O Homem e o Direito[1]

 


Jacy de Souza Mendonça é Livre Docente em Filosofia do Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, ex-professor de Filosofia do Direito do curso de Pós-graduação da PUC-SP.


 

       a) O século XX

O pensamento filosófico dos séculos XIX e XX sofreu avassaladora influência de dois extraordinários filósofos: Augusto COMTE e Emanuel KANT. As condições culturais da época em que viveram influenciaram a opção de ambos pela mesma problemática filosófica: justificar o conhecimento científico que o matemático inglês Isaac NEWTON valorizara; indagar sobre a legitimidade das leis científicas emergentes de conhecimentos fundados exclusivamente na experiência, mas com pretensões à validade universal e necessária. Como a experiência se dá no tempo e no espaço, em princípio, dela jamais poderiam resultar conhecimentos universais e necessários, como pretendiam os cientistas. Na tentativa de solucionar este impasse, chegaram ambos a resultados assemelhados: nossa inteligência não é capaz de apreender a natureza das coisas, deve contentar-se com o registro de suas aparências. A frase que sintetiza essa conclusão em COMTE – a incognoscibilidade do supra-sensível – é semelhante à de KANT – a incognoscibilidade da coisa em si. Das duas resulta o reconhecimento do valor da ciência e o desprestígio da Filosofia.

No mundo jurídico e político, a limitação à aparência e o menosprezo pelo filosofar significaram a renúncia à indagação sobre o essencial no Direito e a aceitação, como absoluta, da forma temporal e espacial como ele se revela: a vontade do mais forte. A proposta jurídica do marxismo, nas Repúblicas Socialistas Soviéticas, caracterizou a mais acabada aplicação desta visão do Direito, mas não foram diferentes nazismo e fascismo. Justificaram-se os desmandos de grandes paranóicos e grande número de sequazes que derramaram em profusão o sangue de inocentes na velha Europa.

 

b) Formalismo e relativismo jurídicos

De acordo com as lições aristotélicas e escolásticas, entramos em contato com as manifestações temporais e espaciais dos seres e, a partir delas, formulamos ideias universais e necessárias que lhes correspondem. Para COMTE, todavia, nosso conhecimento equivale ao mero registro da aparência dos objetos (forma objetiva) captável pelos sentidos; para KANT, nossa experiência está condicionada a captar o real como se ele se desse no tempo e no espaço – o fenômeno (forma subjetiva)– e nosso entendimento busca, sem possibilidade de sucesso, apreender-lhe a essência, a coisa em si. Dois formalismos.

Para o positivismo jurídico, fenômeno observável do Direito seriam a norma ou o fato social. Só a aparência existiria e poderia ser objeto de conhecimento; o essencial seria incognoscível. A ciência do Direito seria válida por ter como objeto o fenômeno experimentável, mas a Filosofia do Direito impossível, porque seu objeto seria a incognoscível essência do Direito.

O conflito entre formalismo e essencialismo no Direito já estava presente na tragédia grega. Em Antígone, SÓFOCLES coloca o espectador ante o dilema de escolher entre a validade formal do decreto do imperador Creon proibindo o sepultamento de seu adversário político, ou a faculdade de Antígone de rebelar-se contra ele, descumprindo-o, sob motivação de tratar-se essencialmente de injustiça, porque uma lei, superior à de Creon, inscrita pelos deuses em seu coração, determinava-lhe dar à sepultura o cadáver de seu irmão. PLATÃO registrou também a necessidade de conteúdo justo para o Direito em duas oportunidades: nas palavras de CÁLICLES, para quem “os homens débeis estabelecem leis pródigas em privilégios e restrições para si mesmos, a seu proveito; querem atemorizar os mais fortes, os mais capacitados a terem mais e, para isso, afirmam que é feio e injusto possuir mais e que a injustiça consiste em tratar de conseguir mais do que os outros” [2]; na afirmação contrária de TRASÍMACO, “a justiça é simplesmente o interesse (não do mais fraco, mas...) do mais forte” [3].

O formalismo objetivo positivista repete a tese segundo a qual o Direito é Direito porque é Direito; tem força cogente que independe de seu conteúdo e emerge exclusivamente da vontade do mais forte, enquanto o formalismo subjetivista do Direito, acolhido pelos juristas inspirados em KANT, limita-se a uma forma de pensar.

Todas as manifestações do formalismo conduzem, porém, ao relativismo e explicitam uma atitude cética sobre a capacidade de a inteligência humana, a partir de fenômenos, apreender com objetividade a natureza das coisas; segundo elas, no plano jurídico, devemos nos conformar com os registros de aparências e a vontade do poderoso.

Todos os relativismos jurídicos geram insatisfação. Mesmo os romanos, depois de desenvolverem extraordinário sistema jurídico destinado aos seus cidadãos, reconheceram a estrangeiros e peregrinos, aos quais aquelas leis não eram aplicáveis, regras assemelhadas, que qualificaram como direito de todas as gentes (jus gentium), regras jurídicas aplicáveis a todos, pelo simples fato de serem homens.

No fundo, na medida em que se satisfaz com a aparência de Direito, o formalismo jurídico não passa de contraditória negação do Direito.

 

c) O conteúdo da regra jurídica

A forma é insuficiente para determinar a natureza de um comando. Não é ela, mas seu conteúdo, que faz com que o Direito seja Direito – um conteúdo que corresponda à realização da natureza humana.

O homem pode descobrir ou não o conteúdo justo da lei; pode aproximar-se dele mais ou menos; pode apreender, sob forma empírica ou científica, a origem, os relacionamentos, os fins do fenômeno jurídico e pode também, sem jamais esgotar a realidade essencial do Direito, aproximar-se sempre mais de sua essência, pelo conhecimento filosófico.

Embora o conflito entre forma e conteúdo, encenado por Antígone, tenha sempre existido, ele atingiu seu ponto crítico na metade do século XX, quando a humanidade não suportou mais os desmandos de um Estado hipertrofiado conduzido por grandes paranóicos, promulgando leis formalmente válidas, impostas pela força, que levaram povos inteiros à desgraça. A partir do fim da segunda guerra mundial, começou o declínio da influência das idéias aparentemente incontestáveis de COMTE e KANT. Não mais a forma, mas o conteúdo justo da lei passou a ser importante.

Não há dúvida de que a ideia positivista trazida para o âmbito jurídico ofereceu ao cidadão garantias apreciáveis, capazes de limitar o arbítrio da autoridade. O princípio do Estado de Direito, segundo o qual ninguém pode ser obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei e o correspondente princípio do Direito Penal segundo o qual não há crime, não há pena sem prévia lei que os defina, ganharam extraordinária força. Mas todas as formas de positivismo jurídico têm em comum a negação da existência de leis jurídicas presentes na natureza humana.

Assim o positivismo jurídico deixou sem solução a questão jurídica fundamental, pois o querer, oriundo embora da autoridade deificada do Estado, não é bastante para justificar o agir; ele manifesta a opção de alguém por um comportamento dentre outros possíveis, opção que supõe juízo de valor sobre as alternativas disponíveis. Ora, o Estado não é o criador do justo, mas apenas descobridor de formas mais ou menos justas de comportamento que procura inserir no convívio. Pode ser aceito, então, como fonte da forma legal do Direito, não como seu criador ab ovo. O Direito encontra-se essencialmente pronto na natureza humana; o encargo do Estado consiste apenas em explicitá-lo e implantá-lo na sociedade.

 

d) A virada do século

Com frequência, no combate às ideias, os fatos têm mais força do que outras ideias. No caso, o debate sobre Direito e Justiça é interminável, mas, se alguém sofre uma injustiça, imediatamente brilha diante dele luz fulgurante que aponta para o caminho do justo contra a vontade do poderoso, mesmo que ela tenha sido expressa sob a forma de lei ou de sentença condenatória.

Não se pode imputar ao positivismo jurídico a culpa exclusiva pelo surgimento de movimentos como o nazismo, o fascismo e o socialismo, nem pelos desvarios de paranóicos como HITLER, MUSSOLINI, STÁLIN e seus seguidores, mas a corrente positivista deu a esses movimentos e a esses déspotas o suporte filosófico de que necessitavam.

No final da segunda grande guerra, os líderes aliados, prevendo a vitória, deliberaram que os responsáveis pelo evento não podiam ficar impunes nem deviam ser submetidos a simples execução militar. Como gesto exemplar para o mundo, seria melhor submetê-los a julgamento público. Para isso, concertaram a definição dos crimes que lhes deveriam ser atribuídos e seriam objeto de julgamento (crimes de guerra, contra a paz e contra a humanidade), a constituição do tribunal e o processo de julgamento. Escolhida a cidade de Nürnberg para sede de um tribunal adrede, reuniram-se lá, após a cessação do conflito, representantes das quatro potências aliadas.

Filosoficamente, a grande dificuldade das sentenças de Nürnberg decorre da aceitação ou não do positivismo jurídico, pois, se tudo o que o poderoso quer tem validade jurídica e se é reconhecido como válido somente o Direito revelado sob a forma da lei, o julgamento de Nürnberg foi antijurídico, pois os réus nada mais fizeram do que cumprir a vontade do Führer. Não havia lei anterior definindo os crimes e penas aplicadas aos réus, pois a carta-estatuto do Tribunal, resultante do acordo de Londres, não preenchia requisitos de lei local ou internacional. Além disso, os réus não foram julgados por um tribunal com jurisdição para os fatos, que só poderia ser um tribunal regular alemão com jurisdição no local em que os desatinos tinham sido perpetrados; nem foram julgados por magistrados isentos, pois os juízes eram estrangeiros, representantes dos vitoriosos. Não foram obedecidas, também, as regras mais elementares de processo, como o duplo grau de jurisdição, embora se tratasse de sentenças nas quais era aplicada a pena capital. Estas falhas foram apontadas por juristas de todo o mundo, principalmente penalistas educados sob o signo do positivismo jurídico.  

No outro extremo, figuras extraordinárias do mundo jurídico como Gustav RADBRUCH, vítima das injustiças praticadas pelo sistema político implantado pelos réus, tomou o partido da defesa dos julgamentos em nome da Justiça, contra a limitação à forma da lei. O dilema estava posto: a lei contra a Justiça ou a Justiça contra a lei e não havia como sustentar a solução correta: a lei justa.

 

 e) A axiologia moderna

Essa crise provocada pela catástrofe bélica levou os pensadores à consciência da necessidade de não aplicar qualquer Direito positivado, mas buscar a aplicação de forma jurídica que torne possível a realização da Justiça; levou-os à preocupação com o núcleo justo no Direito, em oposição ao repulsivo resultado injusto a que ele pode conduzir; um núcleo que vale, em oposição ao outro, que não vale.

Os juristas foram então inspirados pelos axiólogos contemporâneos que apontaram para o bem a realizar e o mal a evitar; indicaram o belo como meta e o feio como desvio; invocaram o justo a ser realizado na sociedade dos homens e o injusto a ser evitado. O Direito Positivo nada mais seria do que uma forma de concreção do ideal de Justiça, como o pentagrama, a tela, o mármore ou a pedra sabão servem às revelações do belo.

Acontece que, principalmente depois de KANT, é grande a tentação de afirmar que os valores são subjetivos. Afirma-se que a moral é subjetiva, sem levar-se em conta que essa afirmação equivale a dizer que ela não existe. Afirma-se que a Justiça é subjetiva (o que é justo para um não é para outro), o que importa em admitir a inexistência da justiça. Aceita-se o belo como subjetivo, porque a mesma obra de arte é acolhida por uns sob aplausos e rejeitada por outros com apupos, sem considerar que, assim, nega-se o belo. Confunde-se, enfim, a realidade dos valores com a forma como os vivemos.

Ora, depois de criá-las, “Deus viu que todas as coisas eram boas”, como está escrito no livro sagrado - todas realizam os fins naturais para os quais foram criadas. É o bem ontológico. Os minerais são bons na medida em que resistem à destruição. Os vegetais são bons na medida em que perduram na existência e na espécie, graças a mecanismos reprodutivos vegetativos. Os animais resistem como os minerais e perpetuam-se na espécie como os vegetais, impulsionados, no entanto, por instintos, uma espécie de inteligência larvada, inconsciente, presente em sua natureza. “Todo ser, enquanto ser, é bom” [4], pois ser bom, ontologicamente, é realizar a própria natureza, realizar os fins de sua natureza.

 

f) O retorno ao humanismo

Apenas uma criatura foi dotada da capacidade de conhecer seus fins naturais e desviar-se deles: o homem. Como os demais, ele é ontologicamente bom na medida em que é inteligente, livre e social; mas, como natureza in fieri, deve fazer-se e pode desviar-se dos rumos positivos desta realização, desviar-se dos valores. Nele o bem ontológico transmuta-se então em possibilidade consciente e livre de realização dos fins naturais, assumindo características de bem (ou mal) axiológico. Pelo fato de ser homem, um ser-que-deve-ser, que deve buscar livremente a realização de seus fins, sua inteligência pode apontar-lhe a direção a seguir e sua vontade pode deles desviar-se. O bem humano torna-se, assim, dinâmico: “deve fazer o bem e evitar o mal” [5], seu comportamento deve ser valioso e não desvalioso, alternativa que instala os valores no mundo humano (e só no mundo humano).

O bem moral, ação boa, valor bem, não é, pois, fruto da vontade do agente nem de convenção social, mas está presente na natureza do ser que age. Fruto da vontade é apenas a decisão de seguir ou não o caminho natural da ação. Quando o homem, no exercício da liberdade, opta pela conduta desviada dos rumos naturais, está escolhendo o desvalor, oposto à conduta valiosa, e pagando com uma diminuição relativa de seu ser, pois poderia ser mais e melhor e resulta menos e pior. A regra ética ou moral é o caminho que a natureza aponta à razão como rumo para sua realização, sua perfeição. O justo, ou valor justiça é modalidade desse valor bem, como perceberam e escreveram os velhos romanos, ao afirmarem a posição dos princípios morais (viver honestamente, não prejudicar ninguém e dar a cada um o que lhe pertence) entre os pressupostos das regras jurídicas. Esses fins que dão o traçado essencial da natureza humana não são exclusivamente individuais, porque são também os fins da natureza dos demais homens; essa identidade de fins chama-se fins comuns e essa coincidência de bens a realizar denomina-se bem comum.

Enquanto a correspondência aos fins últimos da natureza humana é parâmetro que define a ação como axiologicamente (moralmente) boa, a correspondência da ação relativa a outrem com os fins sociais da vida qualifica-se como axiologicamente (juridicamente) justa.

O que será, então, esse justo que a inteligência humana capta em determinadas situações e que leva alguns à habitualidade do procedimento, mas a outros não move sequer ao respeito? Não é realidade concreta nem pura idéia, mas é realidade que se propõe ao pensamento humano como objeto cognoscível: é uma forma de agir que se impõe, por natureza, dentre muitas possíveis; é situação em si mesma valiosa, relativamente a outras desvaliosas.

À inteligência humana compete descobrir a direção natural do agir; à vontade livre do homem a tarefa de inserir esse procedimento na história, proceder sempre em tal direção.

Assim, é na natureza humana que se encontram as leis jurídicas; é nela que o agente deve buscar a orientação para sua conduta; é nela que o legislador positivo deve buscar inspiração para seu trabalho, que não passa de uma técnica para modelar a conduta humana; é nela que o julgador encontrará elementos para a interpretação das leis vigentes e o preenchimento das lacunas do sistema.

 

g) A justiça

Nas várias modalidades de convívio podem ser encontradas condições propícias à realização do ser humano, junto com a realização dos demais. Este é o bem comum: o conjunto de condições que possibilitam a todos buscar juntos a plenitude de ser.

Bem comum àqueles que convivem politicamente é o conjunto das condições que possibilitam a todos a realização de seus fins últimos. Como fim e bem são conversíveis, fim último equivale a bem último e bem comum corresponde a fim comum, ou fim social da vida.

Cada coisa é, por natureza, um feixe de energias direcionadas a determinada finalidade; visto em sua individualidade, cada ser tem o seu fim essencial, busca os fins intrínsecos à sua natureza. A partir daí, define a escolástica “fim como aquilo a que todos apetecem” [6].

A natureza humana está pré-determinada a seus fins, os valores, e marcha inelutavelmente em direção a eles. Todos buscam sempre os valores da vida, os valores econômicos, o bem, o belo, a verdade e a santidade. Cada qual, no exercício de sua liberdade, pode alterar esta ordem e atribuir a algum destes valores peso significativo maior que a outros, mas ninguém pode afastar-se do rumo geral que é realizar valores na existência, buscar os fins últimos da natureza humana.

No plano antropológico, o bem assume dimensão ética. O bem moral corresponde à ação conforme aos fins da natureza humana que se concretizam não como necessidade, mas como possibilidade, pois o homem, graças à liberdade, pode realizá-los ou não. Direção boa é aquela que o leva à perfeição relativa, ao acabamento de suas virtualidades naturais; direção má é a possibilidade oposta. A ação moral é o comportamento cujos fins intencionados correspondem aos fins intrínsecos, totais, traçados na natureza; a ação má, ou imoral, ao revés, é aquela cujos fins buscados negam ou contradizem esses fins. A ação jurídica tem estrutura assemelhada. Sua referência, no entanto, não são os fins últimos da pessoa, mas apenas dos fins sociais intrínsecos à natureza humana, indispensáveis à realização dos fins últimos.

As sociedades são constituídas pela natureza ou pela vontade de seus membros como instrumentos que possibilitem a realização, em comum, dos fins últimos de cada pessoa. Os fins das sociedades são, portanto, meios para a realização dos fins humanos.

Há sociedades necessárias, que visam a gerar e preservar as condições necessárias para que todos os seus membros possam realizar a totalidade dos valores. A primeira é a família, reunião de pessoas voltada para as condições que permitam a seus membros buscar e realizar os fins totais de sua existência, a plenitude dos valores, a plenitude de ser. A segunda é a sociedade política que, como a família, é essencialmente modo de co-existência que busca um fim comum aos seus membros, correspondente à geração e preservação de condições que proporcionem a todos os que dela participam a concretização plena de suas potencialidades – a realização de todos os seus valores. Assim como a família, a sociedade política é imprescindível ao homem. Nela e graças a ela faz-se possível àqueles que a integram buscar a concreção dos valores, realizarem-se como pessoas.

A procura de condições gerais para a realização de algum ou alguns valores em espécie determina a criação de sociedades particulares, voluntárias.

Os valores, pois, enquanto fins da natureza humana, são buscados por todos, consciente ou inconscientemente, quer na intimidade de suas individualidades quer em sua dimensão social. Constituem os fins últimos da pessoa humana que, na busca de sua realização, dependem de condições grupais. O fim ou bem comum colimado por todos aqueles que integram uma sociedade, necessária ou voluntária, é gerar condições que propiciem a todos a realização de seus valores.

Mas, enquanto o comportamento do homem é imprevisível, por ser livre, é racionalmente previsível a forma como ele deveria comportar-se no atendimento às exigências de sua natureza. A inteligência humana é apta à descoberta desse rumo e das leis que a ele conduzem, podendo até descrevê-las como prescrições naturais, leis naturais da existência.

O nauta, abandonado na imensidão do mar, pode consultar a bússola e descobrir a orientação correta a imprimir a seu barco. Conhecendo o rumo correto, no entanto, pode optar por outro – é livre. Assim como a bússola aponta o norte ao navegador, as leis naturais apontam o bem comum a todos os membros da sociedade; eles podem persegui-lo ou não.

As condições que integram o bem comum podem ser alteradas no tempo. Aquelas que proporcionavam na Grécia a realização dos atenienses eram diferentes das que foram buscadas na Idade Média para o aperfeiçoamento dos medievos, e mais diferentes ainda em relação às condições adotadas pelos Estados modernos para seus cidadãos.

O Estado não é, porém, criador, mas criatura do bem comum. Quando um grupo de ingleses abandonou a pátria e mudou-se para o Novo Mundo com o objetivo de ali constituir uma sociedade que lhes possibilitasse buscar a riqueza em liberdade, estava já formada uma sociedade que, até hoje, se orienta por esse objetivo comum.

O que essencialmente confere o qualificativo de justa à relação humana é sua conformidade ao bem comum. Justa é a relação humana que está em conformidade com os fins da vida, enquanto a vida é convívio (o bem comum). Como o bem do homem só se realiza com o bem do outro, neste modo plural de participação no bonum, nesta busca em comum do bem comum está o justo.

O Direito é tradução dos caminhos para a conformidade ao bem comum revelada sob forma de regras. É fruto, portanto, da ordem humana, da ordem antropológica, da ordem social humana, uma ordem não inventada ao alvedrio de quem quer que seja, mas imposta objetivamente como condição de realização do ser humano. Seu autor não é o Estado. A necessária presença da finalidade (bem comum) em qualquer grupo é bastante para fazer com que nele surjam naturalmente regras de procedimento.

 

h) O dever

Toda norma indica um procedimento obrigatório – um dever. Este registro impõe alguns questionamentos: por que o homem não pode fazer tudo o que quer, mas deve fazer algumas coisas, mesmo sem querer? O que deve o homem fazer: aquilo que outro homem lhe impõe, que a divindade lhe ordena ou que sua natureza indica? Esta é a temática da gênese do dever-ser, que envolve toda a problemática ontológica e axiológica do Direito.

Duas rupturas resultaram das conclusões de KANT: a primeira, entre o ser e o pensar, pois a essência das coisas é, para ele, inacessível ao entendimento humano, prisioneiro de suas formas subjetivas (categorias) e incapaz de verificar a correspondência desses condicionamentos ao mundo do objeto. A segunda ruptura dá-se entre o ser e o dever-ser, porque é para ele impossível, a partir do ser, descobrir o dever-ser. Enquanto a Filosofia perene busca compreender o dever-ser a partir do ser que deve, KANT e os filósofos que aderem a ele tratam o Direito como um dever-ser sem nenhuma relação com o ser. Não atentam para o fato de que o homem é o único ser-que-deve-ser, “o único ser que não pode realizar-se senão ultrapassando-se” [7], como magnificamente definiu Louis LAVELLE. Graças à sua inteligência e liberdade, deve fazer-se, construir-se. Além disso, tem consciência de estar ao lado de outros seres de mesma natureza, um estar-face-ao-outro que não é neutro: o outro penetra minha existência e eu integro a vida dele – nós nos constituímos no existir, somos sócios na vida. É por isso que nem tudo o que quero posso fazer em sociedade e nem tudo o que ele pretende pode também fazer.

Formalmente, no mundo do dever jurídico, as vontades comuns podem ser, porém, coordenadas extrinsecamente por terceiros: alguns, credenciados por sua aptidão racional para a descoberta das formas ideais de limitações (doutrinadores, cientistas, filósofos do Direito); outros, pelo poder de que são revestidos para editarem, sob forma geral, regras positivas de conduta (legisladores); outros ainda, pelo poder de impor, em situações específicas, a obediência a elas (juízes).

Essencialmente, o dever resulta do nada que o ser do homem abriga: da tensão entre ser e nada que constitui sua natureza. No homem, esses pares antitéticos (ser ou nada) não se excluem, interpenetram-se, relacionam-se na explicação do dever. O homem é o lugar de encontro do ser com o nada: não é plenitude ôntica nem absoluto no qual não haja margem para a contingência (para o nada), nem está irremediavelmente fechado em suas próprias limitações, fixado no nada que o cerca: pode ser mais do que é, vencer o nada com o qual conflita, atualizar-se, transcendendo-se no dinamismo que aponta para seus fins imanentes.

Uma das propriedades essenciais do homem é a sociabilidade. É um animal político, repetindo ARISTÓTELES. O convívio é o plano necessário ao encontro com o outro, em busca de sua finalidade intrínseca, por isso, deve constituir-se de modo a permitir e facilitar a realização dos fins pessoais. As relações humanas que nele têm lugar devem estabelecer-se de modo a conservá-lo e aperfeiçoá-lo.

Direito não é, assim, ordem arbitrária de Deus, menos ainda do usurpador ou revolucionário dominante; nem é, pura e simplesmente, decisão regular de regular aparelho legislativo, tomada por maioria ou unanimidade. Tudo isso pode ser aparentemente Direito, mas, essencialmente, Direito é mandado da natureza humana, segundo o qual, nas relações com os outros, devem ser respeitados os fins do convívio, como condição que possibilite a todos atingirem seus fins últimos. Direito é, então, imperativo ontológico. Como ocorre no plano ético, a regra jurídica não pode permanecer em sua universalidade natural, embora só aí goze de plena evidência; é necessário, atendendo a peculiaridades da natureza humana, obter fórmulas lógicas que a apliquem ao caso concreto – é o Direito Positivo.

 

i) O homem

Essa conclusão obriga refletir sobre a natureza do homem. Compreendê-la foi, aliás, a primeira preocupação do pensamento grego. Só depois se preocupou com a explicação da natureza e, ainda assim, para concebê-la a partir do homem, formulando teorias antropomorfizadas do universo, modeladas sob a ordem humana à qual foi aplicada até uma justiça semelhante à dos homens.

O homem é conflito, tensão no mundo. Nele brigam a tendência à sociabilidade e a inclinação ao individualismo, o que permite defini-lo como sociabilidade insociável. SARTRE escreveu em seus exageros que o outro é causa de limitação, amesquinhamento, porque, com seu olhar, transforma-nos em coisa, em objeto, em en-soi; é o inferno.

 O homem está, de fato, localizado em uma escala ontológica na qual, abaixo dele, estão seres não dotados de espiritualidade e, acima dele, puros espíritos. Não é, porém, um ente material dotado de espiritualidade, nem um espírito que carrega um corpo como invólucro. Não é um híbrido que funde materialidade animal com espiritualidade angelical, mas é o lugar de encontro do espírito com a matéria. Separados espírito e matéria, não surgem, como resultado, duas realidades – um anjo e um animal, um espírito e uma matéria. Liberdade é a capacidade de opção entre o bem e o mal, o melhor e o pior. É um dos predicados específicos de sua natureza, que não se confunde com indeterminação, como parecem exibir as aves que estão nos céus, os peixes que estão no mar e os animais que estão na terra. A imagem de um albatroz planando sem destino na imensidão do firmamento ou um corcel galopando nas coxilhas do sem fim são apenas ilusões poéticas de liberdade, porque estão apenas fazendo obrigatoriamente aquilo que a natureza lhes traçou. Não são livres, não podem optar.

Foi das rupturas kantiana e comtiana, da renúncia à aptidão para conhecer o que é justo ou injusto e da descrença na capacidade de optar entre um e outro, que se chegou à catástrofe jurídica do século XX. Foram necessárias, então, duas guerras, envolvendo a humanidade inteira, para começar o movimento universal visando a destruir a hipertrofia estatal. A partir daí, implodiu o império dos nazistas, dos fascistas e dos socialistas e renasceu a paixão pela liberdade, determinando repensar o Direito. A partir daí renasceu a preocupação com a liberdade do homem.

O Direito faz parte de um conjunto de instrumentos que servem à conciliação das liberdades individuais, ao traçar o rumo a trilhar, de forma a que cada um possa exercer sua liberdade sem atropelar o mesmo exercício por parte de seus sócios na existência. É restrição à liberdade, não negação. O fato de existirem ou poderem existir indicações que apontam para determinado rumo (normas permissivas ou proibitivas), papel desempenhado pela Ética e o Direito, não significa negação da liberdade, mas auxílio para seu exercício.

O conflito entre autoridade e liberdade, por sua vez, só existe porque homens investidos de poder, com frequência, acreditam-se todo-poderosos, acreditam que sua vontade tem o poder de definir arbitrariamente rumos à ação dos súditos, quando, em verdade, são chamados apenas para descobrir os rumos corretos do comportamento social, revelá-los e auxiliar para que todos os trilhem. Graças à compreensão de que o indivíduo precisa ser protegido pelo Direito e graças também, em boa parte, à contribuição do positivismo jurídico, podemos hoje exercer nossa liberdade, não estamos entregues ao arbítrio do poderoso, vivemos sob o império da lei. Somente somos obrigados a fazer ou deixar de fazer alguma coisa em virtude de lei. É o momento apoteótico do que chamamos Estado de Direito, regra traduzida também no princípio da reserva legal, fundamental ao Direito Penal, segundo o qual não há crime, não há pena sem lei anterior. É a lei protegendo o cidadão contra o poderoso. O que este quer só deverá ser cumprido se for previsto em lei. 

Mas, aprofundando a análise das peculiaridades de nossa natureza, somos livres porque somos inteligentes. Porque nossa inteligência pode visualizar e apontar a direção boa e a má, nossa vontade pode escolher uma ou outra. A inteligência é, portanto, condicionante da vontade na busca do bem. É, por isso, a mais importante das aptidões que especificam nossa natureza. Não tivéssemos condições de conhecer o bem e o mal e não poderíamos optar entre um ou outro; não haveria lugar para os ordenamentos ético e jurídico.

Tanto a liberdade quanto a inteligência, riquezas inegáveis de nossa natureza, são, no entanto, frutos compensatórios de nossas deficiências, instrumentos que podemos usar para compensar a relatividade de nosso ser, para nos fazermos melhores. Como seres inacabados, incompletos, precisamos e podemos nos realizar; podemos ser cada vez melhores; para isso, dispomos da inteligência como farol que orienta no rumo do bem; e da vontade que nos possibilita a opção por esta direção. Nossa é a escolha e, para facilitá-la, o Direito é instrumento inteligente que serve para nortear rumo ao justo, ao bem, à perfeição.

Em vez de focar os fins totais da natureza humana, podemos ocupar-nos de seus fins secundários, parciais, que se encontram na mesma direção. Fins totais da vida é conceito maior do que fins da vida enquanto a vida é convívio, apesar de que estas finalidades são elos da mesma cadeia. Se os fins do convívio não correspondem integralmente aos fins totais da vida, ao menos não conflitam com eles.

A descoberta do sentido da jornada humana em direção a seus fins proporciona, então, a descoberta das leis que orientam essa caminhada: lei não é senão a presença de uma direção obrigatória no rumo da realização da natureza.

  O Direito, visto sob o aspecto positivo, é instrumento para a realização existencial do homem. Pobres são, sem dúvida, as sanções que utiliza para constranger seus infratores: tirar-lhes a vida, mutilá-los, reduzir-lhes o exercício da liberdade... todos, danos à natureza, contraditoriamente adotados para possibilitar sua realização. Mas no que ele tem de essencial, Direito é tradução da necessidade de o homem realizar-se como homem, instrumento que auxilia, indicando o rumo que permite realizar os fins intrínsecos da natureza junto com os demais. Embora não aponte para seus fins últimos, ele indica os fins intermediários (os fins sociais da vida), que estão no mesmo sentido e direção dos fins últimos.

  O essencial do Direito, em consequência, não é sua forma, mas o conteúdo de suas regras, que devem indicar a Justiça, a ação inter-humana conforme as exigências do convívio, ou seja, conforme ao bem comum.                                                                                                                                                                                                 

 


 

[1] As idéias expostas neste artigo foram ilustradas e analisadas no Curso de Filosofia do Direito de seu autor – O HOMEM E O DIREITO –  editado pela Quartier Latin – São Paulo, 2006

[2] PLATÃO – Gorgias, 483 c

[3] PLATÃO – A República, Lv. I

[4] Santo TOMÁS – Summa Theologiae – I, q.49, a.3

[5] Santo TOMÁS – Summa Theologiae, I-II q. 94, a. 2

[6] ARISTÓTELES – Ética a Nicômaco – A 1, 1094, a 1 - Santo TOMÁS – Summa Theologiae – I, 6, a.1.

[7] LAVELLE, L. – Traité des Valeurs – I, p. 18