacionam com o direito e a justiça; e o termo nomos (lei) surge em Hesíodo (séc. VI aC.) e em Píndaro (séc. V aC.), e este dirá que “a lei é a rainha de todas as coisas” – o nómos (a lei) é o meio de limitar a autoridade e é humano e laico. Principais textos escritos: leis de Drácon e Sólon.
O segundo momento histórico que reputamos importante para o pensamento e para o direito é o período correspondente ao Império Romano e neste, ainda no período axial, revela-se importante a Lei das XII Tábuas (séculoV aC.). Fruto de uma alteração social na recém-instalada república romana, representa uma concessão dos patrícios (detentores do poder econômico e político na cidade e aristocratas descendentes dos etruscos) aos plebeus, que eram livres mas não cidadãos, não participando das assembléias ou das festas religiosas, e aos clientes, agregados das famílias romanas tradicionais, que recebiam delas terras para cultivar e deviam fidelidade aos patrícios que os protegiam.
A lei das XII Tábuas manteve a distinção entre patrícios e plebeus, mas passou a disciplinar e estabelecer qual a ordenação jurídica à qual a plebe estaria subordinada, e não a qual capricho deveriam atender.Tal lei foi parcialmente reconstituída por citações de Cícero e Aulo Gélio, e comentários escritos de Labeo e Gaio, recolhidos no Digesto justinianeu. Trata-se de uma redução escrita de costumes, sob forma de fórmulas lapidares: mas sua interpretação permaneceu secreta e confiada aos pontífices (nítida influência grega). Gillisen (opus cit., p. 87) nos diz que o texto extingue a solidariedade familiar, mas mantém a quase ilimitada autoridade do pater-familia; a igualdade jurídica é reconhecida teoricamente; são proibidas as guerras privadas e instituído um processo penal; a terra, inclusive dos gentios (gentes) se torna alienável e é permitido o testamento. Como exemplo de texto relatado temos a obra de Cícero, Filosofia, 2, 28, 69: “Segundo a lei das XII Tábuas (em caso de divórcio) que ele ordene a sua mulher que leve os seus trastes, e que ela entregue as chaves”.
E já que Cícero foi citado, este autor que viveu no estertor da república romana foi considerado “o maior orador de todos os tempos” e foi cônsul quando Pompeu e César dirigiam Roma, representa um dos pontos altos do direito romano no período clássico: época da expansão e consolidação do poder de Roma no mundo antigo (do século II aC., até século III, inclusive), e que se integra no período do final da república e início do principado. O destaque é o chamado processo formular como fonte de direito instituído pela Lei Aebutia, que estabelece duas fases no processo judicial: in iure e iudicium. José Reinaldo Lima Lopes (O Direito na História, Max Limonad Editor, SP, 2002, p. 48) nos diz: “As fórmulas, que criam remédios (ações, interditos, exceções) para defesa de interesses e situações não previstas no quiritário antigo são criadas pelos éditos dos pretores. A flexibilização do direito civil, em geral, dá-se dentro do processo formular, assim como a entrada da retórica grega e dos princípios de direito natural ou de direito dos povos, em oposição ao direito civil romano tradicional” (grifo meu).
No período clássico destacou-se a presença dos jurisconsultos, aqueles que exerciam a jurisprudência (no direito romano, o conhecimento das regras jurídicas e a sua atuação pelo uso prático), eram homens com muita experiência na prática do direito, que davam consultas jurídicas (responsa), redigiam atos e orientavam as partes nos processos, sem atuarem diretamente nestes. Gilissen nos diz (op. cit. p.91): “Apesar do seu caráter privado, os escritos dos jurisconsultos constituíram uma verdadeira fonte de direito na época clássica, não somente pelos seus comentários de textos legislativos…, mas sobretudo pela maneira de resolver as lacunas de direito”. E é na lacuna do direito positivo clássico romano que vamos encontrar uma preocupação com o homem e sua situação na natureza – neste sentido vale descrever um texto de Gaio, em suas Institutiones, por cerca do ano 160 de nossa era:
Acerca do direito civil e natural. 1.1. Todos os povos que se regem por leis e costumes, utilizam em parte um direito que lhes é próprio, em parte um que é comum a todos os homens; na verdade, aquele direito que o próprio povo institui para si mesmo é-lhe próprio e chama-se direito civil (direito dos cidadãos), como direito próprio da cidade; no entanto aquele que é instituído entre todos os homens pela razão natural, esse é observado em geral entre todos os povos e chama-se direito das gentes, como direito de todas as nações. E assim o povo romano usa um direito que em parte lhe é próprio e em parte comum a todos os homens.
Vale lembrar que o historiador Jacques Le Goff (A Civilização do Ocidente Medieval, I; Editorial Estampa, Lisboa, 1995) destaca que Roma foi inexcedível nas artes conservadoras: a guerra, que possui caráter defensivo, embora tenha aspectos de conquista; o sentido do Estado (Império) que assegurava a estabilidade das instituições; a arquitetura que era a arte da habitação e permanência, e o direito, constituído sobre a infra-estrutura dos precedentes, que precavia o estabelecido contra as inovações.
Esse sentido de preservação levou o Império Romano em sua decadência a ter em Justiniano, homem inculto, que não nascera em Roma, o sistematizador do direito romano. Antes restabeleceu o território do antigo império, promovendo por seus generais a expulsão dos vândalos da África, retomando a Itália dos ostrogodos e parte da Espanha dos visigodos. No oriente tentou conter os persas. Exerceu o poder de forma plena, extinguindo o senado. É da sua responsabilidade a condensação e sistematização dos diversos códigos anteriores (gregoriano, hermogeniano e teodosiano) além de acrescer as constituições mais recentes: o Código de Justiniano ou Corpus Juris Civilis – esse trabalho foi realizado por dez juristas, presididos por Triboniano e foi concluído em três anos – composto pelas Instituições, o Digesto ou Pandectas, o Código e as Novelas. As Instituições (Institutas – tradução: José Cretella Jr.) iniciam-se assim:
Título I – Da Justiça e do Direito: A justiça é a vontade constante e perpétua de dar a cada um o que é seu. Parágrafo primeiro: Jurisprudência é o conhecimento das coisas divinas e humanas, a ciência do justo e do injusto.
Aqui vale uma observação: no período do declínio do Império Romano e das invasões bárbaras, ocorria de há algum tempo um outro fenômeno – a expansão do cristianismo, como um poder de cunho mais espiritual, nos territórios romanos. E o cristianismo, assim como a sociedade romana como um todo, sofreu uma influência muito grande de uma concepção de pensar e agir oriunda da Grécia, qual seja o estoicismo. E Comparato (op. cit., p.p. 16/25) destaca que a filosofia estóica, inicialmente na Grécia colocada por Zenão de Cítio, influenciou o pensamento romano e o pensamento cristão de maneira mais contundente até século III de nossa era, e possibilitou que seus princípios permeassem a Idade Média, com reflexos até os presentes dias. Tal forma de pensar organizou-se em torno de algumas idéias centrais, como a unidade moral do ser humano e a dignidade do homem, considerado filho de Zeus e possuidor, em conseqüência, de direitos inatos e iguais em todas as partes do mundo, apesar das diferenças individuais e grupais. Essa concepção é utilizada no cristianismo de S. Paulo, com base em atos de cunho universalista de Jesus Cristo (como a cura do criado de um centurião romano, etc.); o apóstolo declara: “já não há nem judeu nem grego, nem escravo nem livre, nem homem nem mulher”. Entretanto a concepção cristã da igualdade entre os homens perante Deus se dá no plano celeste e essa concepção perdurou desde os primórdios do cristianismo e por um longo tempo.
Em seguida, vale destacar a figura de Boécio, considerado o último dos romanos e o primeiro dos escolásticos, que no século VI da nossa era afirmou: “diz-se propriamente pessoa a substância individual da natureza racional”. Essa perspectiva aristotélica foi assimilada mais tarde por S. Tomás de Aquino na Summa Theologicae “com expresso recurso aos conceitos de substantia ou hipóstasys” – conforme Comparato (op. cit., p. 20), que ainda traduz do original: “substância, na definição de pessoa, significa substância primária, ou seja, hypóstasys”. E o mesmo Comparato destaca que sobre a concepção medieval de pessoa que se iniciou a elaboração do princípio da igualdade essencial de todo ser humano, não obstante a ocorrência de todas as diferenças individuais ou grupais, de ordem biológica ou cultural. E é essa igualdade de essência da pessoa que forma o núcleo do conceito universal de direitos humanos. Ressalva que tal expressão não é pleonástica, pois se trata de direitos comuns a toda a espécie humana, a todo homem enquanto homem, os quais resultam da sua própria natureza, não sendo meras criações políticas.
Cabe ainda lembrar o pai do direito canônico, João Graciano, que no século XII escreveu texto angular no sentido de que todas as leis contrárias ao direito natural não teriam vigência ou força jurídica, pré-demarcando as bases de um juízo de constitucionalidade avant la lettre (Comparato, op. cit. p. 20).
E é sobre esse espírito que vamos encontrar a Carta Magna de João Sem Terra. Aliás a Inglaterra possui uma singularidade: a estruturação dada pelos plantagenetas (figura de planta constante no brasão da casa normanda de Anjou) ao reino inglês (século XI) manteve o que já havia sido trazido pelo reino carolíngio e os costumes anglo-saxões, centralizando-se sobre o rei o poder e adotando estrutura própria para o direito comum. Utilizam a figura do Jury anglo-saxão, que é a convocação de um grupo de cavalheiros para se reunirem e decidirem problemas jurídicos apresentados em um lugar ligado a eles, sempre sob a coordenação da delegação real; acolhem a figura do sheriff dando-lhe uma postura feudal; colocam a cúria como elemento de teorização e doutrinação ligada ao rei (e aí influenciando os elaboradores dos documentos reais).
Se o ápice do poder plantageneta ocorreu no reinado de Henrique II, foi seu descendente João Sem Terra que veio a receber o estigma de déspota derrotado. Pois foi o excessivo centralismo do poder e o excessivo isolamento desse exercício, a excessiva cobrança de impostos e o rompimento com o poder eclesiástico, que levou à revolta dos barões, com o apoio da Igreja. E aqui surgem dois aspectos para o mesmo fato: em primeiro lugar, os nobres e eclesiásticos que elaboraram a Carta Magna não tinham em mente produzir um documento de garantia de liberdade universal ou de garantia constitucional – seus elaboradores, no início do século XIII, pretendiam uma lista de engajamento feita pelo rei no sentido de respeitar os diversos costumes feudais que ele e seus predecessores diretos vinham violando; no pensamento de seus autores o texto visava um retorno à época de ouro do rei Eduardo, o Confessor. Conforme destaca Maurois, citado por Mário Curtis Giordani ( in História do Mundo Feudal/II, ed. Vozes, Petrópolis, 1987, p. 72) “Os barões não julgavam estar fazendo uma nova lei, exigiam o respeito dos seus antigos privilégios”. O contexto do documento foi, entretanto, formulado por clérigos com conteúdo teórico e teológico de valoração à pessoa humana, ainda que possamos afirmar ironicamente, mais a algumas do que a outras, e isso foi colocado no texto, ainda que ingenuamente, de maneira generalizante. E o mesmo Maurois, apud Giordani (op. cit., p. 70) afirma então: “O que faz a importância da Magna Carta é, pois, mais do que ela suscita do que ela é. E aqui o segundo aspecto: para as gerações seguintes, ela se tornará, no sentido moderno, uma ‘carta das liberdades inglesas’ e cada rei até o século XV deverá jurar, várias vezes no curso do reinado, respeitar esse texto”.
A Magna Carta merece alguns destaques aqui (utilizando-nos de Giordani, já referido): em seu artigo primeiro releva que atende à Igreja na Inglaterra; a seguir cabe observar que faz uma concessão: liberdade a todos os homens livres do reino – e aqui cabe destacar que no século XIII, quando o rei concede a um senhor um privilégio de manter uma corte de justiça, ou a uma cidade o privilégio de escolher por si mesma seus oficiais, esses privilégios chamam-se ‘liberdades’. É de se observar que no texto há referência de manutenção e obtenção de privilégios para a Igreja, condes, barões e outros vassalos diretos, com a preservação do direito antigo para serviço militar, sucessão feudal, casamento, etc. Também há referência para um tipo de classe média rural feudal (cavaleiros que possuem terras de um barão), pois os barões necessitavam desses vassalos para se defenderem do rei João. Há também uma resguarda dos privilégios burgueses de Londres. E é estabelecida uma concessão de âmbito econômico: a unidade das medidas e dos pesos, a par da proibição de impostos ilegais.
Quanto à questão da justiça cabe observar: a devolução de valores extorquidos à base de multas e apropriações de bens indevidamente requisitados; o princípio do julgamento entre pares a fim de evitar-se a violência e a arbitrariedade; multas e confiscos legais são proibidos; a ninguém deve ser negada a justiça; nenhum imposto deve ser exigido sem ser aprovado pelo grande conselho do reino (barões e os lugares-tenentes – como os xeriffs).
Logo após a Carta Magna (1215), nasce Tomás de Aquino (1225/1274). E sua importância se dá no contexto de dois grandes movimentos de seu tempo (Lima Lopes, op. cit. pp. 144/152): “a racionalização pela qual passa a Idade Média das cidades e a disputa de poder político entre a Igreja e o poder secular (Império)”. S. Tomás se encontrava no centro do renascimento do aristotelismo pela influência de dois centros de tradução – Toledo e Palermo. E a partir de Aristóteles traz a confiança na razão, traz uma compreensão e inteligibilidade do real, da natureza e do homem. Do cristianismo traz o pecado e a queda. A razão precisa ser conduzida, daí o método. Temos paralelamente a uma concepção própria da razão, a disputa entre a Igreja e o Império. Para solucionar esse problema, S. Tomás adota uma solução mista, aponta que o direito joga um papel: usa do costume, do direito romano, ou da razão jurídica – e é dessa última que decorre a razão prática, comum a todos os homens, o que permite julgar a razoabilidade das decisões. Ainda para o direito, cabe observar que a reflexão tomista parte dos eventos reais que o circundam e o condicionam, buscando o bem comum; além disso aponta como os poderes positivos se ordenam visando o bem comum. E o bem comum para S. Tomás é um ideal regulador.
A face especial da crise do reino inglês e seu caminhar histórico representa um momento condizente com o período seguinte ao feudalismo: é a substituição da fragmentação do poder em pequenos locais ou cidades para a centralização do poder para regiões maiores, com a formação sucessiva de estados e reinos centralizados, com a arregimentação de súditos de regiões mais amplas e que possuíam interesses e raízes culturais mais próximas. E isso ocorre por decorrência de vários fatores, relativos à crise do feudalismo: Guillermo Fraile (Historia de la Filosofia III, Biblioteca de Autores Cristianos, Madrid, 1991) relaciona a decadência do feudalismo a várias situações e fenômenos, como por exemplo a descoberta da pólvora e a artilharia com poder de destruição de castelos, a cidade a prevalecer sobre o campo, as catedrais sobre as abadias, os mercados sobre os castelos, as universidades sobre as escolas dos monastérios, com as cidades aumentando suas riquezas com o desenvolvimento do comércio, formando a burguesia como nova classe social, baseada na riqueza e no dinheiro, e surgindo, então, o capitalismo que altera a estrutura econômica. Passa a haver o equilíbrio entre os estados, deixando-se de lado a hierarquia espiritual e temporal da Igreja, a partir das próprias dissensões entre reis e papas e entre papas e papas (e posteriormente a reforma protestante). Há também a dissensão no Direito: controvérsias entre os canonistas pontifícios e os juristas (ou legisladores) reais – entre a concepção legada pelo Direito Romano e a oriunda da Política Aristotélica. Isso tudo, além das descobertas tecnológicas marítimas e os descobrimentos, com novas terras, novas culturas, novas riquezas e novas posturas, para dentro e para fora do homem de então.
Jacques Le Goff (A civilização do ocidente medieval, v. II, Editorial Estampa, Lisboa, 1995; pp.132/134) destaca que se a primeira descoberta do homem foi a morte, não a morte abstrata, como passagem para o Além, mas a morte encarnada, a renascença, a partir da individualização do homem, constata a morte como um referencial humanista : “a Idade Média terminal tropeçou no cadáver. Daí em diante – escreve Alberto Tenenti – ‘o lamento da vida cresce com a mesma intensidade que a consciência do valor espiritual da morte física: a muralha da aniquilação corporal, que os cristãos transpõem com dificuldade cada vez maior’”. E tem a imprensa como aliada desse novo momento, repassando aos letrados os textos relativos à mensagem de que o homem é a medida de todas as coisas. Para a idade média o homem era um microcosmos, um resumo, uma imitação do mundo; para Leonardo da Vinci o “homem é o modelo do mundo”; e para aqueles novos tempos, surge algo novo, a contagem do tempo. Na idade média o tempo pertencia a Deus...
Vale a pena lembrar alguns próceres do humanismo nas letras e no direito. Por exemplo, Dante, o último homem medieval e o primeiro homem moderno, autor da Divina Comédia, na qual expõe seu ideal político: o poder do Império (uma águia) convivendo separada e harmonicamente com a Igreja (uma cruz); Petrarca, poeta passional que teve como inspiração Sêneca, Cícero e Santo Agostinho, formou-se um estoicista cristão, com forte tendência à interiorização, o conhecimento de si mesmo. Boccaccio admirava a antiguidade e as belas letras. Denunciou os costumes de seu tempo e possuía uma visão crítica da religião. No âmbito jurídico cabe, ainda, destacar Maquiavel, e sua visão que alguns chamam de oportunismo político, e que outros vêem como um incentivador da transparência do poder e sua prática. Tomás Morus, autor da Utopia e seu mundo ideal, igualitário e feliz, precursor de um socialismo ideal.
Vê-se que também o Direito recebe a influência do desenvolvimento capitalista do mercado, do fim da unidade da cristandade, da conquista da América (e contato com outros ‘mundos’) e a afirmação do Estado nacional – passam a ser novos os critérios de soberania e a relação de sujeição entre soberano e súditos (Lima Lopes, op. cit., pp. 178/180). Surge aos poucos uma nova concepção do direito natural, até então com as bases do pensamento aristotélico-tomista, passando a ter como referência o ambiente individualista e personalista. E a razão é mais instrumental e estratégica e menos prática em função dos fins. Buscam-se mais os meios que os fins até então objetivados. “Os fins são plurais, distintos, individuais, incomunicáveis e em última instância indefiníveis ou irracionais...Não cabe mais perguntar-se pelos fins das coisas: qual a finalidade da criação? Sobre isto é melhor calar. As guerras de religião que haviam assolado a Europa, quando os Estados nacionais e absolutos buscavam definir questões das Igrejas e dogmas deixaram um legado de ceticismo a respeito destes ‘temas últimos’”(Lima Lopes, idem).
E o conceito de individualismo se contrapõe ao homem animal político da tradição aristotélica e ao conceito organicista de sociedade da idade média. A sociedade passa a ser vista como a soma de indivíduos isolados, que se organizam por formas de ‘contrato social’. Ainda Lima Lopes (ibidem) nos diz: “Em oposição aos gêneros medievais, do ius commune, dos comentários de casos, leis, decisões, problemas particulares, o novo estilo é mais exposição sistemática, em princípios, em forma dedutiva”. O novo estilo jurisnaturalista será de base demonstrativa, a ponto de Leibniz (século XVII) escrever sobre o direito natural e o novo método de ensino do direito de modo geométrico.
Como autores juristas desse novo momento estabelecido, cabe destacar um representante da reforma católica e outro da reforma protestante: da escola católica, mais precisamente, de Salamanca (universidade centro de debate teológico, filosófico e jurídico da maior importância nos séculos XVI e XVII), temos Francisco de Vitória: preocupado com a situação do novo mundo e com os habitantes desse novo mundo, em que os espanhóis passam a tratá-los de forma degradante, como servos ou escravos, a ponto do famoso Bispo de Chiapas enviar um relatório de denúncias de maus tratos ao reino, o dominicano Vitória promove lições em que trata da liberdade natural dos índios e a questão da guerra justa. Aponta para situações limites em que o paradigma jurídico de então não encontra resposta; e possui discussões que servem para o futuro direito internacional. O outro jurista da renascença que merece registro referencial é Hugo Grócio: holandês, viveu grande parte de sua vida exilado por perseguições dos calvinistas radicais. Sua linha de pensamento tinha base em Arminius, teólogo protestante que pregava a tolerância de opiniões. Chamado de humanista tolerante, sua obra Mare Liberum tem como base os textos de Francisco de Vitória. Possui um método próximo da estrutura aristotélico-tomista; aceita que o direito é objetivo, uma regra de conduta, e que o direito natural não se confunde com a vontade de Deus e nem com o direito positivo. Afirma: “O que estamos dizendo teria um grau de validade mesmo que concedêssemos aquilo que não pode ser concedido sem a maior impiedade, que não há Deus, ou que os assuntos humanos não O interessam” (apud Lima Lopes, op. cit., p. 190). Essa frase mostra que a partir do século XVII a razão humana está sozinha.
Temos a destacar dois autores ingleses: O primeiro Thomas Hobbes (1588/1679), que viveu de perto no continente a guerra dos trinta anos (1618/1648), e na ilha bretã a 1a Guerra Civil (1642) e a 2a Guerra Civil (1648) contra Carlos I, a luta contra a Irlanda e a Escócia no período da república e o lorde-protetorado de Cromwell. Essa turbulência certamente influenciou os escritos de Hobbes. O direito natural de Hobbes é uma reflexão sobre a natureza humana e, para ele, o que é natural no homem é a defesa de seu próprio interesse e, diante disso, o pacto social é quem cria um modo de convivência possível. E o contrato que torna possível todos os contratos é um contrato de sujeição ao soberano. Para Hobbes o voluntarismo e a autoridade do direito positivo tornam-se exemplares: o Estado assume o direito e não restam direitos aos súditos, senão aqueles reconhecidos pelo soberano. O direito natural é o que se exige para a manutenção do pacto social. (Lima Lopes, op. cit., p. 192).
O segundo inglês escolhido é John Locke (1632/1704), que viveu em um período menos atribulado do que Hobbes, mas viveu de perto a chamada Revolução Gloriosa (1688 – ato revolucionário inglês praticamente sem derramamento de sangue, equivalente à revolução francesa) e é chamado por C. D. MacPherson de pai do individualismo possessivo. Para Locke o direito natural não existe nas coisas, mas no espírito (razão) e, a partir daí, o contrato social deixa de ser externo, mas interno: a razão para a obediência de uma lei na sociedade civil consiste em confiar na razão de seus semelhantes; e o que obriga o direito não é a coação, mas a reta razão. Dá destaque à tolerância e vê o papel do Estado (magistrado) como garantidor da ordem pública, da paz, da coexistência da diversidade e da garantia do direito à própria opinião. O poder do rei está longe de ser ilimitado; deve respeitar a liberdade e as leis fundamentais do bem público. O individualismo de Locke está em função de uma forma de vida social e não para que cesse a vida social (Lima Lopes, op. cit., p.p. 193/196).
As idéias de soberania da nação (soberania do povo), separação dos poderes, preponderância da lei, legalidade nas infrações e nas penas, de direitos do homem, direitos naturais e subjetivos inalienáveis representam a expressão do liberalismo nascente e dominaram desde então a concepção de direito e de estado (Gilissen, op. cit., pp. 366/367). E os principais pensadores desse novo matiz são Montesquieu, Rousseau e Beccaria. E a Declaração de Independência das Treze Colônias Americanas, oriunda de uma sociedade sem estamentos, recebe toda a influência desse novo jusnaturalismo e do enciclopedismo, a par de manter como base a pessoa humana. Da mesma forma a Declaração dos Direitos do Homem francesa. Só que foram esquecidos alguns homens...