Ensaio sobre o Direito Natural

 


Alexis Couto de Brito. Mestre em Direito Penal pela PUC/SP. Doutor em Direito Penal pela USP/SP. Pós-graduado pela Universidade de Castilla La-Mancha de Toledo/Espanha. Professor de Direito Penal e Processual Penal da Universidade Mackenzie/SP. 

 


 

INTRODUÇÃO

 

A exigência do ser humano em explicar o universo que o cerca se transfere em igual proporção ao mundo jurídico. Nesta corrida intelectual várias são as correntes, e não menos sortidas as conclusões que atingimos. Todavia, alguns se distanciaram das origens do Direito, de seu inerente conteúdo axiológico e, principalmente, do fato de que sua aplicação é direcionada aos homens. Embora muitos se norteiem por estes princípios, infelizmente por vezes são necessárias catástrofes mundiais que despertem os indolentes aos reais objetivos da vida, transcendentes às conquistas materiais e aos interesses egoísticos.

A discussão sobre o Direito Natural como proposta perene de orientação nunca saiu do cenário, e sempre recebe oxigenação em momentos de graves comoções nacionais e internacionais. Em um planeta tomado pelos ideais de globalização, cada vez mais se discutem causas como a soberania dos Estado e a criação de “tribunais da humanidade”, pregando-se pela elaboração de um direito cosmopolita, universal, primando pela dignidade humana.

Mas isto pode ser alcançado? Alguns céticos duvidam. Então, o ponto de partida é a análise do conhecimento, tornando-se indispensável conhecer sua formação e o que, e de que forma, podemos conhecer.

Diante das conclusões gnosiológicas passamos a considerações acerca dos seres e, por exigência, aos valores que se mesclam em sua essência, principalmente em suas condutas. Na continuidade o destaque pertence ao centro das atenções do Direito, o homem, formador da sociedade.

Neste âmbito deve ser tratado o agrupamento social, a dita sociedade de homens, bem como a presença estatal encarregada de conduzi-los a determinado objetivo, podendo ser este nomeado de fim ou bem comum, e alguns dos instrumentos de que se prestam, tendo relevante sobressalto a legislação positivada e sua capacidade coatora.

Para que todos estes conceitos sejam mais bem retratados, antes se faz necessário um breve apanhado histórico, resumindo os pensamentos de filósofos marcantes, destacando-se o mérito de suas doutrinas nos contextos e épocas em que foram apresentados e a fim de transportá-los aos princípios atuais de forma a situar o nível em que se encontra o jusnaturalismo.

Reconhecendo a amplitude do assunto escolhido, preterindo maior amplitude acerca de aspectos de apreço como o livre arbítrio, a pessoa, os direitos subjetivos e a moral, dentre outros, que por si demandariam uma monografia autônoma, desde protestamos pela simples colaboração das linhas abaixo como um despertar à reflexão acerca de importantes elementos de caráter filosóficos, sem jamais possuir a pretensão de esgotar o tema.

 

1.       POSIÇÕES HISTÓRICAS

 

De forma explicitamente sucinta e somada à arbitrariedade da escolha, propomos a seguir uma explanação de alguns pensamentos considerados importantes e que influenciaram e ainda influenciam as doutrinas do Direito Natural, seja corroborando suas premissas ou seja desmoronando seus cânones. Se é certo que nem todas se coadunam, é certo que suas investigações colaboraram para o entendimento de alguns termos comonatureza”, “valor”, “direito” e “justiça dentre outros, alvos polêmicos dos juristas quando associados ao conteúdo de suas pesquisas.

Mais uma vez, em que pese o talento e a cultura de outros autores, no interesse do tema foram escolhidos aqueles que proporcionam um desenrolar concatenado ao desenvolvimento das idéias principais.

 

1.1.             ARISTÓTELES (384 – 322 a.C.)

 

Na visão aristotélica, tudo aquilo que existe encontra um fim definido que lhe é próprio. Exatamente esta é a razão da sociedade encontrar seus fundamentos na natureza, tendo surgido como caminho necessário a ser potencializado pelo ser humano, como ser gregário que é. Avança-se de um estágio primário a outro mais complexamente estruturado, racionalizando-se as forças sociais em direção a um ideal de vida, ideal inerente ao ser. Este ideal é a felicidade, e como conseqüência da natureza humana, tem-se que uma vida feliz se perfaz no meio social[i].

Ainda analisando o ser, ARISTÓTELES encontra fundamental importância em suas virtudes, e encara a justiça como a virtude total ou perfeita, contendo em si todas as outras virtudes justamente por ser a medida eqüidistante entre o demasiado e o pouco, e a injustiça como o vício integral[ii]. Aparece assim de forma real e não somente racional o pensamento aristotélico, enfatizando a necessidade do atuar humano de forma virtuosa, o atuar de foram justa.

Preocupando-se ainda com a atuação do homem dentro da sociedade, da polis[iii], em suaÉtica” avalia a conduta guiada de forma dupla, em função da gênese interna, ou pela exteriorização adotada pelo meio de vivência: a justiça política é em parte natural e em parte legal. A parte natural é aquela que tem a mesma força em todos os lugares e não existe por pensarem os homens deste ou daquele modo. A legal é o que de início pode ser determinado indiferentemente, mas deixa de sê-lo depois que foi estabelecido[iv]. O que se percebe é uma nítida separação entre ambos, o que BOBBIO interpretou como uma delimitação aristotélica da matéria tratada pelos dois ramos: o direito natural corresponderia aos comportamentos bons ou maus em si mesmos, e o direito positivo teria seu início a partir deste ponto onde cessa o direito natural, ou seja, regulando as ações a ele indiferentes[v]. Assim reconhece a lei natural e a lei escrita, ou legal, como chamou.

A lei positiva tem sua origem na vontade do legislador, de acordo com o tempo e o lugar. A lei natural tem sua essência no justo, na natureza, sendo, portanto, imutável, independentemente da lei positiva que a retrate[vi].

Mas se por um lado ARISTÓTELES evidenciou de certa forma uma separação entre os conceitos de direito, por outro lado não ignorava que na aplicação de um sistema de leis podem surgir situações em que da generalidade e da rigidez da norma legal redunde um gravame individual. A equidade seria então aplicada para retificar a deficiência da generalidade frente à particularidade, e assim fazer-se justiça ao caso único[vii]. A lei positiva pode ser imperfeita, e não se aplicar a todas as hipóteses, exigindo sua adequação ao caso concreto em função da justiça natural[viii].

O estagirita - por ter nascido em Estagira - não teria declarado expressamente a solução diante da colisão entre a norma de direito natural e a norma de direito positivo. Mesmo admitindo a possibilidade de uma leiinjusta não se manifesta pela sua inobservância, tanto pelo judiciário como pelo povo[ix]. Mas muitos, como BOBBIO, que interpretam uma clara inclinação de ARISTÓTELES à supremacia das leis naturais quando em conflito com as leis escritas, e uma amostra desta inclinação é a revelação da passagem de Antígona, que para enterrar o irmão morto invoca as leis do coração, desobedecendo as leis escritas e contrariando a Creonte[x].

 

1.2.             SANTO TOMÁS DE AQUINO (1227-1274)

 

Em um momento de redescoberta e reinterpretação dos escritos aristotélicos, do catolicismo desponta um dos mais profundos estudiosos do Direito Natural. Sua doutrina ainda hoje conserva extrema atualidade e coerência, e serve de influência inegável às correntes modernas.

Em uma obra incomensurável e de grande alcance filosófico, o foco incide sobre “a verdade”. Relacionando seu conceito de verdade e harmonizando-o com a concepção realista do mundo, assevera que a verdade lógica não está somente nas coisas ou na razão, mas sim na adequação entre a coisa e a razão.

Em sua Summa Theologica, dentre outros assuntos, SANTO TOMAS discorre acerca das espécies de lei, que classificou em quatro: a eterna (a razão divina que a tudo dirige), a natural (guiada pela razão humana), a divina (revelada pelas sagradas escrituras) e a humana (escrita pelo tutor da comunidade, ou seja, o direito positivo).

Dentro de suas limitações, o homem, através da faculdade da razão da qual foi dotado por Deus, pode ter uma noção parcial da lei eterna e de sua verdade, e a isto SANTO TOMAS definiu como o Direito Natural[xi]. Ele (o homem) é capaz de assimilar alguns princípios da lei eterna, de caráter geral, onde fundamentalmente o bem deve ser praticado, e o mal evitado. Unindo-se a razão aos demais aspectos físicos e psicológicos dos seres humanos, estes são guiados à consecução do bem[xii]. Com o advento do cristianismo e a importância de Deus nos pensamentos filosóficos, não conteriam outra fórmula os escritos do Doctor Angelicus. A lei natural identifica-se com a lei de Deus, pois assim como estabeleceu as leis que regulam o movimento dos corpos, igualmente estabeleceu as leis que regulam a conduta do homem[xiii].

Este excepcional filósofo, ainda preocupando-se com a verdade, trata do confronto entre a verdade natural (racional) e a verdade sobrenatural (de ), dissipando-o e unificando as verdades em uma figura: Deus. Portanto, tais verdades se identificariam em sua origem - a divina - e por isso não podem se contradizer. Estando em harmonia, a verdade da razão e a verdade da , embora não se confundam, também não se contradizem, e a sobrenatural não exclui a natural, senão a fortalece e fundamenta. Interessante ressaltar que SANTO TOMAS concede à razão humana a capacidade autônoma para o conhecimento da verdade, independentemente da revelação divina, exaltando o valor da pessoa humana em sua plena integridade natural.

Para este pensador, o fim do homem é o aperfeiçoamento de sua natureza. Analisando a natureza humana, conclui que o homem é um animal social e, portanto, forçado a viver em sociedade com os outros homens. A primeira forma da sociedade humana é a família, de que depende a conservação do gênero humano; a segunda forma é o Estado, de que depende o bem comum dos indivíduos. Sendo que apenas o indivíduo tem realidade substancial e transcendente, compreende-se que o indivíduo não é um meio para o Estado, mas este um meio para o indivíduo. Segundo AQUINO, o Estado não tem apenas função repressiva e econômica, mas também organizadora e espiritual. Embora o Estado seja completo em seu gênero fica, porém, subordinado, em tudo quanto diz respeito à religião e à moral, à Igreja, que tem como escopo o bem eterno das almas, ao passo que o estado tem apenas como escopo o bem temporal dos indivíduos. E este perfeccionismo colimado pela sua natureza somente seria encontrado em Deus[xiv].

 

1.3.             HOBBES (1588-1679)

 

É importante que dediquemos algumas linhas a este autor. Seus pensamentos proporcionaram uma severa depreciação e enorme repulsa ao que por ele foi convencionado por estado natural, o que afetou diretamente o Direito Natural. Em suas linhas, encontram-se motivos alavancadores rumo ao positivismo e ao despotismo, mostrando-se como o mais radical dos chamados contratualistas. Como bem notado por BOBBIO, pode até revelar-se um naturalista no ponto de partida, mas é certamente um positivista no ponto de chegada[xv].

Nos primeiros séculos da Idade Moderna tem início a consagração da ruptura entre o direito e a teologia, campo fertilizado por TOMAS DE AQUINO, e florescem doutrinas enaltecedoras do Estado absolutistaraison d’etat – reivindicando um Estado forte, mesmo que alcançado através da opressão e manipulação dos súditos. É o que se pode perceber nos textos de MACHIAVELLI: quanto seja louvável a um príncipe manter a e viver com integridade, não com astúcia, todos o compreendem; contudo, observa-se, pela experiência, em nossos tempos, que houve príncipes que fizeram grandes coisas, mas em pouca conta tiveram a palavra dada, e souberam, pela astúcia, transtornar a cabeça dos homens, superando, enfim, os que foram leais[xvi].

A primeira vista HOBBES não se distancia dos conceitos anteriores de Direito Natural: é aquele que Deus comunica aos homens por meio da razão e vige no estado de natureza[xvii]. Porém, um importante conceito, o da natureza humana, mostra-se transfigurado em HOBBES, que qualifica o homem como um ser intrinsecamente mau, egoísta, brutal e agressivo[xviii], sentimento que o autor talvez tenha adquirido por ter vivenciado a guerra civil ocorrida na Inglaterra. Homo hominis lupus – o homem é o lobo do homem, é a frase que retrata sua confiança na natureza humana. O estado de natureza do homem está dominado pelo egoísmo, mirando cada qual pela sua conservação, onde todos têm direito a tudo, e o que se mantém é a violência e o engano[xix].

Ainda sim enumera as “leis da natureza” (p.ex., todos podem fazer o que a natureza lhes permitir, os contratos devem ser cumpridos, não se deve injuriar o semelhante, não devemos fazer aos outros o que não desejamos a nós, etc[xx]), e que seduziriam as condutas individuais, se pudessem ser garantidas.

Estas leis, embora naturais, não podem ser praticadas por todos enquanto o homem se conservar em seu estado natural, onde a guerra é uma constante. Somente através da celebração de um pacto onde cada qual entregue seu poder ao ente soberano – o Leviatã – a paz e a segurança poderão ser mantidas[xxi]. Por meio de um contrato tácito cada um renuncia ao direito natural e o transfere a um poderoso, o soberano absoluto e ilimitado, renunciando inclusive a sua própria liberdade individual. Consagra-se então a existência de um direito natural subjetivo: a liberdade que tem o homem de fazer tudo.

Este seu posicionamento quanto ao direito subjetivo inverte o sistema jurídico. O Direito Natural do indivíduo se mostra o princípio do sistema, e do chamado direito subjetivo se deduziria a ordem jurídica e posteriormente o sistema de leis jurídicas, conduzindo assim a lei a um segundo plano[xxii].

Mas seria inócua a permissão de “fazer tudo” se em seu estado de natureza, onde a guerra é permanente, o homem não pudesse aproveitá-la. Daí a fuga do estado natural para o estado civil, que será capaz de garantir os direitos subjetivos e torná-los efetivos, através da força pública[xxiii]. A situação natural então se mostra como algo ruim, prejudicial ao ser humano, que deve buscar a constituição de um poder civil, de leis editadas pelo Estado.

Contudo a sua doutrina possui um paradoxo inexpugnável. HOBBES afirma que a única lei natural que vigeria no estado civil é aquela que obriga a todos a obedecer ao soberano. Isto reverte a função da lei natural, que é exatamente a de restringir os poderes do soberano. Em seu sistema ela se presta justamente ao inverso: fundamentar o poder absoluto do Estado[xxiv]. Assim, mesmo que o soberano edite leis tirânicas não será legítimo ao povo negar-lhes cumprimento, a não ser quando o governante perder sua capacidade de preservar a paz e a segurança dos cidadãos[xxv]. Enquanto exercer suas funções não existem limites para seu poder, pois HOBBES coloca a lei natural apenas como um guia moral, que as leis civis, editadas pelo soberano é que consistem nas verdadeiras determinações[xxvi].

 

1.4.             LOCKE (1632-1704)

 

JOHN LOCKE mantém algumas semelhanças com a doutrina de seu tempo, principalmente com o contratualismo desenvolvido por HOBBES.  Contudo, como observa VILLEY, de uma forma muito menos sombria[xxvii]. Não faz como seu predecessor que intitula o egoísmo como a lei suprema da vida humana, pois as leis naturais se identificam com a lei divina, de ordem ética e racional, donde o útil aos indivíduos assimila-se ao bem comum[xxviii].

O homem em seu estado natural é livre e senhor de seus atos, e tem para governá-lo as leis da natureza, que a todos obriga, sendo todos iguais, independentes e, sobretudo, originados de um mesmo Deus. Por sua gênese divina, um ser não deveria prejudicar a seu semelhante, justamente pela parelha situação em que se encontram. Mas na realidade não pode exaurir seus direitos por se encontrarem sempre sob a ameaça de violação por terceiros, por esta mesma situação igualitária de potestade, e sendo assim, sem compromisso com a equidade e a justiça. Por isto, abdica desta condição natural, repleta de temores e procura a união em sociedade para possibilitar a mutua preservação de suas vidas, liberdades e propriedades[xxix].

Mas as conclusões de autoridade de LOCKE diferenciam-se do pacto hobbesiano. Ao passo que neste o poder transferido ao Leviatã é supremo e permite tudo ao soberano, no contrato de LOCKE alguns direitos naturais são intransferíveis, como a vida, a liberdade e a propriedade. Esta lei da natureza não pode ser tocada, e deve ser respeitada por todos, mesmo pelos que governam[xxx]. O mister do governante é a defesa dos direitos e a sanção de seus violadores.

Em seus Tratados sobre o Governo pode-se encontrar a referência ao termo propriedade de forma a agrupar os demais direitos como a vida e a liberdade. Mas o que é relevante destacar é o fato de LOCKE associar este termo (propriedade) em sentido lato ao “bem comum”, e a necessidade do governo buscá-lo dentro dos limites da concessão de poder que recebe, ou seja, que nunca poderá superá-los.

Por fim, sempre se poderá contestar o soberano, e sempre será legítimo aos titulares dos direitos – os cidadãos – resistirem às leis positivas opressivas e tirânicas, e se necessário, por meio de revolução, na defesa de seus direitos.

 

1.5.             ROUSSEAU (1712-1778)

 

Afinando-se a tradicional escola clássica do Direito Natural, ROUSSEAU também acreditava na existência dos direitos naturais. Mas discordante em um ponto crucial: o homem é bom e inocente por natureza, e não egoísta e corrupto como pregado pelas doutrinas antecedentes. Seu estado natural é diverso do de HOBBES, pois o homem não se encontra em constante disputa, mas é associável, feliz, bom por ter a natureza lhe proporcionado todo o necessário para que se considerem livres e iguais[xxxi].

Em seus primeiros escritos invoca uma exaltação à natureza humana, citando a necessidade de se voltar às origens, acusando a cultura avançada de corromper a civilização, proporcionado a ganância, as lutas e o egoísmo, causando desigualdades sociais, escravidão e a sufocação da espontaneidade natural[xxxii]. Mas é preciso esclarecer que esteretorno à natureza” pregado por ROUSSEAU não significa a negação da civilização e da cultura, com o homem regredindo a seu estado selvagem, mas sim uma espécie de libertação do homem dentro da sociedade, de tal forma que a interioridade humana se sobreponha ao exterior, o sentimento à inteligência, a consciência à ciência.

Partindo-se destas premissas, ROUSSEAU busca explicar e construir um sistema social ideal, que concilie o estado primitivo e natural de liberdade com a cultura adquirida pela civilização. Encontrar uma forma de associação que defenda e proteja de toda a força comum a pessoa e os bens de cada associado e pela qual cada um se unindo a todos obedeça, todavia, apenas a sim mesmo e permaneça livre como antes[xxxiii]. Surge seu contrato social.

O ser humano nasce livre e em toda parte está a ferros. Aquele que mais crê senhor dos outros não deixa de ser mais escravo do que eles[xxxiv]. Esta é a tônica de seu contrato social. Os seres, livres por natureza, unem-se em um contrato imaginário, cada um entregando seus direitos naturais ao governante que os retorna em forma de direitos civis. Por outro lado, o soberano está obrigado a manter estes direitos de acordo com a vontade geral do povo, a vontade da maioria, pois nada mais é do que a resultante desta vontade, e nunca poderá defender interesse contrário.

Cada indivíduo, obedecendo à vontade geral está na verdade obedecendo a si mesmo, pois a vontade individual se funde na vontade de todos, consenso unânime dos cidadãos. A lei não poderá ser injusta pois ninguém é injusto consigo mesmo, e todos serão livres mesmo devendo obediência às leis, que estas não passarão de registros da vontade de todos[xxxv].

Embora no decorrer de sua obra tenha convertido suasleis naturais” à vontade geral, é indiscutível sua colocação como naturalista, desde o reconhecimento do estado natural superior até a negação da imposição da força como direito.

 

1.6.             KANT (1724-1804)

 

Seu pensamento parte da dicotomia entre a causalidade e a finalidade. O homem fazendo parte do mundo empírico, suas ações ficam sujeitas às leis da causalidade (NEWTON). Mas sua experiência interior e sua razão prática da vida moral o constroem livre, capaz de escolher entre o bem e o mal. Existe, pois, uma contradição entre a razão teórica da ciência natural e a razão prática da vida moral[xxxvi].

O pensar é formular juízos, atribuir algum predicado a algum objeto. Analisando criticamente o conhecimento encontra dois juízos: um analítico (universal), onde o predicado está na essência do objeto e outro sintético (particular), onde se acrescente um predicado ao objeto. Conclui que o pensamento sintético se mostra melhor, enquanto acrescenta algo mais ao objeto observado. E o método para se conseguir este acréscimo é o empírico, que o pensamento analítico é o simples exercício da razão. Este, portanto, revela-se a priori, enquanto o sintético mostra-se a posteriori.

Estas conclusões o levam a uma aporia. Trabalhando a ciência com a experiência e chegando a conhecimentos sintéticos, ou seja, particulares, como poderia ela se propor a revelar conceitos universais, que são analíticos? Todo a sua lógica vem abaixo.

Em sua Crítica da razão pura teórica tenta demonstrar a possibilidade de juízos sintéticos de qualidades universais, e analisando como se realiza o conhecimento, esquece-se do objeto. Assim, conhecer algo somente é possível através da sensibilidade (experiência), e conhecemos as coisas uma após a outra, como se uma ao lado da outra, de acordo com as condições do sujeito cognoscente. O conhecimento é então subjetivo, pois não se pode conhecer as coisas como elas são, mas da forma que cada sujeito as pode conhecer. E possuindo a mesma natureza, todos os seres humanos experimentam as coisas da mesma forma, e a isto se deve a possibilidade de conceitos universais fornecidos pelas ciências.

A principal conseqüência do pensamento kantiano é a ruptura entre o ser e o pensar. Não se pode conhecer o ser como ele é, mas apenas em relação as condições subjetivas do ente cognoscente. Essência e existência são incomunicáveis[xxxvii]. Indiretamente destrói alguns postulados basilares do Direito Natural.

Esta ruptura elaborada por KANT, colocando a impossibilidade do pensamento humano atingir o “ser” exerceu uma voraz influência no pensamento de sua época. O “ser” está restrito as condições subjetivas do pensamento, restando à vontade humana impor o “dever-ser”. Os filósofos do Direito após KANT dividem-se em dois grupos: os que passam a adotar suas posições, reduzindo o Direito a um mero “dever-ser”; e os que tentam superar esta dicotomia, tentando deduzir o “dever ser” do “ser”, impossível para KANT. Somente em HUSSERL e REINACH é que se parte a uma nova concepção através da fenomenologia jurídica, e se tenta reunir os mundos separados do “ser” e do “dever-ser”, ou entre o ser e o pensar[xxxviii].

De qualquer forma, a erupção causada pelo pensamento kantiano afetou direta e indiretamente aos juristas que lhe procederam, dando-lhes fundamentos inigualáveis para a negação tão pretendida do Direito Natural.

 

1.7.             KELSEN (1881-1973)

 

Após as rupturas kantianas e a sublimação do positivismo, o Direito Natural sofre um duro golpe, e tem seu momento de maior amargura. As doutrinas influenciadas por HUME, COMTE e KANT, e principalmente a necessidadecientífica pela qual passava a humanidade, distanciaram os juristas e filósofos da metafísica e também do Direito Natural.

Um marcante pensador, cientista da mais alta capacitação e colaborador incontestável para a evolução do Direito, HANS KELSEN, tentou construir uma teoria jurídica desprovida de todo condicionamento axiológico[xxxix]. O que chamou de Teoria Pura do Direito aceitava como dogma à incapacidade de se conhecer a justiça, o ato justo, e assim, o Direito em si. Grávido do pensamento kantiano de limitação do conhecimento, KELSEN ridicularizou o Direito Natural - a natureza é um mau lugar para o Direito - e o conceito de Justiça, exaltando a normatização positiva como o único direito válido e reconhecido. Para ele, é direito o que for definido pelo Estado, positivado e formalizado, não interessando o seu conteúdo, ou até mesmo a falta dele: o Estado é a lei. Seu fundamento de validade é simplesmente à vontade do Estado, que em sua norma fictícia fundamental sustentaria a validade de todas as demais normas positivadas. Desprendeu do Direito a sua condução maior, a Justiça. Atendia assim a contingência do momento histórico em que vivia, onde a necessidade da qualificação de Ciência era fundamental ao reconhecimento do labor do jurista.

A “pura Ciência do Direito não poderia ser influenciada por aspectos sociais ou filosóficos. Assim, o estudo dos fatos sociais caberia à Sociologia jurídica e a Justiça seria tarefa da Filosofia do Direito. Mesmo assim, a Justiça apenas poderia ser conceituada relativamente aos anseios do Estado ou da sociedade. Neste ponto KELSEN chega a identificar alguns dos efeitos alcançados pela Justiça - como a paz e a segurança - com o próprio conceito de Justiça[xl].

A qualidade dos textos de KELSEN somada a sua magnífica eloqüência seduziram a muitos em seu tempo, uma alinhada luva para mãos sedentas de poder, e que até hoje impregna livros doutrinários e decisões judiciais, pela simplicidade e conveniência de minimizar os esforços intelectuais.

 

2.       O DIREITO NATURAL

 

Quando se fala de “Direito Natural”, devido às distorções que a expressão adquiriu ao longo dos tempos, se faz imprescindível um esclarecimento quanto ao que se quer hastear neste momento. Desde , como demonstrado pelas doutrinas alhures, não se pode considerá-lo como uma “invenção contemporânea ou até mesmo da Revolução Francesa. Seu conceito precede a estas ocasiões.

O “Natural que qualifica o Direito deriva da natureza, mas não da exclusiva ótica de conjunção dos elementos existentes e perceptíveis que circundam o homem. Não se trata da simplória captação da natureza sob o ponto de vista das classificações biológicas, geológicas ou de quaisquer outros ramos científicos que estudem os seres animados ou não, existentes sobre a face do planeta. Esta ótica, de descoberta e colheita do direito como que inscritos nos elementos da natureza (uma pedra, um arbusto, uma árvore) utilizada por alguns como ponto referencial de desprezo e descrédito, não pode ser adotada como arrimo por pensadores naturalistas.

O predicadoNatural” da corrente filosófica que se defende surge da gênese do ser humano, de sua origem, de sua natureza, e em direção a ela. Natural ao homem é fazer o bem, cumprir seu papel. O homem é o ponto de partida, chegada e razão do que se pretenda atingir quando se predisponha a estudar, qualificar, positivar ou enunciar o que é “Direito”. É, nos dizeres de SACHERI, é o que se deve ao homem em virtude de sua essência, isto é, pelo simples feito de ser homem[xli].

É assim, reconhecendo a existência de uma natureza humana uniforme e dotada de inteligência que conduz os homens a seus objetivos que MARITAIN afirma a necessidade destes mesmos objetivos concordarem com os fins exigidos por esta natureza humana. O Direito Natural, no seu entender, é uma disposição que a razão humana pode descobrir, e segundo o qual a vontade humana deve agir a fim de se por de acordo com os fins necessários do ser humano[xlii].

Por estes postulados reforça-se a idéia de que é no plano ontológico que se deve situar o natural, como sendo o que pertence à essência, tal qual como se manifesta em suas propriedades, forças, e ainda o que está relacionado ao seu desenvolvimento, evolução, aperfeiçoamento. É o fundamento do comportamento humano como tal[xliii].

Assentindo a estas posturas, VANDYCK DE ARAÚJO acrescenta algo mais - o espírito - e defende que a razão de ser do Direito Natural, além da grandeza moral, é também a grandeza espiritual do homem, construída de uma realidade ética que estabelece o primado do valor e repudia o subjetivismo ético que contaminou as filosofias modernas, especialmente no meio jurídico[xliv]. Na visão deste autor, a moral deve se projetar na vivência jurídica do ser humano, para que o Direito não entre em crise, pois caso isto ocorra, equipara-se a crise jurídica à crise do próprio homem[xlv].

É preciso despertar ao jurista a importância de se manter o Direito Natural no posto perene e eloqüente de fonte de conteúdo das normas sociais, independentemente da forma que adquiram. O homem, como é esperado e corroborado, se utiliza das normas positivadas dentro de sua comunidade, e a todo o momento deve se valer destes conceitos na elaboração de suas leis, para que estas não se distanciem de sua função maior – a justiça – e sirvam de orientação na sua jornada.

Concordamos com a idéia de ERIK WOLF de que mesmo que não se tenha certeza do que se busca conceituar como Direito Natural, cada um sente e tem a certeza de que ele existe e que é possível encontrá-lo em alguma parte, em algum momento, de algum modo[xlvi].

Existem alguns conceitos que auxiliam na compreensão e na afirmação do Direito Natural Inicialmente precisamos aceitar as capacidades do conhecimento humano, identificar a objetividade dos valores e culminar pela importância da realização do homem como razão final da existência.

 

2.1.             A GNOSIOLOGIA

 

A gnosiologia preocupa-se com o conhecimento: sua possibilidade, origem, essência e forma. E se fazem imprescindíveis algumas considerações sobre o conhecimento, para que aceitemos os ditames do Direito Natural.

O ser humano efetivamente possui a capacidade de conhecer, apesar de alguns pensamentos céticos, como o subjetivismo e o relativismo não aceitarem a possibilidade do conhecimento de uma verdade universalmente válida. O subjetivismo cerceia o conhecimento aos limites de cada sujeito cognoscente, sua capacidade pessoal e interna de apreensão. O relativismo também limita o conhecimento e o condiciona a elementos externos ao sujeito conhecedor.

Mas ambos incorrem no mesmo vício. Explica-o HESSEN: .se a verdade existe deve significar a concordância do juízo com a realidade. Se existe, deve existir para todos e não pode ser limitada a um número determinado de indivíduos. Ou o juízo é falso, e então não é valido para ninguém, ou é verdadeiro, e então é valido para todos, é universalmente válido. Quem mantenha um conceito de verdade e afirme, apesar disso, que não há nenhuma verdade universalmente válida, contradiz-se, portanto, a si próprio[xlvii].

E o conhecimento possível é ainda atividade concatenada da razão e da experiência, como ARISTÓTELES se esforçava para demonstrar quando, objetando a PLATÃO, unificava os “mundos sensível e inteligível em uma realidade[xlviii]. Captamos as expressões dos objetos em um primeiro momento, e utilizando a razão somos capazes de elaborar imagens e apreender sua essência. Não se pode situar o conhecimento apenas racionalmente, a exemplo das doutrinas de DECARTES e LEIBNIZ, e nem tampouco somente na experiência, como desejava HUME e STUART MILL. O que se percebe é que se trata de um processo onde a participação da realidade do objeto, seja ele material ou ideal, precisa ser trabalhada pela razão, para que o conceito universal seja atingido.

E qual a essência deste conhecimento? Não pode ser outra que o conhecimento do objeto em si, de sua essência, o seuser”. Como visto, contrário a esta assertiva encontra-se como mais notório e impactuante o pensamento de KANT. O conhecimento na visão kantiana corresponde a uma correlação entre o sujeito e o objeto. Nessa relação os dados objetivos não são passíveis de captação em si, mas somente de acordo com a sensibilidade e o entendimento do sujeito. Assim, a coisa em si, o absoluto, é incognoscível. apreendemos o ser das coisas na forma que nos apresentam e no limite em que podemos, ou seja, enquanto fenômeno[xlix]. Tal impostação, que se aproxima do subjetivismo exposto acima encontra um grande contra-senso: se não captamos a coisa em si, como ela realmente é, não somos igualmente capazes de captar a verdade, que se mostrará uma a cada ser cognoscente, de acordo com suas limitações. E isto não foi suficientemente convincente nem ao próprio KANT, que em determinado ponto de sua obra viu-se a aceitar dogmaticamente verdades como a existência de Deus, da liberdade e da imortalidade[l].

Quando se fala em Direito Natural, não podemos desconsiderar estas conclusões por relacionarem-se com o “ser” e suas expressões e, por conseguinte, com a expressão axiológica norteadora do direito - a Justiça - porquanto na pretensão de praticá-la devemos ter em consciência de que podemos conhecê-la, como um dos valores condicionantes do direito, seja este escrito ou não. Como bem pontuado por BIDART CAMPOS, por vezes o que falta ao homem é uma certa dose de otimismo e confiança em sua própria razão, para que descarte o relativismo e admita que o alcançar a verdade também no campo dos valores – é sempre possível, apesar de nem sempre ocorrer[li].

E como fomento a esta desconfiança no conhecimento une-se o fato de sua onerosidade, ou seja, dos penosos esforços que o homem deve empreender para adquirir o conhecimento preciso e rigoroso[lii].

Neste diapasão impõem-se importantes algumas notas acerca dos valores.

 

2.2.             O VALOR

 

Como foi visto, sendo o conhecimento objetivo, o que se conhece possui relações, estados em que se apresenta e que podem ser captados pelo ente cognoscente. E no processo teleológico o sujeito que tende à realização de uma finalidade atribui a esta um valor positivo[liii].

Os valores, o valor do que se conhece, igualmente pode ser apreendido, enquanto integra o próprio ser, como “uma posição do ser, uma relação”.[liv]

O valor assim se apresentaria como uma exteriorização do ser, uma posição sua, uma relação polarizada entre o ser e seu fim. Não se separa dele, não se opõe a ele, mas se encontra nele como uma dimensão sua, uma manifestação de não indiferença do sujeito observador. A não indiferença é a essência do valer[lv].

E no contexto do Direito Natural, o objeto a ser observado encontra-se nas relações sociais, pois a conduta humana é o arrimo onde se suporta o valor Justiça. É na conduta do ser em relação a seu próximo que se pode identificar a justiça do ato – o ato justo como uma de suasqualidades”. Não se entenda aqui o termo qualidade como um acessório, destacável do todo. A relação de qualidade deve ser entendida como conformidade, do ser em relação a seus fins. Não existiriam assim condutas indiferentes ao valor justiça, condutas não passíveis de valoração. Como igualmente a totalidade de condutas justas não esgotaria a essência da justiça. O valor Justiça não é temporal, espacial ou relativo[lvi]. Caso contrário, se a justiça não se mostrasse transcendental e houvesse fundamento sua relatividade, não seria a justiça, mas sim esta ou aquela justiça. Faria, portanto, sentido a afirmação de WITTGENSTEIN de que no mundo tudo é como é e tudo acontece como acontece; nele não existe qualquer valor - e se existisse não teria qualquer valor. E conseqüentemente o termo justiça não representaria nada verificável, sendo uma palavra vazia, sujeita a ser definida[lvii].

Assim também se posiciona GERMAN BIDART CAMPOS, concluindo que se não justiça como valor objetivo, absoluto e transcendente, e se tal valor não pode ser conhecido pelo homem, as condutas alcançariam uma justiça relativa, esta determinada subjetivamente, conforme cada juízo individual[lviii]. Portanto, não se pode confundir o valor, objetivo e transcendental, com o juízo de valor que cada indivíduo venha a fazer, quando tenta captar no objeto o seu valor. Estes juízos podem ser verdadeiros ou falsos, pois o cenário nos quais se realizam os valores dependem de fatores fenomenológicos ou culturais que podem não se adequar à realidade ideal do valor, pois este depende de muitos fatores, como o conhecimento humano ä seu respeito, da capacidade ou possibilidade de realizá-lo, etc[lix].

Se os juízos de valor nem sempre são certos, sua correção somente pode se dar de acordo com um critério objetivo, pois se não se dispõe de uma fórmula infalível para se captar em toda a completude os valores tal fato não demonstra a impossibilidade de que se o faça um dia [lx].

Mas distanciar o valor Justiça da natureza do Direito é o mesmo que considerá-la um evento raro na experiência jurídica, e isto desnatura a essênciajurídica” do fenômeno observado. A Justiça, que deve se mostrar como a meta da atividade essencial do jurista passa a ser considerada como um acidente de percurso[lxi].

Quando se assevera que o Direito foi instituído para se lograr os valores e em particular a Justiça pretende-se indicar como elemento estrutural de sua ordem a sua finalidade, justamente esta realização axiológica, essência do jurídico[lxii]. Como alude GARCIA MÁYNEZ: hacer que la justicia reine es y debe ser aspiración de los credores, aplicadores y destinatários de sus normas, porque ‘la justicia es valiosa’, y lo valioso ‘debe ser [lxiii].

 

2.3.             O HUMANISMO

 

Uma contribuição negativa do avanço científico foi o desprezo das causas finais e a exaltação das causas eficientes como instrumento lógico para a pesquisa da natureza, mesmo quando sabemos que o cientista apenas detecta aspectos que existem na natureza, e mais, orientados a realização de suas finalidades intrínsecas pré-existentes[lxiv].

Daí surgirem correntes de pensamento que substituíram os fins do direito por sua capacidade eficiente de apaziguar os conflitos sociais. Desta substituição à conclusão de que o Estado ou o governante é quem deve determinar o Direito foi uma simples contratura mental.

Porém, nem todos os pensadores abraçaram esta idéia. E freqüentemente ecoam brados de alerta tentando acordar os “cientistas do direito acerca de seu objeto real, e qual a finalidade de sua pesquisa: o homem. Quando se fala desta centralização da atividade jurídica na natureza humana, costuma-se pregar o Humanismo. Seja com a súplica de SÓCRATES (conhece-te a ti mesmo), ou seja com o conselho de SANTO AGOSTINHO (não saias de ti, volta-te para ti mesmo, a verdade habita no homem interior), por mais redundante que se possa parecer, por vezes se faz indispensável este conclame de retorno do pesquisador ao seu objeto de estudo.

O Humanismo pode ser conceituado como a tendência a tornar o homem mais humano, manifestando sua grandeza original, concentrando o mundo no homem e dilatando o homem ao mundo, como dizia SCHELLER. Isto não implica de forma alguma um individualismo desenfreado, e reconhecer os valores individuais como superiores aos sociais não pressupõe necessariamente a impossibilidade de cessão aos sentimentos egoísticos em favor do bem estar geral[lxv].

No campo jurídico não deve ser de outra forma. O homem, ipse ser social, é levado a constituir uma sociedade. Mas muito mais do que apenas um ser dotado de matéria, é o homem uma pessoa, dotada de um espírito que participa de sua essência. Assim, esta sociedade que deve formar é uma sociedade de pessoas, e de pessoas humanas, e nada mais coerente que os produtos e finalidades desta associação as tenham como epicentro. Esta definição do homem como pessoa orienta-se predominantemente em sentido ético, denotando que o homem é sujeito de um mundo moral, de valores[lxvi].

Como bem dizia MARITAIN, a sociedade implica na realização de uma obra em comum. Ela é um todo formado de partes que em si mesmas são outros todos, feitos de liberdades e não de células vegetativas. Tem por finalidade um bem que lhe é próprio e distinto dos bens individuais, contudo devem ser por essência humanos[lxvii]. Não é outra a sua razão de existência. Os homens se reúnem para algo, um objetivo a alcançar[lxviii]. E o que importa a esta sociedade, à sua obra política, é a vida humana do todo social, formado pela individualidade de cada um, voltada aos fins da vida. Capitular outro objeto da sociedade que não a própria vida humana e as atividades voltadas ao seu aperfeiçoamento interno é desnaturar a sua constituição[lxix].

Quando fala do progresso interno da vida humana, MARITAIN, autor de cunho cristão, não ignora o aperfeiçoamento das condições de vida material, mas enaltece a preponderância do enriquecimento moral e espiritual Essencialmente, o homem se une em comunidade para perseguir o bem comum, não somente de uma categoria e sim de toda a massa, mas durante o convívio, progressivamente, deve expandir sua vida moral e racional[lxx].

A pessoa tem a razão como característica que a distingue, centro da sua dignidade, e é em virtude desta sua racionalidade que possui valor absoluto, descartada como meio e promovida ao fim em si [lxxi]. O homem e sua manifestação de alteridade deve ser o ponto de partida e de chegada do que se tipifica como jurídico, ou seja, do que se deve considerar no contexto do que é Direito e da aplicação da Justiça. Deve-se colocar a natureza humana em prioridade, enquanto a sociedade é constituída de pessoas humanas. A personalidade de cada indivíduo somada à sua igualdade enquanto pessoa é o fundamento da Justiça na concepção de HELMUT KUHN[lxxii]. Forja-se outro sentido à frase de PROTÁGORAS que não o individualismo contemporâneo: o homem é a medida de todas as coisas.

 

3.       A SOCIEDADE

 

Após as considerações acima, afoitamente poderiamos chegar a conclusões que certamente entrariam em choque com o modelo atual, com as opções sociais em que vivem a maioria dos indivíduos. O que se falar então da necessidade de leis positivadas, de máquinas estatais constituídas?

Não raro encontramos pensamentos que questionaram o modelo social, criticando a necessidade do direito positivo, e até mesmo da estrutura estatal, a exemplo do socialismo de KARL MARX. Porém a suasociedade perfeita nunca chegou a ser alcançada, por diversos fatores, mas principalmente pela liberdade humana e, por conseguinte, do livre arbítrio de cada ser pensante.

Impende-se, portanto, um breve desenvolvimento acerca das leis, do Estado e do bem comum, tão presentes e, porque não dizer, necessários, para o atendimento dos escopos da sociedade.

 

3.1.             A NORMA POSITIVADA

 

Esta é a seara de maiores ataques e discussões contrárias ao Direito Natural. Os positivistas apontam a ineficiência de se utilizar umcódigo natural”, recolhido na natureza, sem poder coativo, para orientar os membros da sociedade. E por outro lado, criticam de forma pejorativa a existência destas leis, de tal sorte que se existissem, as normas positivadas seriam desnecessárias, como queascender uma luz na claridão do dia”, porquanto todo homem poderia captar o Direito naturalmente.

Pode-se começar as argumentações com uma visão sociológica. EUGEN EHRLICH pondera o fato dos princípios naturais não terem poder de intimidação para o homem, com sanções reais e ser apenas no plano da moral que ele pode se ver pressionado a obedecê-los. Mas, mesmo apresentando uma perspectiva social, EHRLICH aponta que não é exclusivamente por medo das leis civis ou penais que o homem não comete crimes ou deixa de pagar suas dívidas, pois mesmo quando as normas positivas perdem sua eficácia como em casos de convulsões internas – são poucos os que se cometem a participar de assassinatos, assaltos, depredações; e em períodos de calmaria, o devedor procura cumprir seus compromissos; se por um lado não fica provada a motivação interna, de outro se demonstra que não é a coação da lei que determina as condutas[lxxiii]. É o que assevera GARCIA MÁYNEZ como adesão espontânea. Nela o medo do castigo não representa nenhum papel e o comportamento do indivíduo se conduz pela convicção da realização dos valores[lxxiv].

O homem é um ser limitado, sujeito à ignorância e ao erro e apesar dos conhecimentos que possui, ainda que estreitos, torna-se por vezes servo de suas inúmeras paixões[lxxv]. Mas a possibilidade dos homens viverem apenas seguindo suas paixões é deveras arriscada, pois ainda que todos fossem, por natureza, iguais, esta mesma natureza possui algo capaz de orientar as condutas, tanto no caminho correto como no seu reverso. A esteprivilégio” concedido ao ser humano chama-se livre arbítrio, sempre presente, conforme nota RECASÉNS SICHES: a vida é sempre um fazer algo concreto, positivo ou negativo[lxxvi].

O homem está “condenado” a ser livre, disse SARTRE. E esta liberdade o permite atuar de acordo com sua vontade. Video melliora proboque, deteriora sequor – “vejo o bem, estimo-o, e sigo o pior” - disse OVÍDIO. O homem, dotado de livre arbítrio, é capaz de escolher seu caminho, direcionado ou não para o bem. Ele enxerga, diz OVIDIO, mas pode não segui-lo. Prefere distanciar-se de sua natureza. E é este livre arbítrio que justifica a elaboração das leis, sua positivação, para orientar, e até coagir, aqueles que não enxergarem, ou que enxergando, insistirem em se distanciar do traçado do bem comum. Neste sentido, MARITAIN se posiciona: O Estado tem o direito de me punir se, minha consciência tendo ficado cega, eu cometo, seguindo minha consciência, um ato em si mesmo criminoso ou delituoso[lxxvii].

A maior vantagem proporcionada pela norma positivada é, sem dúvida, a segurança que irradia à comunidade a qual se aplica. Segurança que mantém a ordem jurídica, protegendo as estruturas do poder e dos direitos individuais, autonomia do Judiciário, dentre outras formalidades e liberdades inerentes ao convívio social[lxxviii].

Então são elas, as leis, mandamentos certeiros e confiáveis para o alcance das finalidades? Infelizmente não. Como obras dos seres humanos, imperfeitos que são, também as leis poderão se mostrar visões deturpadas, vítimas de circunstâncias conturbadas vivenciadas pela sociedade. Apesar de sua importância, o direito não se resume a elas, ao legalismo, e o dogma do encarceramento no conjunto das leis, de onde devem ser deduzidas as soluções judiciárias, causou e ainda causa prejuízos[lxxix].

Mesmo assim, despontam como tentativas de mostrar o caminho correto, tanto um castigo quanto uma “mão estendida”, necessária à trajetória do ser social, desde que se mantenha em evolução e atento à possibilidade de enxergar além, um pouco mais no rumo certo, e esteja pronto para quando necessário, movimentar as forças para transpassá-la. A natureza humana não é imutável, e existem peculiaridades universais relacionadas à evolução dos seres humanos, tanto entre homens primatas como de civilizações avançadas, que trazem consigo adaptações das sensibilidades e das reações humanas[lxxx]. O homem civilizado pode considerar alguns princípios gerais como imperativos racionais para a condução da conduta, que um primata morador das cavernas ainda não tenha considerado necessários e entre estes princípios fundamentais poderão estar incluídos tribunais e leis positivadas.

Assim como MONTESQUIEU enunciou que As leis, na mais ampla acepção, são as relações necessárias que derivam da natureza das coisas[lxxxi] (grifo nosso), EHRLICH rogou ser necessário acostumar-se que as intenções daquele que escreve uma lei não deve ter importância para suas conseqüências, e que o essencial é que tal lei se mostre um meio adequado para se alcançar o objetivo[lxxxii].

Os ensinamentos de SANTO TOMAS DE AQUINO descrevem que as leis devem ser sempre um ordenamento da razão para o bem comum e sempre que se distanciem do direito natural se revelarão injustas e desarrazoadas, não mais podendo ser chamadas de lei, mas somente de uma “corrupção” da lei. Aborda um tema polêmico, pois acreditava num legítimo direito de resistência e de desobediência às leis promulgadas por tiranos, que prescrevessem algo contrário à lei divina[lxxxiii].

O que soa como relíquia ideológica pode ser mais atual do que parece, pois ainda hoje encontramos autores e textos que discutem esta possibilidade, principalmente no tocante aos intitulados Direitos Humanos[lxxxiv].

Como ilustração apresenta-se um trecho do escrito de CARLOS S. OLMO BAU relacionado ao que chamou de desobediência civil: es posible negar la identificación entre Justicia y Ley o, utilizando otra terminología, entre Derecho y Ordenamiento jurídico (sin por ello caer en las garras del iusnaturalismo). Como apuntara hace ya años Javier de Lucas, la ley -el ordenamiento- es derecho, pero no es todo el Derecho y puede contradecir a este, colisionar con él. Desobedecer la ley, entonces, no tiene por que ser sinónimo de desobedecer al Derecho. Es más, es posible desobedecer la primera precisamente para no desobedecer o para defender al segundo[lxxxv].

 

3.2.             O ESTADO

 

É comum associarmos à idéia de Estado à de máquina administrativa, à de superestrutura criada pelo homem para reunir determinado povo, ocupante de um determinado território, sobre um governo soberano, como classicamente indicou MALBERG. Quase sempre quando se pensa em Direito implicitamente se pensa em Estado como instância objetiva que impõe coercitivamente o cumprimento dos preceitos jurídicos positivos. Por outro lado, como destaca RECASÉNS SICHES, quando se pensa em Estado também se implica a referência ao Direito, sendo aquele o órgão deste[lxxxvi].

Em uma reflexão filosófica somos levados a reconhecer um conceito mais profundo, referente a esta gênese. Iniciando esta reflexão observamos que os ditoselementos” de MALBERG (povo, território, governo soberano) nem sempre se encontram presentes e que tampouco a vontade é fundamental para o surgimento desta reunião. Foram os contratualistas que, conscientemente ou não, incluíram a idéia de vontade para a formação do Estado. O ser humano, necessitando da conservação de seus direitos, salta de seu estado inicial de solidão e une-se aos semelhantes, voluntariamente abdicando de seus direitos, ou de sua total liberdade, em função da criação do Estado. LOCKE, HOBBES e mesmo ROUSSEAU explicitam esta vontade como fomentadora estatal. A verdade é que nenhum homem se encontra ou se encontrou sozinho no mundo, completamente isolado dos demais. A idéia de natureza humana, como a citada por HOBBES como o estado de natureza, esta, sem contato com a sociedade, nunca existiu[lxxxvii].

Por outro lado existiram também os filósofos como ARISTÓTELES e SANTO TOMAS que apontaram a natureza gregária, social do ser humano, levado naturalmente à associação, como forma de realização pessoal. Desta forma, o Estado, antes de se constituir a máquina superior ou centro de potestade, constitui-se uma reunião finalística. Lê-se em SANTO TOMAS DE AQUINO que sendo o homem um animal político por natureza o Estado revela-se em uma necessidade natural para sua vida. Esta estrutura é de suma importância de tal sorte que caso tal Estado constituído não estivesse a conduzir seus integrantes ao bem comum e respeitando os direitos da pessoa humana seria passível de uma derrocada, justificando-se a revolução, se necessária, empunhando-se as armas[lxxxviii]. O Estado, sociedade perfeita, possui um fim próprio, ou seja, a realização do bem comum, que torna possível a plena realização do homem, o que deve ser acatado pelos que são encarregados de sua condução.

Aos positivistas e aos adoradores do estrito normativismo, o Estado se fundamenta na força, e se revela como um agrupamento em direção a um fim. Todavia, este fim deve ser determinado pelo próprio Estado. Mesmo em correntes mais humanitárias, como a doutrina de LEON DUGUIT, não se subtrai a força como o fundamento do Estado. Aos menos DUGUIT reconhece que esta força deve ser legitimada, sendo exercida em conformidade com o direito, ainda que se refira ao direito positivo[lxxxix].

O que nem sempre se tem em evidência é o fato de não se poder mitigar a justiça sobre pretextos díspares. Os juizes, aclamados para praticá-la, não podem ser substituídos por uma espécie de administração, descarregando suas obrigações nos ombros de peritos e inquisidores[xc].

Em decorrência da sua racionalidade é o homem um ser social. Ao lado da sua individualidade, é o homem também fundamentalmente social. E o é por sua ontologia e pelo seu anseio de plenitude. Nenhuma pessoa humana se realiza sem a intersubjetividade e sem a participação em um plano envolvente e solidário a todas as pessoas[xci]. O Estado então é inevitável, mas isto não lhe qualifica como a finalidade última da existência humana. Ao contrário, deve ser ele o meio pela qual cada ser consiga atingir sua plenitude. E a ele somente devem ser entregues as atividades essenciais e indispensavelmente colimadas diante de sua própria razão criadora, ou seja, daquilo que individualmente seja penoso de se consumar.

Esta associação chamada Estado existe porquanto cada ser, buscando o seu bem, converge em determinados momentos do seu único trajeto em direção ao bem, o que confere a certas situações apresentadas como individuais a característica de coletivas, portanto, de bem comum. O Estado não é uma realidade feita e apresentada como algo que se possa colher e usufruir e, muito menos uma invenção artística do homem; ele é “vivido por este como sinal essencial de sua natureza humana[xcii]. E sendo a estatalidade algo inerente a esta natureza o bem especial que forma e justifica o Estado deve fundar-se no bonum humanum[xciii].

 

3.3.             O BEM COMUM

 

Estamos em caminho, disse BASAVE DEL VALLE. Estar em caminho é uma dimensão ontológica do ser, embora nenhum homem possa se considerar realizado enquanto viva[xciv].

Neste caminho deve-se ter sempre em mente a essência e existência social do homem, pois é dentro de seu convívio em sociedade que cada qual deverá buscar a realização dos seus fins. Conseqüentemente, sendo o convívio algo inerente a sua realização como ser, enquanto procura alcançar seu bem individual, participa da busca do bem social, ou também chamado bem comum.

É certo que quando se fala em bem comum logicamente não se deseja equipará-lo à soma dos desejos individuais, pois alguns destes desejos podem se revelar desarrazoados ou prejudiciais à coletividade, e nem tampouco se pode identificá-lo com os desejos dos governantes ou grupos dominantes[xcv].

O que se deve destacar é a compatibilidade de diretrizes que o fim individual de cada ser humano deve conferir ao bem comum. Quando se fala da realização dos fins fala-se em convergência da realização do fim da pessoa humana, de cada valor absoluto buscado pela natureza do homem, pois tudo o que vai de encontro a esta finalidade não pode ser favorável à realização do bem comum. De acordo com este pensamento RECASÉNS SICHES destaca que não pode existir contradição entre os valores individuais e os coletivos, pois: dentro de uma concepción personalista o humanista, em la cual la realización de los valores sociales y estatales es interpretada como la condición o el instrumento para que puedam ser cumplidos los individuales, no hay oposición entre esos dos tipos de valores[xcvi]. Com autoridade, o eminente filósofo trata da necessidade da organização social como o meio para a realização do que chama de “supremo fim”, consistente na realização dos valores individuais, não somente por um indivíduo, mas por todos os participantes[xcvii].

É tendendo a realizar o eu lhe parece ser o bem, em harmonia com seus semelhantes que o homem se revela a si mesmo e aos outros[xcviii].

Não é outro o pensamento de BASAVE DEL VALLE. Em obra de indispensável leitura, afirma que o homem, no seu desejo de plenitude, é essencialmente social[xcix]. E sendo assim, a sociedade humana é a união dos esforços dos homens, de um modo estável, para a realização de seus fins individuais e comuns, que não são outros senão a consecução do bem próprio e do bem comum[c]. A vida humana não se esgota na vida individual, senão transcende esse âmbito e se configura como existência, como alteridade[ci].

O mesmo autor enfatiza a concepção tomista-aristotélica das causas da sociedade, apontando o bem comum como sua causa final: bem obtido individual e simplesmente por todos os seus membros. Mas o bem comum é um fim intermediário – “finis a quo” – em virtude do qual cada membro do corpo social obtém o seu bem pessoal. O bem comum deve ser a satisfação de todas as necessidades do homem: físicas, intelectuais, morais e religiosas[cii].

No desfecho de seu raciocínio, o autor destaca o fato do desenvolvimento da vida espiritual do homem tomar corpo enquanto coexiste com os outros. Indivíduo e sociedade são duas faces da mesma moeda, aspectos essenciais da pessoa. A tentativa de destruição de qualquer um deles é um atentado quanto à própria pessoa. Antes de qualquer outra apetência, o homem acha-se destinado, desde as maiores profundidades de seu ser, a viver socialmente[ciii].

Resta-nos, ainda, algumas últimas considerações quanto ao bem comum, situando a relevância do direito e da justiça para sua concreção. GARCÍA MÁYNEZ enfoca o tema com presteza quando diz que sem justiça o bem comum não pode existir, pois aquela é condição necessária da sua realização[civ]. E ao seu lado MIGUEL REALE confere como valor do Direito a Justiça, não simplesmente fórmula aritmética e formal das condutas individuais, mas sim como uma unidade de atos de modo a constituírem um bem intersubjetivo, ou bem comum[cv].

 
CONCLUSÃO

                                                                                                 

Quando se fala do Direito, logo nos surge a idéia de ordenamento jurídico, conjunto de leis de um determinado povo em um determinado território. Obviamente tal conclusão não se aproxima de um conceito filosófico, ontológico do que é o direito.  O próprio termodireito nos aproxima do que é “certo”, “correto”. O grande dilema é saber “o que é certo”, “o que é correto”, em suma, “o que é direito”.

Ao longo dos tempos vemos o termo direito sendo utilizado ora sozinho, ora predicado, e neste, na maior parte das vezes, é tratado como coisa distinta, em decorrência do predicado atribuído. Assim o Direito Positivo é tratado com diversidade do Direito Natural, do Direito Divino, do Direito dos homens, do Direito Ideal, do Direito Racional, e assim por diante.

Teria fundamento uma distinção desta estirpe, quem sabe, se encarássemos o Direito apenas em sua forma adquirida por conveniência pontual, seja por motivos didáticos, científicos ou egoísticos. É o que se mostra mais comumente nos linguajares jurídicos, nas peças judiciais, nos bancos escolares e até nos discursos parlamentares, sem mencionar poderosos oportunistas, destinados a se manter na potestade ou a adquiri-la. Por vezes o discurso se repete por ignorância ou deficiência intelectual, ou por vezes pela simples preguiça mental de desenvolvimento filosófico, preferindo o palestrante permanecer na comodidade e conveniência da posição da “maioria”.

É, portanto, necessário um predicado para se pronunciar o Direito? Aos que apenas identificam sua forma, seu aspecto formal, talvez. Mas a partir do momento em que se tenha a coragem de admitir seu conceito material, seu conteúdo, o predicado se torna supérfluo, pois independentemente da forma que se pretenda adotar, o conteúdo sempre deverá ser o mesmo: a Justiça.

A partir desta declaração poderá se pensar que somente a finalidade comum perseguida justamente é suficiente para fundamentar o Direito. Mas o que se deve ter à frente, como meta a ser alcançada, como fim comum a ser atingido não é qualquer um, determinado pela vontade de um ou alguns. A vontade mostra-se como fator importante no processo, pois deverá se voltar à consecução dos escopos. O homem faz uso da vontade para orientar seus movimentos, mas mesmo ela deve se guiar por algo maior. Não é, portanto, a vontade que elege o fim a ser galgado. Ele existe, no interior de cada ser que, para se completar, deve buscar durante toda a sua existência a realização deste fim.

Mas qual é este fim? E como realizá-lo?

Todo ser possui sua natureza. E de acordo com esta deve-ser, para cumprir seu objetivo, aquilo para o qual existe. O ser humano, no entanto, possui um diferencial: a razão. E junto a ela, defeitos e virtudes inerentes, e que se apresentam em seu caminho à completa realização. O homem é livre, para direcionar seus atos a qualquer ponto, mesmo que o leve por caminhos errados, contrários a sua natureza. O livre arbítrio pode fazer com que o ser humano enxergue a direção correta, aquela que o levaria mais próximo de seus fins, e mesmo assim, renegando sua origem, posicionar-se em direção oposta, percorrendo, se assim for sua intenção, percursos distorcidos e penosos, que em ultima instância, podem levá-lo até mesmo à sua destruição.

Ao tratarmos de sua realização como ser, nota-se como evidente sua gênese social. O homem é não apenas por necessidade, mas por origem, um ser gregário, social, relacionável, que precisa do convívio em sociedade, da fraternidade de seus semelhantes para alcançar o objetivo de sua vida, de tal sorte que quando busca o bem comum determinado pela comunidade da qual participa, na verdade busca igualmente o seu bem individual, pois este somente será possivelmente atingido com a participação de seus iguais. O bem comum assim se orienta pela finalidade da natureza humana.

Neste contexto de relacionamento entre os seres humanos na busca do bem comum fala-se do Direito. As relações sociais devem ser orientadas à exaltação dos valores humanos, valores que são identificáveis nos seres, e capazes de serem apreendidos. E o valor norteador dos atos sociais, fundamento e preocupação do Direito, não é outro que a Justiça.

Quando se fala dos valores encontra-se uma forte oposição quanto a sua gênese, se subjetiva ou objetiva. Coloca-se a questão: são os valores expressões do ser, um estado de sua natureza, ou ao contrário, são eles sentimentos internos, subjetivos do observador?

O que se pode depreender do estudo acerca dos valores é a sua objetividade. Eles são na verdade expressões do ser. Não se coloca o valor nas coisas, elas o possuem. O observador é capaz, através de sua razão, de captá-los e identificá-los, objetivamente, ou seja, no objeto. E aqui não se confunda o que se tem por valor e o que se tem por preço, que é na verdade uma aferição da utilidade do objeto de acordo com sua necessidade momentânea. Fala-se do valor inerente ao objeto, no curso de sua existência, e que não pode ser subjetivamente determinado.

Não existirá então momento subjetivo na concepção dos valores? Obviamente existe a participação do sujeito no processo valorativo. Mas o que se pretende afirmar é que mesmo entre povos e culturas diferentes, os valores das coisas são os mesmos, pois integram o objeto. O que se processa subjetivamente em verdade é a escala individual de valores. Portanto, o que pode acontecer com determinado povo em determinada época é uma alteração na escala de valores da sociedade, devido a conturbações ou pacificações históricas, em acordo com o momento vivenciado pelos seus membros.

Ao conceito de Direito, necessariamente refere-se o seu condicionamento axiológico, ou seja, a Justiça, valor buscado por aquele. E sendo a Justiça um valor, pode ser apreendido no objeto que qualifica. O observador é capaz de identificar, no ato praticado, sua justiça.

Porquanto o homem, na busca de sua realização, a faz em convívio, manterá constantemente com seu semelhante certas relações. Na busca do chamado bem comum deverá comportar-se em conformidade com a escala de valores de sua época e de sua comunidade, e orientar suas condutas de acordo com estes fins eleitos, que deverão estar em harmonia com sua natureza humana, para que seus atos sejam qualificados de justo, e assim, conforme ao direito.

 

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[i] Eduardo C. B. Bittar, A Justiça em Aristóteles, p.75.

[ii] Giorgio Del Vecchio, A Justiça, p.22.

[iii] Werner Jaeger, Paidéia, p. 110.

[iv] Aristóteles, Ética a Nicômaco, p. 117.

[v] Locke e o Direito Natural, p.34.

[vi] Ylves J. Miranda Guimarães, Direito Natural, p. 26.

[vii] Edgar Bodenheimer, Ciência do Direito, Filosofia e Metodologia Jurídica, p. 25.

[viii] Ylves J. Miranda Guimarães, op. cit., p. 27.

[ix] Edgar Bodenheimer, op. cit., p. 26.

[x] Locke e o Direito Natural, p.35.

[xi] Edgar Bodenheimer, Ciência do Direito, p. 38.

[xii] Ibid., p. 39.

[xiii] Norberto Bobbio, Locke e o Direito Natural, p. 37.

[xiv] Michele Federico Sciacca, Historia de la Filosofia, p. 240.

[xv] Locke e o Direito Natural, p.41.

[xvi] Machiavelli, O Príncipe, p. 99.

[xvii] Norberto Bobbio, Locke e o Direito Natural, p.42.

[xviii] Edgar Bodenheimer, Ciência do Direito, p. 54.

[xix] Michele Federico Sciacca, Historia de la Filosofia, p. 339.

[xx] Edgar Bodenheimer, op. cit., p. 55.

[xxi] Ibid., p. 55.

[xxii] Michel Villey, Estudios en torno a la nocion de derecho subjetivo, p. 208.

[xxiii] Ibid., p. 121.

[xxiv] Norberto Bobbio, Locke e o Direito Natural, p. 44.

[xxv] Edgar Bodenheimer, A ciência do Direito, p. 56.

[xxvi] Ibid., p. 57.

[xxvii] Filosofia do Direito, p. 124.

[xxviii] Michele Federico Sciacca, ob.cit., p. 344.

[xxix] Dois tratados sobre o governo, p. 495.

[xxx] Dois tratados sobre o governo, p. 505.

[xxxi] Ylves Jose de Miranda Guimarães, Direito Natural, p. 48.

[xxxii] Michele Federico Sciacca, Historia de la Filosofia, p. 396.

[xxxiii] Do contrato social, p. 35.

[xxxiv] Ibid., p. 26.

[xxxv] Do contrato social, p. 58.

[xxxvi] Edgar Bodenheimer, Ciência do Direito, p. 78.

[xxxvii] Jacy de Souza Mendonça, Estudos de Filosofia do Direito, p. 40.

[xxxviii] Jacy de Souza Mendonça, Estudos de Filosofia do Direito, p. 42 e ss.

[xxxix] Hans Kelsen, Teoria Pura do Direito, p. 01.

[xl] Hans Kelsen, Teoria geral do Direito e do Estado, p. 20.

[xli] “el derecho natural ‘es lo que se le debe al hombre em virtud de su esencia’, esto es, por el simple hecho de ser hombre”. Apud German J. Bidart Campos, Valor Justicia y Derecho Natural, p. 119.

[xlii] Jacques Maritain, Os direitos do homem, p. 87.

[xliii] Ylves José de Miranda Guimarães, Direito Natural, p. 224.

[xliv] Vandyck Nóbrega de Araújo, Fundamentos aristotélicos do Direito Natural, p. 65.

[xlv] Ibid., p. 67.

[xlvi] Apud Eduardo García Máynez, Filosofía del Derecho, p. 497.

[xlvii] Johannes Hessen, Teoria do Conhecimento, p. 48-49.

[xlviii] Manuel Garcia Morente, Lecciones preliminares de Filosofia, p. 100.

[xlix] Michele Frederico Sciacca, Historia de la Filosofía, p. 423.

[l] Ibid., p. 427.

[li] German J. Bidart Campos, Valor Justicia y Derecho Natural, p. 28.

[lii] Luis Recasens Siches, Tratado general de Filosofía del Derecho, p. 60.

[liii] Eduardo García Máynez, Filosofía del Derecho, p. 30.

[liv] Jacy de Souza Mendonça, O curso de Filosofia do Direito do Professor Armando Câmara, p.149.

[lv] Manuel Garcia Morente, op. cit., p.375.

[lvi] German J. Bidart Campos, Valor Justicia y Derecho Natural, p. 55.

[lvii] Michel Villey, Filosofia do Direito, p.46.

[lviii] Ibid., p. 57.

[lix] Ibidem, p. 27.

[lx] Eduardo García Máynez, Filosofía del Derecho, p. 436.

[lxi] Vandyck Nóbrega de Araújo, Fundamentos aristotélicos do Direito Natural, p. 36.

[lxii] Eduardo García Máynez, Filosofía del Derecho, p. 413.

[lxiii] Filosofía del Derecho, p. 414 e 415.

[lxiv] Vandyck Nóbrega de Araújo, op. cit., p. 21.

[lxv] Luis Recasens Siches, Tratado general de Filosofía del Derecho, p. 534.

[lxvi] Ibid., p. 247.

[lxvii] Jacques Maritain, Os direitos do homem, p. 16-17.

[lxviii] Ibid., p. 58.

[lxix] Ibidem, p. 61.

[lxx] Ibidem, p. 65.

[lxxi] Ylves José de Miranda Guimarães, Direito Natural, p. 143.

[lxxii] Apud Eduardo García Máynez, Filosofía del Derecho, p. 456.

[lxxiii] Eugen Ehrlich, Fundamentos da Sociologia do Direito, p. 54.

[lxxiv] Eduardo García Máynez, Filosofía del Derecho, p. 93.

[lxxv] Montesquieu, O espírito das leis, p. 80.

[lxxvi] Luis Recasens Siches, Tratado de Sociologia, p. 138.

[lxxvii] Jacques Maritain, Os direitos do homem, p. 108.

[lxxviii] Paulo Dourado de Gusmão, Introdução à Ciência do Direito, p. 487.

[lxxix] Michel Villey, Filosofia do Dierito, p. 168.

[lxxx] Edgar Bodenheimer, Ciência do Direito, p. 216.

[lxxxi] Montesquieu, O espírito das leis, p. 79.

[lxxxii] Eugen Ehrlich, Fundamentos da Sociologia do Direito, p. 288.

[lxxxiii] Edgar Bodenheimer, Ciência do Direito, p. 39 e 40.                                                                                

[lxxxiv] Para que não se estenda o assunto, ver mais a respeito no Apêndice.

[lxxxv] Carlos S. Olmo Baú, La desobediência civil como conflicto entre Ley y Justicia, passim.

[lxxxvi] Tratado General de Filosofía del Derecho, p. 337.

[lxxxvii] Michel Villey, Filosofia do Direito, p. 136.

[lxxxviii] Michele Federico Sciacca, Historia de la Filosofia, p. 241.

[lxxxix] Fundamentos do Direito, p. 52.

[xc] Michel Villey, ob. cit., p. 136.

[xci] Ylves José de Miranda Guimarães, Direito Natural, p. 110.

[xcii] Eduardo García Máynez, Filosofía del Derecho, p. 172.

[xciii] Ibid., p. 173.

[xciv] Basave del Valle, Filosofia do Homem, p. 53.

[xcv] Edgar Bodenheimer, Ciência do Direito, p. 235.

[xcvi] Luis Recasens Siches, Vida Humana, Sociedad  y Derecho, p. 541.

[xcvii] Ibid, p. 542.

[xcviii] Miguel Reale, Filosofia do Direito, p. 244.

[xcix] Basave Del Valle, Filosofia do Homem, p. 182.

[c] Basave Del Valle, Filosofia do Homem, p. 184.

[ci] Ibid., p. 188.

[cii] Ibidem, p. 190.

[ciii] Ibidem, p. 192.

[civ] Filosofia Del Derecho, p. 488.

[cv] Filosofia do Direito, p. 245.