Glauco Pereira dos Santos é mestrando em Direitos Difusos e Coletivos pela PUC/SP
“O mundo,
os próprios homens o combatem.
Crianças nunca tranqüilas, seus pedaços
de infância desgarrados rolam
num pantanal de verdes decompostos.”[1]
Nota Inicial
Segundo Karl Larenz, a Filosofia do Direito se ocupa da pretensão de validade normativa, assim como da fundamentação e dos limites dessa pretensão de validade, além de, é claro, da questão de um princípio fornecedor de sentido ao Direito, seja chamado de “justiça” ou idéia de Direito.
Diferentemente da Ciência do Direito, somente ela sempre dirá respeito a problemas jurídicos que não sejam de um ordenamento jurídico específico.
Uma crítica da lei, a partir dos postulados de justiça do Direito vigente não raramente desemboca em propostas de melhoria do quadro legislativo, o que implica em entrar na seara da política do Direito. Aqui, a Ciência do Direito tem que ceder lugar a outras ciências, como as investigações sociais empíricas, a biologia e a medicina, mas a colaboração do jurista é imprescindível para transformar as propostas de reforma legal em normas capazes de aplicação às idéias obtidas acerca dos fins a alcançar. Tais idéias têm que caber no ordenamento jurídico global, estarem em consonância com a Constituição e aos “princípios de valoração a ela subjacentes”. A missão do jurista é preocupar-se com a salvaguarda dos princípios do Estado de Direito.
Desse modo, surge mais uma vez a delimitação da Ciência do Direito, que deve estar balizada pelos princípios fundamentais do ordenamento jurídico vigente, mesmo que ele seja considerado passível de evolução, submetido à mudança histórica e “aberto” ao futuro. A Ciência do Direito, diz Larenz, não pode ultrapassar esse limite, para que não se transforme numa teoria da sociedade, seja de fundamentação jusnaturalística, seja histórica, ou filosófica. A Filosofia do Direito tem para si como necessário o indagar do conteúdo de justiça das regulações e decisões particulares.
No caso das regras relativas a crianças e adolescentes, a Filosofia do Direito se debruçaria sobre esse conteúdo procurando definí-lo como justo ou injusto. Esse trabalho não pretende analisar a matéria sobre esse aspecto, mas antes jogar alguma luz (nos limites estreitos de que ora somos capazes e podemos) a respeito das contribuições filosóficas que orientaram a formação desse ramo do Direito.
Indagamos em que medida determinadas idéias filosóficas inspiraram o Direito da Criança e do Adolescente. Não temos aí uma contradição em termos já que a filosofia é a busca do global e a Ciência do Direito, um recorte sobre as regras sociais presentes na realidade?
Se pensarmos no Direito da Criança e do Adolescente como uma disciplina autônoma, poderíamos perguntar que sentido tem o Direito da Criança e do Adolescente e como queremos justamente encontrá-lo, temos que fazê-lo justamente na Filosofia do Direito. O Direito da Criança e do Adolescente enquanto disciplina jurídica, ou seja, sistema coerente de normas, é de difícil definição, sendo que seu caráter é interdisciplinar – tal como o Direito do Consumidor e o Direito Indígena – possuindo normas materiais processuais, penais, civis, administrativas e até constitucionais – além de beber na psicologia, medicina, assistência social e outros campos do conhecimento - e por que não reconhecer que esse Direito tem uma Filosofia ou pelo menos tem fundamento em idéias filosóficas (de Direito e também clássicas)?
Aliás, a especialidade do Direito da Criança e do Adolescente não chega ao extremo da especialidade utilitarista para a qual as questões acerca da compreensão da totalidade não se relacionam com a particularidade e por não serem aptas ao alcance do resultado almejado, devem ser ignoradas. Isso de nada serve ao Direito, entendido enquanto uma unidade. Isso jamais desembocaria numa teoria da proteção integral, nem tampouco na universalidade da aplicação do Direito da Criança e do Adolescente a todas as crianças, como veremos adiante.
Filosoficamente, a questão da universalidade, no sentido do objetivo do conhecimento científico, é tributária do pensamento filosófico grego socrático e foi desenvolvida por Platão no idealismo e Aristóteles, segundo o qual existe o campo as idéias universais, presentes também nos objetos particulares.
A propósito do humanismo jurídico, escreveu Guido Gonella que o pressuposto da pessoa humana é o homem em sua integralidade e totalidade[2]
É interessante notar que as duas palavras “proteção” e “integral” unidas dão uma dimensão jurídico-filosófica ao Direito da Criança e do Adolescente. Se proteger é tarefa instrumental e compreende regras de defesa dos direitos, de prevenção e de punição (características típicas das normas jurídicas) a integralidade da proteção diz respeito não somente à eficiência fenomenológica das normas, mas à identificação das diversas facetas da personalidade humana em seu início de vida, principalmente de suas fragilidades e ao conhecimento do valor dos bens protegidos. Ora, nada mais filosófico do que o conteúdo axiológico do Direito e será justamente o valor que proporcionará normas de conduta, de acordo com uma certa hierarquia. A ordenação dessa hierarquia só pode, novamente, partir do todo, do integral.
Poderíamos questionar ainda se o Direito é tema primário ou secundário da filosofia clássica. Como ele se faz presente no discurso de Aristóteles, de Rousseau, de Kant e de Hegel? O que importa é que todos esses grandes filósofos dedicaram alguma atenção para o Direito (e alguns deles às crianças) mesmo que não tenham sido juristas e influenciaram os cientistas do Direito e os jusfilósofos, como veremos, em linhas gerais, a seguir.
Grandes Filósofos, Grandes Idéias
O Iluminismo brindou a humanidade abordando a criança na obra de Rousseau, O Emílio. Estando o homem sempre em busca de felicidade, o caminho dessa busca é dado por ele a partir da afirmação de que todo homem é bom por natureza. Esse pressuposto jusnaturalista, faz com que o filósofo francês tenha um discurso voltado à educação da criança, que deveria sempre preservar a característica de bondade inerente a ela, desenvolvendo suas potencialidades naturais e afastando-a das mazelas sociais. Reconhece então na criança um ser diferenciado dos adultos, dotado de desejos e capaz de alcançar a sua própria interioridade através do sentimento, já que está livre das ansiedades em relação ao futuro, que alienam o homem.
Apesar de Rousseau ter influenciado profundamente a construção das idéias de liberdade enquanto direito inalienável (do “todos nascem homens e livres” rousseauniano ao “todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos” da Declaração Universal dos Direitos Humanos) o reconhecimento da peculiaridade de toda a criança em qualquer circunstância e a afirmação de um rol geral e específico de direitos fundamentais é extremamente recente, em termos de história da humanidade.
Assim como em Roma o Direito dos Cidadãos era diferente do jus gentium, cristalizando relações de dominação dos cidadãos livres sobre a maioria composta também pelas crianças (além dos escravos, das mulheres e dos estrangeiros), até o século XX, apenas as crianças com desvio de conduta ou abandonadas tinham um arcabouço legislativo específico (punitivo e segregador), sendo que as demais, incluídas em suas famílias e na sociedade, estavam sob a esfera particular do poder de seus pais e portanto suas relações eram regidas exclusivamente pelo Direito Civil.
Ainda se voltarmos mais um pouco no tempo e perguntarmos a Aristóteles a razão de ser da escravidão em Atenas, ele nos diria que ela está na alma dos escravos que não teriam a capacidade para revelar a finalidade da existência humana, pois cada ser ocupa no universo um lugar que lhe foi escolhido pela Natureza. Na Política, chega a afirmar:
“ (...) a servidão por natureza foi nosso ponto de partida, cuja afirmação essencial era a de que existem alguns que são escravos em todo lugar, e outros que não o são em lugar algum.”[3]
Assim, o filósofo por excelência não trazia ainda uma concepção universal relativa a todos os seres humanos, incluídas as crianças[4].
O Criticismo Filosófico e o Criticismo Jurídico: Kant e Kelsen
Pretendemos agora destacar algumas similitudes entre dois pensadores alemães de diferentes épocas, sendo que um pensou a respeito do conhecimento em termos gerais e outro se esforçou para delimitar um campo específico e estanque para o Direito. Para tanto, vamos pontuar, alguns aspectos do pensamento kantiano e em seguida abordar a visão kelseniana, para depois retornarmos a Kant e enfim identificar outros jusfilósofos tidos como neokantistas.
Como um dos grandes filósofos da modernidade, Kant colocou em predominância o pensamento racional como forma de ordenar o mundo e orientar a busca do desenvolvimento necessário. Os elementos mais importantes são o homem, a liberdade e o individualismo, A razão projetaria o ideal do dever ser. Assim, haveria pressupostos formados por leis do pensamento e da ação a priori que permitiriam o acordo entre os indivíduos para a consecução do objetivo ideal comum.
Kant foi o primeiro pensador a c estudar a capacidade humana de entendimento e questionava a possibilidade de uma "razão pura" independente da experiência, pelo que seu método foi conhecido como criticista. Diz-se que ele colocou a razão em um tribunal para julgar o que pode ser conhecido legitimamente e que tipo de conhecimento não tem fundamento.
No campo do Direito enquanto objeto de reflexão e de ciência, KeIsen desenvolveu essa idéia.
Mas, ainda em Kant, as coisas não são apreendidas tais como elas são. Apenas o mundo aparente pode ser conhecido. O mundo dos fenômenos existe na medida em que aparece para nós e, portanto, de certa forma participamos da sua construção.
Ao abordar o problema da interpretação, Kelsen é tributário de Kant. Pois a norma precisa do intérprete para ser aplicada e entendida (produzida). A liberdade de apreciação (que pode ser maior ou menor) sempre existe para o operador do Direito.
No pensamento kantiano o conhecimento metafísico é impossível e devemos nos omitir dos dogmas (afirmar ou negar) a respeito das realidades metafísicas. Nessa esteira, Kelsen vai negar o Direito Natural como fonte do Direito, ao entender que ele está no campo da metafísica (além da realidade jurídica) e ela não pode ser adotada como critério do conhecimento.
O criticismo jurídico e o positivismo jurídico de Kelsen o levam a concluir que o Direito não pode ser visto como destinado a determinados fins, a exemplo da obtenção do bem comum, a atuação da justiça, a proteção aos direitos civis e políticos e à promoção do bem estar social. Para Kelsen esses topoe seriam normas metajurídicas.
A questão da finalidade, como colocada por De Finance parece vir ao encontro da concepção contemporânea que vem substituindo a categoria da causalidade pela da finalidade, pincipalmente sob a égide da biologia e da microfísica.
De Finance recupera a idéia de que as coisas na natureza têm um fim (assim como teriam no Direito). A causalidade expressa na fórmula Se A, é, B, é, tem o condão da infinitude, mas ao chegar no questionamento da gênese do Universo esbarra numa causa sem causa. Assim, se na observação da natureza, as ciências vêm revendo o princípio da causalidade, o mesmo ocorre nas ciências ditas humanas e nelas - particularmente nas ciências normativas, onde se inclui o Direito – já se vai além do princípio da imputação (expresso na fórmula Se A, é, B deve ser), chegando-se ao princípio da finalidade.
Isso porque, como diz Boaventura de Sousa Santos, o papel da causalidade é mais de ordem pragmática e conforme o ponto de vista mais ou menos utilitarista, pelo qual importa a interferência nas causas. O que importaria seriam as técnicas de domínio sobre a natureza. Já, para o finalismo, existe uma finalidade residente na natureza. Ele enfraquece a causalidade.
Com isso, se recupera também a dimensão ética do Direito. Desde Kant, a Moral e o Direito se distanciaram porque a primeira seria a regulamentação da conduta interna e a segunda a regulamentação da conduta externa.
De outra parte, se Kelsen não admite a metafísica como critério de conhecimento, como pode admitir uma norma a priori, uma norma hipotética fundamental (grundnorm)?
No Direito moderno as doutrinas contratualistas e da autonomia da vontade também podem ser tidas como neokantianas ou criticistas. O consentimento é fundamental, seja decorrente do acordo de vontades entre as partes (o contrato) seja do Direito Positivo (o contrato social).
A crítica que fazemos a essas doutrinas é que elas não partem de um reconhecimento da realidade social de desigualdade entre as pessoas, como por exemplo, a hipossuficiência do consumidor e a vulnerabilidade da criança e assim não chegam ao verdadeiro conteúdo jurídico do princípio da igualdade, enunciado desde Aristóteles.
O ordenamento do universo a partir das estruturas a priori kantianas, por outro lado, não dá conta da explicação de realidades que somente o desenvolvimento ulterior da ciência e das técnicas pode desvendar e que têm mais a ver com a noção de processo do que de ordem: como a transformação da realidade social (Marx), o movimento qualitativo (Einstein), a evolução das espécies (Darwin) e o surgimento de novos direitos e princípios, que abordaremos mais à frente.
Mas não foi apenas Kelsen que retomou no século XX as idéias de Kant. Os neokantianos como Radbruch, Del Vecchio e mesmo entre nós Miguel Reale fizeram a crítica do positivismo jurídico pela redução do Direito ao uso da força coercitiva, buscando um conteúdo de justiça nas normas jurídicas, dando-lhes o valor que Kelsen lhes negava quando dizia que para o cientista do Direito interessava a validade da norma referida a outra norma hierarquicamente superior.
Para os demais criticistas, a recuperação de Kant, se deu pela via do reconhecimento de que a carga valorativa não está nas coisas, no mundo da natureza, mas nos juízos que o homem faz do mundo cognoscível. Assim, os valores só são conhecidos pela interpretação dos objetos e o homem transformaria a realidade de acordo com os valores que adota[5]. As normas jurídicas são, portanto, carregadas dos valores e fins que a sociedade adota.
Para encerrarmos essa parte assinalando um dos grandes méritos de Kant, ele nos deixou a afirmação de que os fatos materiais fornecem explicações que condicionam as idéias humanas, que também têm potencial para reagir sobre a matéria. Mesmo estando no contexto histórico, não há passividade. Há sempre a possibilidade de liberdade. Não sendo o conhecimento reflexo dos objetos externos, o homem está no centro do conhecimento.
Três vezes Hegel
Hegel, filósofo idealista alemão, estudioso de Kant, absolutiza a razão humana não vendo nenhuma possibilidade de se encontrar uma verdade além daquela presente nas pessoas. E mais: coloca na História o único elemento fixo sobre o qual rola a Filosofia. A História condiciona o pensamento humano que é solidário ao legado de tudo o que se pensou anteriormente. Dessa forma, a crítica ao pensamento aristotélico não podia ser feita em termos de seu engano, mas sim em conformidade com o contexto histórico em que ele vivia e os pressupostos disponíveis da racionalidade humana da época. Logo, quando tratamos de questionar a visão de Aristóteles sobre os escravos e não-cidadãos atenienses (incluídas as crianças) não podemos tratar de julgar o filósofo grego (mesmo porque nossa posição sequer é a de filósofo) mas de perceber que foi necessário um processo histórico para que começasse a se falar em direitos das crianças.
Hegel ainda tem outra idéia importante, por nós aproveitada: ele parte do todo, da unidade, e seguindo a sua dialética que estrutura o pensamento em afirmação (tese), negação (antítese) e conclusão (síntese), chega às particularidades e singularidades. Sem essa lógica, talvez não tivéssemos um Direito que reconhece numa classe de sujeitos um destaque diferenciado dos demais, no nosso caso, devido à faixa etária. Explicamos: o homem foi capaz de pensar e propor soluções para as questões mais gerais da humanidade chegando à noção de direitos humanos e dessa noção derivou os direitos especiais que as crianças têm e apenas elas podem ter, dada à peculiaridade de seu desenvolvimento humano.
Outra vez Hegel: o Estado, a sociedade civil e a família são três momentos diferentes da vida ética ou da razão objetiva, estágios da consciência do espírito do mundo sobre si mesmo. O Estado seria o locus da totalidade e da superação dos conflitos, enquanto que a sociedade civil seria a sede dos conflitos, das contradições que buscam a sua resolução com base em critérios de conveniência, da vontade somada de seus componentes, sendo que a família estaria apenas num grau acima do indivíduo, que só toma consciência do espírito do mundo nos parcos limites da razão subjetiva.
Se contrapõe Hegel à concepção criticista kantiana, segundo a qual o conhecimento só pode recair sobre a aparência das coisas e nunca sobre a sua essência. Para Hegel, o mundo do ser e dos fenômenos são indissociáveis, uma vez que o espírito do mundo busca o autoconhecimento dentro da mais íntima realidade.
A relação entre consciência, liberdade e responsabilidade nos aponta um caminho ao nos referir a responsabilidade da família, da sociedade e do Estado na proteção integral das crianças e dos adolescentes.
Ao aumento progressivo de consciência da humanidade corresponderia um aumento da liberdade. Nesse sentido é que se diz que Hegel era idealista porque a consciência da humanidade determinaria as formas de organização da sociedade. O espírito condicionaria o ser.
A crítica que se faz a Hegel, é que de sua concepção dialética da história e da graduação entre os momentos indivíduo, família, sociedade civil e Estado na progressiva busca da consciência do espírito, o Estado pode ser considerado como o locus mais legítimo na realização da felicidade humana e assim, subordinador de todos os interesses individuais, em detrimento da liberdade e dos direitos humanos. Ao invés do homem ser a razão de ser do Estado, o Estado passa a ser a razão de ser do homem. O Estado seria o único realizador do bem comum.
Mais uma vez, ignora-se o papel da sociedade civil na promoção das potencialidades de todos os indivíduos. De outro lado, o Estado como grande realizador do bem comum tem as suas limitações, na medida em que ele pode ser usado como instrumento de grupos que o distanciam das idéias de justiça e de bem comum.
Enfocando a sociedade civil, veremos que nela também se situam as formas de organização espontâneas, as associações de indivíduos que se propõem à realização de determinados fins e a função dessas organizações na promoção e na defesa de direitos de crianças e adolescentes é fundamental para a realização plena do princípio da prioridade absoluta, que abordaremos mais à frente. Sendo a sociedade civil, o foro privilegiado das relações jurídicas e das disputas em torno do poder (econômico e estatal) suas formas de organização, ao visarem a proteção dos direitos de crianças e adolescentes, buscam aliar-se entre si e contrapor-se às forças violadoras desses direitos, que podem se encontrar em indivíduos, na família, em grupos e no próprio Estado. Não raro verificaremos que o maior número de violações e as mais graves serão aquelas cometidas pelo Estado.
O positivismo jurídico não considera com rigor essas questões. Somente a sua crise permitiu que fossem criadas alternativas que recolocaram os princípios como fonte do Direito.
Veremos a seguir, a partir do panorama filosófico abordado acima, que o Direito da Criança e do Adolescente não seria como é hoje sem essas idéias, mas que apenas elas não bastaram para sua constituição enquanto uma disciplina autônoma ou um microssistema.
A Miséria da Filosofia
A Filosofia foi insuficiente para influenciar por si mesma a construção do Direito da Criança e do Adolescente, sendo necessária uma conjuntura internacional e nacional favorável para que uma teoria fosse elaborada e a positivação de direitos subjetivos titularizados por crianças e adolescentes acontecesse.
Devemos ressaltar que a Filosofia não tem como função a transformação da realidade, mas refletir e fornecer as perguntas certas às inquietações humanas. Talvez por isso, Marx (que não deixou de filosofar) tenha afirmado que os filósofos já haviam interpretado suficientemente o mundo e que cabia, então, transformá-lo. Aliás, em que pese ter sido inicialmente um discípulo de Hegel, para Marx, o espírito do mundo hegeliano não passava de um sujeito histórico fictício. A ele interessava muito mais o homem, suas relações intersubjetivas e a formação de identidades coletivas, tendo como base a realidade social e econômica.
Desprezando de certa forma o Direito, como mera figura ideológica a serviço da burguesia, Marx não deixou de dar a sua contribuição para o pensamento jurídico, ao desvelar o modo de funcionamento do capitalismo e verificar a historicidade material das relações humanas.
No campo da proteção de crianças e adolescentes, pessoas frágeis perante as ameaças do mundo adulto, o pensamento jurídico precisou se voltar a uma nova teoria (garantista e teleológica) com bases sólidas na situação concreta da infância e da juventude no mundo e particularmente nos países da periferia do capitalismo.
A teoria, que se chamou entre nós de proteção integral foi gestada com base na realidade social e o substrato filosófico que embasa o pensamento jurídico sobre a matéria não é meramente especulativo, contemplativo e abstrato. Se é certo que não foi um ou mais juristas marxistas que gestaram a teoria, tampouco ela se deu com base na simples interpretação presente no campo das idéias.
O surgimento da noção de direitos humanos adotados universalmente por toda a sociedade, apesar da gestação remontar à Revolução Inglesa, à Independência dos Estados Unidos da América e à Revolução Francesa só teve condições materiais de ganhar hegemonia após a realidade fática trágica da IIª Guerra Mundial.
A evolução rumo à conquista dos direitos sociais, dos direitos difusos e coletivos e outros permitiu a afirmação do Direito da Criança e do Adolescente e os fundamentos filosóficos de uns e desse outro têm muito em comum. Notaremos a influência de mais filósofos na formulação da teoria da proteção integral, em que pese a insuficiência das idéias serem transpostas para o campo normativo imediatamente.
Direitos humanos, Essa é a Resposta
Entendido o pensamento a respeito dos direitos humanos como resultado do humanismo, encontraremos no renascentismo e mesmo em filósofos protestantes a noção inicial de liberdade, após desenvolvida pelos jusnaturalistas, como John Locke. Ao estado de natureza que precederia o estado de sociedade corresponderia uma liberdade fundada na razão de que todo o homem é portador e, portanto, estaria presente na sua plenitude também a igualdade (em termos formais) inclusive de direitos. Mesmo no estado de sociedade não haveria limitação desses direitos considerados naturais, mas sim uma racionalização que permitiria o seu pleno exercício, afastando todas as ameaças.
Ainda para a teoria da proteção integral, notamos uma influência direta de John Locke sobre a criação do Direito Positivo, no que se refere ao instituto do poder familiar, anteriormente denominado pelo Código Civil Brasileiro como pátrio poder. Vejamos as palavras de Locke:
“Pode-se talvez censurar como crítica impertinente, em um discurso desta natureza, inquinar-se de erro palavras e nomes geralmente aceitos no mundo: entretanto, não será talvez fora de propósito apresentar novos termos quando os antigos são suscetíveis de conduzir os homens ao erro, conforme provavelmente se deu com a expressão “pátrio poder”, que parece atribuir totalmente ao pai o poder sobre os filhos, como se a mãe não partilhasse dele (...)”[6]
No Brasil, foram necessários mais de trezentos anos para que a idéia do filósofo fosse amplamente aceita e regrada pela comunidade política a respeito da qual o mesmo filósofo teorizou. Esse exemplo demonstra como o descompasso entre realidade normativa e Filosofia do Direito pode ser imenso.
Assim, o próprio reconhecimento da criança e do adolescente como sujeitos de direitos subjetivos foi fruto de um processo histórico que, em si, refuta a idéia de que os direitos fundamentais são todos sempre os mesmos, imutáveis e frutos da racionalidade humana.
Sem adotar a concepção histórica dos direitos humanos, Ruy Cirne Lima nos ensina que o sujeito da relação jurídica é o homem. A coletividade social há de ser, primariamente, a sociedade universal de todos os homens, que se incluem nela simplesmente como homens. Para tornar-se sujeito de determinada relação basta ao homem, a humanidade. Assim, encontram fundamento os direitos humanos, bastando, para a sua titularidade, ser humano. Nesse aspecto, os direitos de crianças e adolescentes apenas recentemente reconhecidos como direitos especiais pelos ordenamentos jurídicos, encontram reflexo no simples fato de que basta ser criança ou adolescente para ser sujeito dos direitos previstos na Convenção Sobre Os Direitos da Criança. As demais conotações sociais como a nacionalidade, o vínculo político, a solidariedade grupal, os vínculos familiares, se somam à condição humana.
Por isso, cremos que os direitos humanos são o ponto de convergência de todas as correntes filosóficas, sem, contudo renegar-lhes o seu lugar na história.
A relação entre Moral e Direito é de suma importância neste trabalho e no reconhecimento da passagem das exigências de ordem moral para as exigências de ordem jurídica. Com isso não queremos dizer que todas as exigências de ordem moral devam ser convertidas em normas jurídicas ou o serão um dia, mas que, de fato, isso pode ocorrer.
De volta a Locke, o pensador inglês lembra a passagem bíblica “Filhos, obedecei aos pais” (Ef, 6,1). Assim, posteriormente o Direito Positivo criou a figura do pátrio poder, hoje melhor denominada como poder familiar. O dever de obediência dos filhos aos pais também é citado por Kelsen na Teoria Pura do Direito como originalmente de ordem moral, uma vez que a sanção pela desobediência era a desaprovação da família e da sociedade sem, contudo, implicar numa penalidade legal qualquer. Contemporaneamente, o que justifica o exercício do poder familiar está muito mais ligado a um feixe de deveres dos pais para com os filhos, do que o inverso, uma vez que a relação de dependência do mundo da criança para com o adulto impõe um dever de solidariedade e de prover as mais diversas necessidades humanas, de modo a possibilitar o pleno desenvolvimento da pessoa humana desde a infância.
Com isso, também, vemos que a Moral e o Direito sofrem mutações a partir da evolução dos conceitos e das convenções sociais.
Liberdade, justiça, bem comum, igualdade e solidariedade são noções que contribuem para o entendimento do Direito da Criança e do Adolescente, sendo que abordamos e abordaremos a partir de agora algumas delas aqui, sem qualquer pretensão de esgotar matéria tão vasta.
A Contribuição da Noção de Bem Comum
O Bem Comum como bem de todos, conforme estabelecido nos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, tem repercussão óbvia na aplicação do Direito. Assim, a sociedade brasileira organizada tem como uma de suas finalidades o bem comum.
O Direito é um meio para a concretização do bem comum, superando a fase individualista que eivou os pensadores e a legislação até o final do século XIX. No Direito Administrativo, por exemplo, temos a supremacia do interesse público sobre o privado. No Direito da Criança e do Adolescente, temos a finalidade social e as exigências do bem comum, interpretativas do sistema. O mesmo se pode dizer em relação à aplicação de qualquer lei (o bem comum sempre deve ser objeto de consideração). Essa questão tem um sabor especial para os operadores do Direito, notadamente os que resolvem os conflitos e que têm o dever de buscar a Justiça nas suas decisões, como os juízes, mas também orienta o legislador e o administrador público.
Na história do Direito, o homem, enquanto indivíduo, deixou de ser o seu único fim. O Direito passou a promover a Justiça Social e o Bem Comum. Isso porque a realidade demonstrou que as teses exacerbadamente individualistas justificaram violações de direitos fundamentais sociais, difusos e coletivos, notadamente pelo viés economicista.
As exigências do bem comum significam o atendimento das necessidades coletivas, servindo para o maior reconhecimento e regulação dos serviços públicos e mesmo para intervenção do Estado na economia e na sociedade. Intervém, por exemplo, o Estado nas relações de consumo para proteger os consumidores e atua em áreas estratégicas para o desenvolvimento de um país, justamente com o objetivo de promover o bem comum.
O bem comum como soma dos interesses particulares ordenados em vista de um fim imanente, tal como quer Enrique Luño Peña, com fundamento no pensamento aristotélico segundo o qual o Universo, tal como um exército teria uma ordem intrínseca e um bem universal, absoluto e imutável, com o qual a gravitação se dirige, é comparável ao bem especial, que é o objetivo a que se propõe o chefe do exército.
Tomando esse exemplo, poderíamos afirmar que o ator preponderante é aquele que detém o controle da finalidade da ordem (no exército, seria o comandante a quem os soldados se submetem sob o título de uma ordem comum). Temos, então, uma idéia de subordinação inquestionável à autoridade arbitrária estranha ao corpo dos que a ela se sujeitam. Onde está aí o Direito ou a forma jurídica como garantidora da igualdade e da liberdade?
Somente o consentimento ou a conjugação ativa dos indivíduos na formulação das ordens (seja indiretamente por meio dos mecanismos da democracia representativa, seja diretamente pela democracia participativa) previstos nos Estados Democráticos de Direito baseados na soberania popular podem garantir os princípios mencionados.
Podemos dizer que a essência imutável do Direito como questionada quando tratamos dos direitos humanos o reduz a um conteúdo axiológico do qual certamente não prescinde a humanidade, contudo o pensamento jusfilosófico e o processo histórico somaram a essa essência outros valores não reconhecidos inicialmente, sem os quais, igualmente, o Direito não cumpre a sua finalidade.
Contra a idéia de imutabilidade se insurgiram também uma certa estirpe de juspositivistas afirmando que o Direito que importa é o Direito de cada Estado Nação.
Na análise da positivação do Direito da Criança e do Adolescente no caso brasileiro essa questão ficará bem clara.
A Formação do Direito da Criança e do Adolescente no Brasil - Constitucionalização
Passaremos ao largo do questionamento sobre a existência de um caráter imutável no Direito que permita sua conceituação ou se cada Estado nacional possui o seu, sem perder, contudo, de vista essa questão, uma vez que em última instância o Direito Positivo é plural e diferenciado no espaço e na história e que, no caso brasileiro, a positivação do Direito da Criança e do Adolescente foi cercada de ações e reflexões que o tomaram deveras especial.
Sem chegar ao extremo de Max Scheler que afirma que o conteúdo da norma é inexplicável, somente a transformação de um objeto em norma é que pode ser descrito[7], nos parece cabível aqui fazer uma breve descrição do processo de elaboração da Constituição Brasileira, no que se refere aos direitos das crianças.
No contexto histórico da redemocratização do Estado Brasileiro, um movimento social de diversos segmentos da sociedade se fez em torno de um novo Direito, nascente das tensões e reivindicações da sociedade civil. Seu objetivo era a inscrição de direitos subjetivos de crianças e adolescentes na futura Constituição. Unindo entidades tão díspares como a Pastoral do Menor da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, a Comissão Nacional Criança e Constituinte do Governo Brasileiro, a Frente Nacional de Defesa dos Direitos das Crianças e dos Adolescentes e o Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua, com o apoio do Fundo Nacional das Nações Unidas para a Criança -UNICEF, os meios de comunicação foram tomados por mensagens de conscientização, candidatos e futuros constituintes firmaram compromissos, reuniões de milhares de crianças na frente do Congresso Nacional foram realizadas, abaixo-assinados entregues com mais de um milhão de assinaturas de jovens reivindicando seus direitos constitucionais. No curso do processo de elaboração da Constituição, duas emendas de iniciativa popular foram apresentadas e seus textos foram adaptados, redundando na redação dos artigos 226, 227, 228 e 229 da Constituição da República, que nada mais foi do que a antecipação da positivação no ordenamento jurídico nacional dos princípios em discussão pela comunidade internacional que elaborava a Convenção Sobre os Direitos da Criança, aprovada pela Assembléia Geral das Nações Unidas um ano depois da promulgação da Carta Magna brasileira, em 20 de novembro de 1989.
Excetuando a nota diferenciadora da construção do Direito da Criança e do Adolescente no Brasil, que representou, graças à forte mobilização nacional, um adiantamento em relação ao Direito Internacional, observando a ordem cronológica da primeira Declaração dos Direitos da Criança, aprovada em Genebra em 1924 e chegando à Convenção Sobre os Direitos da Criança, de 1989 e ao Estatuto da Criança e do Adolescente brasileiro de 1990, temos uma demonstração daquilo que Del Vecchio, numa perspectiva formalista, chamou de "formação e progressivo desenvolvimento de um direito internacional, o qual, por sua vez, exercita depois uma grande eficácia sobre o desenvolvimento do direito interno de cada povo”[8].Se para Del Vecchio esse processo se deve ao desenvolvimento intrínseco da consciência humana, que cada vez mais se eleva ao universal e cada vez mais reconhece a igual personalidade de todos os homens, para nós, vemos que isso não se dá sem a luta pelo Direito, não apenas no sentido da contraposição de diferentes concepções que refletem diferentes visões de mundo, mas também nas disputas concretas ligadas à forma de produção da sociedade e à correlação dos interesses políticos. Desse processo, parece derivar o aumento da consciência da humanidade.
Da mesma maneira, atribuímos a teoria da irrevogabilidade dos direitos fundamentais e da proibição de retrocesso no reconhecimento dos direitos sociais ao desenvolvimento da civilização.
Retomando a matéria da importância do processo histórico e a atuação das forças humanas no seu direcionamento, vemos que sem a ampla mobilização em torno dos chamados direitos das crianças muito provavelmente não teríamos os artigos citados da Constituição Brasileira e nem o diploma legal específico protetivo: o Estatuto da Criança e do Adolescente.
A sociedade civil esteve, portanto, naquele momento histórico de formação da norma, que por sua vez determinou a sua responsabilidade no próprio conteúdo, isto é, no comando da norma (artigo 227 da Constituição Federal) ao lado da responsabilidade familiar e estatal em garantir com prioridade absoluta os direitos das crianças e dos adolescentes.
Os Princípios Informadores do Direito da Criança e do Adolescente
A mesma crítica que fizemos a Hegel, fazemos ao positivismo jurídico, pois ele realizou o distanciamento entre a Ética e o Direito e identificou Direito com Estado, olvidando o papel da sociedade civil. Contudo, a opção do legislador pátrio de reconhecer um princípio da prioridade absoluta é sinal de que em face da realidade da limitação de recursos materiais, impõe-se a priorização dos segmentos sociais mais vulneráveis e fragilizados do contingente humano, invertendo o fluxo dos favores aos grupos mais privilegiados e proprietários de força pressionadora sobre os rumos políticos, devido ao seu poder econômico.
O já saudoso jusfilósofo italiano Norberto Bobbio defendia que acima da política deveria haver a ética, a determinar as fronteiras de decisões e mesmo as ações daqueles que se orientam pela conquista do poder estatal. Cumprindo esse desiderato, o princípio da prioridade absoluta é uma exigência ética que se traduz na priorização do atendimento, da promoção e da defesa das crianças e dos adolescentes.
Também a respeito dos princípios, Bobbio afirmava que eles historicamente sofreram uma expansão de caráter lógico e outra de caráter axiológico, que no caso do Direito da Criança e do Adolescente parece ser paralela ao outro fenômeno também identificado por Bobbio, o da expansão dos sujeitos de direito e das relações jurídicas.
O princípio da prioridade absoluta positivou um valor. Contudo, há outros valores positivados no ordenamento jurídico e também no Direito da Criança e do Adolescente. Se no plano abstrato os princípios não são contraditórios, na sua modulação aos casos concretos podem ocorrer antinomias. Assim, os princípios, ilimitados na sua afirmação encontram complementos e restrições na sua intensidade de modulação. Eles não têm pretensão de exclusividade.
Contudo, como observa Martha de Toledo Machado, os princípios constitucionais do Direito da Criança e do Adolescente carecem de maior debate doutrinário[9]. Na Constituição Brasileira não raro os doutrinadores identificam além do princípio da prioridade absoluta, o princípio da proteção integral, e o princípio do respeito à condição peculiar de pessoa em desenvolvimento. Cabe salientar que nenhum desses princípios está expressamente denominado com esse vocábulo na Constituição ou na lei ordinária, mas isso não tem importância, pois os princípios sempre são veiculados em normas como concretização de valores.
Tais princípios de harmonizam. O primeiro é uma criação do Direito Brasileiro e os outros dois fluem do Direito Internacional dos Direitos Humanos. Mas a autora acima mencionada ainda identifica outros princípios como o da igualdade de crianças e adolescentes e da participação popular na defesa dos direitos de crianças e adolescentes, o que reforça a nossa tese de que a participação da sociedade civil cobrando e propondo à Assembléia Nacional Constituinte a normatização do Direito da Criança e do Adolescente defluiu em princípio específico informador.
Detectando os princípios do Direito da Criança e do Adolescente, nos ocuparemos da sua observância na realidade no que atine aos aspectos da eficácia e da eficiência e as possíveis causas geradoras, concluindo o nosso estudo.
A Eficácia e a Eficiência do Direito da Criança e do Adolescente
"As sociedades são as imagens que têm de si vistas nos espelhos que constroem para reproduzir as identificações dominantes num dado momento histórico" afirma Boaventura de Sousa Santos[10].
Os espelhos das sociedades são instituições, normatividades, ideologias que estabelecem hierarquias entre campos infinitamente vastos de práticas sociais. A ciência, o Direito, a educação, a informação, a religião e a tradição estão entre os muitos espelhos das sociedades contemporâneas. As correspondências e hierarquias permitem as reiteradas identificações que criam as identidades. O que os espelhos refletem é o que as sociedades são. Para além e por trás deles não há nada.
Os espelhos sociais, enquanto processos sociais, têm vida própria e quanto maior é o seu uso (ou desuso, diríamos), mais autonomia eles adquirem, deixando, portanto, de refletir a imagem da sociedade, mas sendo o que "gostariam" que a sociedade fosse. Por outro lado, a sociedade também não entende o que o espelho pretende que ela veja refletido nele. É como se o espelho passasse a ser estátua, diante da qual a sociedade só pode imaginar como foi ou como nunca foi. Não vê uma imagem confiável do que imagina ser.
Quando isso acontece a sociedade entra na "crise da consciência especular".
A ciência e o Direito passaram de espelhos a estátuas como resultado do paradigma da modernidade ocidental e do capitalismo. Tal momento é de desequilíbrio no pedestal. É o momento em que o olhar imperial da estátua se volta aos seus pés. A análise do autor não é iconoclasta , mas busca a reinvenção (que ainda ele diz estar só no começo) dos espelhos, para ultrapassar a crise de consciência especular.
Boaventura afirma que a sociedade está a entrar em um período de transição paradigmática. O paradigma sócio-cultural da modernidade ruirá antes do fim do capitalismo, mas é impossível nomear com exatidão a situação atual. Talvez por isso, a designação "pós-moderno" se tomou tão usual.O impacto específico dessa transição paradigmática sobre o capitalismo não é passível de ser predeterminada.
Essa análise é útil para retratar a atual situação da eficácia do Direito da Criança e do Adolescente na sociedade brasileira, ainda marcada por desigualdades e iniqüidades tremendas. A positivação de regras protetivas de crianças e adolescentes ainda não alcançou um de seus objetivos - que também está inscrito na Constituição Brasileira - de erradicar a pobreza.
Chega a ser angustiante a forma como os movimentos sociais de defesa dos direitos da criança e do adolescente contam os anos da promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente, como se estivessem a contar os segundos de uma bomba relógio que todos sabem que irá estourar, mas não quando. Isso porque os direitos fundamentais especiais consagrados (à vida e à saúde, à liberdade, ao respeito e à dignidade, à convivência familiar e comunitária, à educação, à cultura, ao esporte e ao lazer , à profissionalização e proteção no trabalho e à assistência social) ainda não são exercidos por milhões de pequenas pessoas.
O próprio Kelsen dizia que um dos critérios de validade das normas era a verificação de sua eficácia. Com isso não queremos sugerir, nem de longe, que o Estatuto da Criança e do Adolescente perdeu a sua validade, até mesmo porque ele não deixou de ser aplicado pelos Tribunais e pelas autoridades administrativas, mas acreditamos que ele ainda está - tal como a criança que deveria por ele ser protegida - em situação de risco e também acreditamos que não é por outro motivo que seus dispositivos garantistas no âmbito penal são tão freqüentemente atacados na mídia e por políticos.
A que se deve essa eficácia incompleta e ineficiência de normas válidas do sistema? Em primeiro lugar, nos parece que a mobilização que engendrou a inserção dos direitos da criança e do adolescente no ordenamento jurídico nacional não se manteve com a mesma intensidade para cobrar dos poderes republicanos a sua consecução. Em segundo lugar, a consciência da necessidade de um tratamento socioeducativo para todas as crianças e não somente aquelas em famílias estruturadas tradicionalmente não se espraiou na sociedade civil, assim como a consciência de que de fato elas são portadoras de direitos. Em terceiro lugar, as forças presentes na sociedade que fazem chegar suas demandas ao poder estatal com mais capacidade de pressão são aquelas ligadas à manutenção de ganhos privados pela garantia da livre circulação de mercadorias e que acabam por condicionar os gastos públicos, impedindo os investimentos necessários nas políticas sociais.Em quarto lugar, os operadores do Direito ainda não se imbuíram do espírito do novo Direito da Criança e do Adolescente[11].
Isso nos traz ao encerramento desse trabalho, no qual procuramos pincelar e não analisar cabalmente as possibilidades de reflexões sobre o Direito da Criança e do Adolescente no campo filosófico, pensando a relação entre Direito, Estado e sociedade civil na proteção dos direitos subjetivos.
Por ser uma expressão da negação dos interesses predominantes na sociedade, o Direito da Criança e do Adolescente e mais precisamente o direito à assistência social, entendido como o ter para si o suprimento das necessidades básicas, representa um objeto de disputa dos vulneráveis e seus defensores contra os que adotam uma concepção que secundariza o Direito e o sujeita aos condicionamentos de base econômica. A capacidade de reação do Direito sobre essa base e de exercer uma função ética, no sentido de educar a opinião pública é que está em jogo. A concessão arrancada por esse Direito em um momento de reconfiguração hegemônica da sociedade[12], em que foram atendidas as exigências populares (ao lado de outros, como o Direito da Seguridade Social e o Direito do Trabalho da Constituição de 1988, antes das reformas) em que pese não ser estruturante da sociedade capitalista, como as normas referentes à propriedade e ao trabalho, não precisou ser substancialmente alterada, mas, perversamente vem sendo simplesmente ignorada pelos operadores do Direito. Uma mudança nesse quadro parece que dependerá do nível de exigência da sociedade civil, da sensibilização e da vontade política das autoridades e mesmo das diligências da comunidade internacional, com vistas ao avanço universal da sociedade.
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[1] Fernando Py, “Canto Negro” (1966), in Revista Civilização Brasileira nºs 9 e 10, Rio de Janeiro, Editora Civilização Brasileira, 1966, p. 135.
[2] Guido GoneIla, La Persona nella Filosofia deI Diritto, tradução de Jacy de Souza Mendonça, mimeo, p. 2.
[3] Aristóteles, “Política”. Tradução de Therezinha Monteiro Deutsch e Baby Abrão. São Paulo. Nova Cultural. 1999, p. 152.
[4] Não podemos nos esquecer que na Grécia Antiga, v.g., os jovens eram utilizados pelos cidadãos como objeto de favores sexuais.
[5] Eduardo Novoa Monreal, O Direito como Obstáculo à Transformação Social, Tradução de Gérson Pereira dos Santos, Porto Alegre, Sergio Antonio Fabris Editor, 1988, p. 199.
[6] John Locke, “Segundo Tratado sobre o Governo”. Tradução de E. Jacy Monteiro. São Paulo. Abril Cultura. 1983. p. 55.
[7] Max ScheIer, Etica, p.232.
[8] Giorgio DeI Vecchio, Los Supuestos Filosóficos de ia Nocion dei Derecho, Tradução de Mariano Castanõ, Madri, 1908, p. 114.[
[9] Martha de Toledo Machado, A Proteção Constitucional de Crianças e Adolescentes e os Direitos Humanos, São Paulo, Manole, 2003, p, 410.
[10] Boaventura de Sousa Santos, A Crítica da Razão Indolente - Contra O Desperdício da Experiência, São Paulo, Cortez Edítora, 2000, p. 47.
[11] Exemplo trivial disso está que ainda hoje juízes de primeira instância desconhecem o Estatuto da Criança e do Adolescente, lei ordinária que deveriam aplicar e agem como se possuíssem os mesmos poderes conferidos pelo revogado Código de Menores, como quando determinam ao Executivo Municipal que peça autorização para a transferência de crianças entre abrigos, quando a competência para a medida de abrigamento e portanto para qualquer modificação da medida de proteção e pelo Estatuto, dos Conselhos Tutelares, órgão composto por membros da comunidade eleitos para zelar pelos direitos das crinças e adolescentes.
[12] Adotamos o conceito gramsciano de hegemonia.