O MST e o Estado de Direito
Jacy
de Souza Mendonça é Livre Docente em Filosofia do Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul,
ex-professor de
Filosofia do Direito do curso de Pós-graduação da PUC-SP.
Ninguém
põe
em
dúvida
a
existência
do
Estado,
mas
há generalizada
dificuldade
quando
se
trata
de
explicar
sua
natureza.
Há
quem
procure entendê-la
como
resultado
da
força
–
física,
psicológica
ou
intelectual
–
pela
qual
uma
ou
algumas
pessoas
subordinam as
demais
e se arvoram
ainda
o
poder
de
estabelecer
as
regras
para
o
exercício
dessa
subordinação.
São
os
regimes
políticos
totalitários,
cuja
característica
comum
é pretenderem a
submissão
do
Direito
ao
poder
ilimitado da
autoridade.
Símbolo
dessa
posição
é a escravização do
Sexta-Feira
por
Robinson Crusoe.
Há
quem
a interprete, ao
contrário,
como
resultante
de
um
pacto
entre
os
cidadãos,
em
razão
do
qual
as
vontades
individuais
livremente
cederiam
parte
de
seu
poder
decisório
a uma
vontade
geral,
em
troca
de
benefícios
comuns.
Essa
concepção
foi simbolizada na negociação
entre
Robinson Crusoe e o
comandante
do
navio
inglês,
segundo
a
qual
aquele
ofereceu
segurança
e
este,
em
compensação,
lhe
garantiu o
livre
e
gratuito
regresso
à Inglaterra.
A
melhor
visualização
do
problema
é,
porém,
aquela
segundo
a
qual
o
Estado
não
se origina
nem
da
violência
dos
poderosos,
que
jamais
seriam
suficientemente
poderosos
para
tanto,
nem
de
um
contrato
social,
um
consenso
que
jamais
existiu,
mas
o
Estado
é uma
decorrência
necessária
da
natureza
gregária
do
ser
humano.
Vivemos
em
sociedade
porque,
de
acordo
com
a
nossa
natureza,
não
podemos
viver
sós.
Somos
essencialmente
solidários,
não
solitários.
O
que
varia no
tempo
e no
espaço
é
apenas
a
forma
de
organização
da
sociedade
humana.
No
convívio,
imposto
pela
natureza
humana,
a
liberdade do
cidadão
precisa
ser
conciliada
com a
liberdade
da
autoridade
– o
poder
– e a
liberdade de
cada
um
precisa
ser
conciliada
com a
liberdade
dos
demais. De todas
as
maneiras,
é
indispensável
preservar a
liberdade
de
todos,
pois
eliminá-la seria o
mesmo
que
eliminar
o
próprio
homem.
Mas, é uma
experiência
eterna
que
todo
homem, revestido de
autoridade, é
capaz de
abusar dela – e irá
até
onde encontre uma
barreira ( MONTESQUIEU – De l’Esprit des Lois
XI,
IV –1748 ),
observação
que
poderia
ter
sido estendida,
com o
mesmo
grau
de
validade,
ao
exercício da
liberdade
pelos
não
revestidos de
autoridade. O
equilíbrio
das
relações humanas
na
sociedade
política
só
é
possível
quando
há
respeito às
liberdades
individuais.
Se a
autoridade
estatal
abusa
no
exercício de
sua
liberdade,
de
seu
poder,
surgem as diversas
formas
de
despotismo; se o
indivíduo
ultrapassa os
limites
de
sua
liberdade,
temos as diversas
formas de
anarquia.
Despotismo
e
anarquia
são
os
extremos do
abuso da
liberdade
por
parte
da
autoridade
ou
do
cidadão.
Ora, o
excesso de
liberdade,
quer do
indivíduo,
quer do
Estado, conduz ao
excesso de
escravidão (
PLATÃO –
República – VIII
564 ),
ou seja, à
destruição
da
liberdade. É
imprescindível,
por
isso,
uma delimitação do
campo de
exercício
das
liberdades e os
limites
extrínsecos
a
esse
exercício,
impostos
quer
aos
cidadãos
quer à
autoridade,
são
e
só
podem
ser
traçados
pelo
Direito.
A
conciliação
dos
arbítrios
só é
viável
graças
ao
Direito,
que
também
não
é,
portanto,
fruto da
vontade
dos
detentores
momentâneos
do
poder,
mas,
outra
vez,
decorrência
da
natureza
humana.
Estado
e
Direito
são
instrumentos
de
realização dos
fins
humanos.
Como
o
Estado
não
tem o
poder
de
limitar
arbitrariamente as
liberdades
individuais,
não
tem
também o
poder
de
gerar
o
Direito
a
seu
exclusivo
critério
mas
é
apenas
encarregado
de implantá-lo na
sociedade, da
melhor
forma
possível.
Mais
do
que
isso,
além
de
não
ter
o
poder
criador
do
Direito, está
tão
sujeito
a
este
quanto
os
próprios
cidadãos,
contrariando os
que pensam
que seria
contraditório
admitir
um
poder limitado
pelo
Direito ( J. AUSTIN
Leituras de
Jurisprudência I,
270 ).
Da
necessidade
de
imposição
da
regra
jurídica
tanto
às
pessoas
quanto
às
autoridades,
decorre o
conceito
de
Estado
de
Direito,
aquele
em
que
as
pessoas
só
podem
ser
obrigadas a
fazer
ou
deixar
de
fazer
alguma
coisa
em
virtude
da
lei,
por
elas
mesmas
direta
ou
indiretamente
traçada, e as
autoridades
só
podem
exigir
dos
cidadãos
o
cumprimento
daquilo
que
tiver sido previamente estabelecido
em
lei.
A cunhagem desta
expressão,
Estado
de
Direito,
significando o
governo
da
lei,
em
oposição
ao
governo
dos
homens,
é atribuída a Roberto von MOHL – Die Polizeiwissenschaft nach den Grundsätzen
des Rechtsstaates –
em
1832,
mas
passou a
ser
adotada sistematicamente
em
Direito
e
em
Política.
Além
da
eliminação
da
vontade
arbitrária
do
poderoso
como
fonte
de
obrigação,
constituem pressupostos do
Estado
de
Direito
o
reconhecimento
dessa
faculdade
exclusivamente
à
regra
legal,
o
respeito
aos
direitos
fundamentais
da
pessoa
humana,
a
submissão
da
administração
pública
ao
império
da
lei
com
a
contrapartida
do
reconhecimento
de
direitos
públicos
subjetivos,
ou
seja,
direitos
do
cidadão
face
ao
Estado,
e,
finalmente,
a
aplicação
do
princípio
da
tripartição
dos
poderes,
mecanismo
indispensável
ao
controle
da
ação
da
autoridade,
para
evitar
seus
desmandos.
Essa
formatação do
Estado,
que
respeita e preserva as
liberdades
individuais, pode, no
entanto,
ser violentada
por
autoridades
que pretendem sobrepor-se ao
Direito – e disso
são
manifestações
recentes o
nazismo, o
fascismo e o
socialismo,
regimes
políticos
que pretenderam
conceder à
autoridade
poderes
sobre os
cidadãos,
com
total
desconsideração dos
limites traçados
pela
regra
jurídica. Essa
mesma
formatação do
Estado pode
ser
também violentada
por
indivíduos
que pretendem
exercer
sua
liberdade
em
desrespeito aos
limites traçados
pelo
Direito. A
tendência ao
anarquismo, no
plano
individual, é
assim a
contrapartida da
tendência ao
despotismo na
ordem
política.
A
manifestação
social
contra o
regime da
lei numa
determinada
nação pode se
caracterizar
como uma
revolta grupal
ou
como uma
revolução. O
que distingue uma dessas
formas de
oposição ao
sistema
face à
outra é
que, na
revolta, inexiste o
objetivo de
destruição
ou
substituição
abrupta do
sistema político-jurídico vigente,
enquanto
que, na
revolução,
esse é
precisamente o
objetivo
prevalente. Revoltados
são os
injustiçados
ou
aqueles
que se sentem
realmente
injustiçados, revoltados
são os insatisfeitos
com a
ordem
social,
que buscam
solução das
injustiças
ou das
causas de
suas
insatisfações
dentro e
segundo as
regras do
sistema
em
vigor. O revoltado pode
chegar ao
golpe de
Estado, à
substituição da
pessoa de
mandatários;
respeita,
porém, as
regras básicas das
instituições
políticas.
Revolucionários, ao
contrário,
são os
que buscam a
tomada do
poder, de
forma
normalmente
violenta
ou
sob
ameaça de
violência, tendo
por
escopo
obter a transformação da
estrutura do
Estado e da
regra
jurídica. O
pretexto
revolucionário é
sempre a
procura de
um
sistema político-jurídico
mais
justo,
mas
esse
conteúdo
não é
fundamental à
caracterização do
movimento
como
revolucionário. Há
revoluções
que podem
ser, ao
menos a posteriori, rotuladas
como
justas e outras
como injustas,
mas ambas
são, de
qualquer
forma,
revoluções.
Porque visam à
substituição da
ordem jurídico-política, as
revoluções culminam
não
apenas na
tomada do
poder administrativo,
mas se voltam
imediatamente
para a
formatação
constitucional e
legal do
País,
assim
como de
seu
sistema
judiciário.
As
revoluções obedecem a
um
processo de maturação
lento e
gradativo. Há
sempre uma
contestação ideológica da
ordem constituída, estimulada
por
um
ou
alguns
líderes,
figuras messiânicas
que prometem
um
novo
paraíso na
terra. Usando
símbolos e
bandeiras, o
líder e
seus
epígonos estimulam a
reação
contra a
ordem
social,
jurídica e
política vigentes, enfrentam e buscam
desmoralizar as
autoridades constituídas e as
instituições existentes.
Com
freqüência, buscam e obtêm respaldo na
religiosidade dos
povos e
em
seu
anseio de
preservação dos
direitos
naturais do
cidadão.
Assim o
movimento
fermenta e a
inércia
natural das
massas se transforma
em mobilização, a
mais das
vezes
hipnótica,
freqüentemente
sangrenta e muitas
vezes
suicida.
As revoltas podem eclodir
repentinamente, mas não incluem esses ingredientes, porque, essencialmente, não
estão pré-ordenadas à conquista do poder político.
Em
todas as
nações
há revoltados e
em
todas
elas
pode
haver
também
revolucionários.
Entre
nós,
podem
ser
identificados no
momento
pelo
menos
três
grupos
sociais
manifestamente
contrários
ao
status
quo: os
indígenas,
os
favelados
e os se-dizentes
sem
terra.
Os
índios
brasileiros
não
são
revolucionários,
embora
manifestamente
revoltados
contra
a
situação
histórica
em
que
se encontram. Foram
senhores
absolutos
de
todo
esse
território,
de todas as
suas
fantásticas
riquezas
e
belezas
naturais
e viram-se de
tudo
privados
pela
força
de recém-chegados,
apenas
porque
intelectualmente
mais
desenvolvidos
e belicamente
mais
bem
equipados. Submetidos à
condição
de
escravos
e praticamente dizimados
pela
força
ou
pelas
enfermidades
contra
as
quais
não
dispunham de anticorpos,
alguns
foram adquirindo
conhecimentos
e
habilidades
antes
exclusivas dos
invasores.
Aos
poucos
foram se reaproximando
ou
sendo reaproximados de
outros
grupos
aborígenes
remanescentes,
habitantes
de
regiões
remotas,
que
por
isso
não
passaram
pelo
mesmo
processo
de
dizimação
ou
assimilação
de
aptidões
dos
invasores.
Hoje
são
todos
revoltados
contra
a
perda
do
território,
a
perda
das
riquezas
naturais
de
que
viviam, a
perda
do
poder
de
que
desfrutavam, a
perda
de
sua
excelente
condição
física
original
e o
desaparecimento
lento
e
gradativo
de
sua
cultura.
Em
inúmeros
gestos
de
violência
coletiva,
às
vezes
pífios
ou
meramente
teatrais,
com
freqüência
agressivos
face
à
autoridade
pública
do
País,
demonstram
claramente
sua
revolta.
Mas
os
índios
brasileiros
não
são
revolucionários,
porque
não
pretendem,
pelo
menos
agora,
a
tomada
ou
retomada
do
poder
político
de
que
foram
titulares,
nem
o
desrespeito
generalizado
ou
a
ruptura
do
sistema
jurídico
nacional.
São,
porém,
manifestamente
revoltados
contra
o
estado
de
coisas
em
que
se encontram.
Para
mitigar
as
dores
de
suas
feridas,
os
oriundos
passaram a assegurar-lhes
território
demarcado,
proteção
militar
e
até
proteção
jurídica
especial.
Instalados
então
em
áreas
privativas,
titulares
de
etnia
e
cultura
próprias, falando
língua
específica,
cultuando
seus
próprios
deuses
e obedecendo
suas
próprias
normas
de
convivência,
estão,
por
certo,
sendo
preparados,
talvez
inconscientemente,
mas
pelo
menos
de
forma
muito
imprudente,
para
um
dia
pretenderem a
independência
e
quem
sabe a
retomada
de
tudo
o
que
lhes
foi
sacado,
inclusive
o
poder
político
da
região.
Então
sim,
o
que
é
hoje
apenas
revolta
poderá transformar-se
em
movimento
revolucionário
ou
até
guerra.
E
não
estamos
nos
entregando a
puro
exercício
de
imaginação
ou
futurologia,
pois
nações
vizinhas estão
já
vivendo
fases
bem
adiantadas de
processo
histórico
assemelhado.
Também os favelados
são manifestamente revoltados contra a condição social em que se encontram, como
a precariedade de suas habitações e da infra-estrutura básica de suas vilas, os
parcos rendimentos que conseguem, o baixo nível de educação e saúde de seus
filhos. Para agravar a ruptura social, são usados e aproveitados pela demoníaca
ação de produtores e comerciantes de droga, que lhes propõem pacto segundo o
qual eles fornecem mão de obra barata e corajosa em troca da receita financeira
e da proteção de que tanto carecem.
Mas os favelados não são
também revolucionários, porque não pretendem a tomada do poder nem a ruptura da
ordem jurídica constituída mas tão-somente a compensação de suas carências. Nem
há probabilidade de que essa revolta se transforme em movimento revolucionário
porque são conscientemente brasileiros que pretendem manter essa condição,
sujeitos ao regime político e jurídico nacional, querendo apenas sejam reparadas
as deficiências pelas quais se sentem agredidos e injustiçados.
Não é o que ocorre com os
se-dizentes sem terra. Ao contrário do que se passa com indígenas e
favelados, não se trata de um grupo social homogêneo, unido pela cultura e raça,
como os primeiros, ou pelas condições de pobreza, como os últimos, mas trata-se
de um aglomerado de pessoas de todos os matizes. São sindicalistas, operários,
funcionários públicos, estudantes e desempregados, habitantes de cidades ou de
regiões rurais, até mesmo pessoas com propriedade imobiliária, que
declaradamente contestam e pretendem derrubar a estrutura política e jurídica do
País. O rótulo sem terra é apenas um rótulo mesmo, uma bandeira,
necessária para amalgamar o movimento, assim como os símbolos da foice e da
bandeira vermelha, que provocam imediata associação com movimentos sangrentos da
História recente. Equivocou-se, por isso, o Presidente da República quando, num
gesto magnânimo, mas certamente inocente, ofereceu-lhes recursos financeiros
para assentamentos rurais, ofereceu terra aos sem-terra, ofereceu a satisfação
do objetivo explícito do movimento, pretendendo assim extingui-lo. Em troca,
recebeu apenas acintosas manifestações de desrespeito e até ameaça de ocupação
de sua propriedade. Equivocou-se, porque eles não são sem terra nem pretendem
apenas terra mas, em verdade, pretendem o lugar dele. Utilizam-se do anseio
natural do ser humano pela propriedade da terra somente como forma de cativar
adeptos e ampliar o universo de revolucionários. Agridem frontal e brutalmente a
ordem jurídica quando ocupam bens de outros cidadãos, ousando até a ocupação de
bens públicos. Não se deixam inibir sequer pela mais grave legislação penal que
condena a violência a pessoas e os crimes contra a vida. Para demonstrar o grau
de risco que estão dispostos a assumir, tomam a iniciativa de provocar
cinicamente o confronto com as mais altas autoridades públicas. Tão poderosos já
são e tão grave é a situação, que, para coibir seus desmandos, não são mais
suficientes policiais encarregados de zelar pela ordem interna mas são
necessários militares, cuja missão está dirigida à defesa do País contra
agressores externos.
Foram beneficiados pela
tibieza dos encarregados de manter a ordem, que, por motivação política, de
raízes ideológicas ou meramente demagógicas, deixaram de coibir de pronto, e com
a firmeza que se fazia necessária, suas primeiras invectivas, e procuraram
tratar seus atos não como crimes, que na realidade são, mas como inocentes
movimentos sociais, e tratar seus líderes não como delinqüentes, que na
realidade são, mas como heróis nacionais. Contaram, ainda, com o habitual
comportamento benevolente dos líderes religiosos e com a simpatia da imprensa.
Certamente todos estão arrependidos agora da fragilidade inicial de sua reação.
Mas já é tarde. O MST é hoje, indiscutivelmente, uma força ousada e poderosa que
pretende a conquista do poder e a revisão da ordem jurídica vigente no País. Uma
força revolucionária em marcha, à semelhança de outras que grassam em nações
sul-americanas, inspiradas na falida e desastrosa experiência revolucionária
bolchevista.
O MST oferece, enfim, elevado grau de risco
político, pois, por sua natureza, agride o Estado de Direito: desrespeita
intencionalmente as regras que possibilitam o exercício da liberdade pelos
cidadãos e desrespeita as instituições e autoridades constituídas. A fim de que
não haja arrependimento grave num futuro próximo, o bem da Pátria exige seja
posto um termo final, ainda que doloroso, a sua marcha revolucionária, que visa
declaradamente a derrubada dos sistemas jurídico e político sob os quais
vivemos.