Meu
encontro com Armando Câmara[i].
Jacy de Souza Mendonça é Livre Docente em Filosofia do Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, ex-professor de Filosofia do Direito do curso de Pós-graduação da PUC-SP.
Nos anos 40, chegou ao Colégio São Francisco, na
cidade do Rio Grande, onde começava meu curso primário , o Irmão Fidêncio,
da Congregação Marista, que mais tarde retomou seu nome de batismo, Ernesto
Dewes. Chamava a atenção
de todos seu vigor físico e principalmente a forma como dominava o Colégio
inteiro. Constatado o início de qualquer desordem, o forte silvo de um apito,
associado a seu extraordinário vozeirão, paralisava todos os alunos durante o
recreio. Era o mesmo vozeirão que dirigia o batalhão da escola, nos
ensaios e desfiles, sua banda nas paradas cívicas da Semana da Pátria, e era o
mesmo vozeirão que arrastava o coral nas missas de Domingo e nas festas
escolares. Analisado hoje, com o benefício do tempo passado, talvez se deva
reconhecer que não foi um grande professor. Mas não foi um grande professor
porque estava preocupado em ser muito mais do que isso: estava preocupado em ser
um grande educador. Foi graças a ele que adquiri, muito cedo, o hábito de ler
e conquistei o refinamento gradativo de minhas leituras. Começou simplesmente
por me recomendar as aventuras de Karl May. Quando toda a coleção existente na
biblioteca da escola tinha sido lida e relida, eu já tinha contraído o vício
da leitura e então os livros inicialmente recomendados foram sendo substituídos
pela mais fina literatura nacional e estrangeira. A ele devo, assim, o contato
com o primeiro livro de Lógica e de História da Filosofia, quando ainda
cursava o Ginásio, algo que hoje ainda me parece inacreditável. Na mesma época,
abriu meu interesse para os artigos e os livros de Gustavo Corção, os textos
de Tristão de Ataíde, Fulton Sheen e Jacques Maritain. E não ficou por aí. O
mundo da música, no que ele era simplesmente
fabuloso, me foi aberto também por ele. Não sei quando e como estudou música,
pois saiu criança da vida rural para a escola de formação marista. Mas tocava
com a mais absoluta naturalidade e maestria desde o violão e a sanfona do
interior gaúcho até o piano e o órgão eletrônico. Compunha peças para
piano, órgão, orquestra e coral a várias vozes, de um dia para o outro, até
enquanto conversava conosco. Tinha um senso de harmonia que encantava os músicos
profissionais, que a ele recorriam constantemente. Logo de chegada ao Colégio,
organizou o coral para cantar nas missas da Matriz de São Pedro e nas festas da
escola. Com apenas 6 anos de idade, apresentei-me
como candidato... mas fui
rejeitado:
-
Tu és muito piá ! disse-me
ele.
Esta
ofensa ficou depositada em minha memória de infância e nunca foi esquecida, até
que, trinta anos mais tarde, quando veio visitar-me em São Paulo, cobrei-lhe
uma reparação. Um ano depois de escutá-la, aos 7 anos de idade, já não me
sentia tão piá e apresentei-me de novo como candidato ao coral. Fui então
admitido, e nunca mais deixei de cantar. Houve um momento em que me sentia o
mais eficiente do grupo de meninos sopranos, e tinha certeza de que assim era
também por ele considerado. Com a idade, tive que passar para a segunda voz,
atravessar pelos tenores, chegar aos barítonos e cantei até com os baixos.
Como resultado desse périplo, conhecia todas as vozes da maioria das músicas
que compunham nosso vasto repertório e era capaz de mudar de uma para a outra,
conforme a necessidade do momento. Bem que ele, como maestro, se aproveitava
dessa habilidade. Então foi a hora de conhecer Wagner, Bach, Handel, Hydn,
Beethoven, com algumas concessões operísticas, mas sem a mínima tolerância
à música popular. A Escola de Canto Lírico da Prof. Inah Emmil Martensen
precisou de vozes masculinas para seu coral e lá estava eu entre os
recomendados pelo Irmão Fidêncio. Foi o magnífico encontro com as árias de
óperas e operetas, as maravilhosas peças corais e até a experiência de
palco. Tudo isso e muito mais, devo àquele fantástico pedagogo, que
infelizmente não pode mais ler esse testemunho de gratidão existencial, que,
embora póstumo, desejo lhe prestar.
Pois
foi o Irmão Fidêncio quem me aproximou, em 1945, de Armando Câmara. A II
Grande Guerra estava terminando e havia um crescente movimento popular pelo fim
da ditadura Vargas e pela redemocratização do País. A mesma Igreja Católica
que, com o correr do tempo, se deixou seduzir pela ditadura do proletariado,
estava, naquela época, empenhada na defesa da democracia, através de sua Ação
Católica. Comícios tinham lugar por todo o interior do Rio Grande do Sul.
Certo dia, o Irmão Fidêncio me disse que haveria um comício na Xavier
Ferreira, a praça principal da cidade do Rio Grande, no qual falariam, entre
outras, duas pessoas que ele reputava notáveis: Adroaldo Mesquita da Costa e
Armando Câmara. Recomendou-me ouvi-los. Eu não tinha então a menor idéia do
que fosse comício, ditadura ou democracia. Sentia mesmo certo mal-estar pela
possibilidade de associação daquele movimento político com a alteração da
ordem e da disciplina, coisas que ainda confundia com o respeito cego à
autoridade constituída. Quem sabe até, no fundo, alimentasse o temor de ser
envolvido em desordens, sendo, como era, absolutamente disciplinado. Mas me
acostumara a levar a sério todas as recomendações do Irmão Fidêncio e por
isso fui assistir ao primeiro comício de minha vida. Não me lembro dos demais
oradores que participaram do evento, mas lembro-me muito bem dos dois
recomendados. Adroaldo ficou em minha memória como um vulcão em ebulição, pelo
arroubo oratório, a riqueza do palavreado e até o timbre de sua voz. Realmente
incendiava a massa. Arrancou aplausos frenéticos. Armando Câmara era também
um orador maravilhoso, arrojado, empolgante, mas impressionava muito mais pelo
que dizia do que pela forma como dizia. Mais uma vez o Irmão Fidêncio tinha
razão. Fiquei encantado. Na verdade, não me recordo de nada do que disseram,
mas jamais esqueci o impacto que me causaram aquelas duas figuras.
O
próximo contato com Armando Câmara resultou de uma coincidência e se
constituiu numa surpresa. No início de 1949, terminado o segundo ano colegial
no Colégio São Francisco, na cidade de Rio Grande, o irmão Fidêncio, àquela
altura Diretor da Escola, resolveu não manter a terceira série do curso. Em
primeiro lugar, por motivos financeiros, pois a turma de estudantes era muito
pequena e a folha de pagamento de professores que se fazia necessária era muito
elevada; em segundo lugar, pela dificuldade em encontrar no grupo dos Irmãos
Maristas que formavam o Colégio, ou mesmo na cidade de Rio Grande, professores
adequados, que pudessem proporcionar aos estudantes êxito nos exames
vestibulares à Universidade. Convenceu então os dezoito alunos que formariam a
terceira série a se transferirem em massa para Porto Alegre, com matrícula assegurada no Colégio Nossa Senhora do Rosário,
da mesma Congregação.
Eu
já tinha tomado a decisão de estudar Direito, mas não me decidira ainda entre
as duas Faculdades de Porto Alegre e a de Pelotas. Estimulado pela decisão do
grupo e pelo apoio de meu pai, mudei-me para Porto Alegre. No Colégio do Rosário,
fiquei sabendo que os irmãos Maristas eram mantenedores da Universidade Católica,
hoje a PUC do Rio Grande do Sul, da qual era Reitor Armando Câmara, aquela
mesma figura que tanto me impressionara. Afastado temporariamente por Getúlio
Vargas do exercício do magistério na Faculdade de Direito da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul, tinha ele se empenhado, junto com a Congregação
Marista, pela fundação da Universidade Católica, para a qual foi escolhido
como seu primeiro Reitor pelo Arcebispado. Na nova Universidade exercia ele o
magistério na cadeira de Introdução à Ciência do Direito, na primeira série
da Faculdade de Direito e na cadeira de Metafísica, da Faculdade de Filosofia.
Essa circunstância foi decisiva para minha opção.
O
sistema didático do Professor Câmara na primeira série da Faculdade de
Direito causava grande impacto. No Curso Colegial, todo o conteúdo didático
era axiomático, de forma que o aluno devia exercitar apenas sua capacidade de
memorização. O método do Professor Câmara, ao contrário, ao menos
aparentemente, não afirmava nem impunha aceitação de nada. Começava todas as
aulas formulando alguma pergunta e ia, de questão em questão, perseguindo seu
objetivo, buscando chegar exatamente onde planejara chegar. A maioria dos
estudantes se ocultava, por não estar habituada àquele diálogo desigual.
Alguns, ao contrário, gostavam muito e se sentiam envaidecidos e profundamente
valorizados como destinatários das perguntas, mesmo que sem condições de
oferecer respostas satisfatórias. Mas o Professor Câmara não estava mesmo
interessado em respostas brilhantes. Qualquer resposta o satisfazia,
mesmo a mais errada e absurda,
pois, a partir dela, prosseguia em sua argumentação. Optei pela atitude
discreta. Participei desses diálogos didáticos apenas quando inevitáveis, mas
esquivei-me ao máximo. Meu maior interesse consistia em fazer anotações, o
que não era também fácil. Ele falava muito rápido ( quase tão rápido
quanto sua capacidade de ideação ), com um curioso sotaque de gaúcho da
fronteira, ao qual, como riograndino, eu não estava habituado, omitindo às
vezes algumas sílabas para poder ser ainda mais rápido. Como pressupunha
conhecimentos, hábitos mentais e interesses que evidentemente não tínhamos,
deixava-nos em grande dificuldade. Um colega teve a extraordinária idéia de
propor à turma a contratação de um taquígrafo da Assembléia Legislativa do
Estado, acostumado a captar os Discursos dos Deputados, para colher as anotações
de aula. Inspirados pelos hábitos do Curso Colegial, vibramos com a idéia.
Quem não gostou foi exatamente o Professor Câmara, pois o que lhe agradava era
o diálogo com os estudantes e não a adequada anotação de suas palavras para
fins de memorização. Mas nunca se oporia a tais iniciativas. Parece-me, isso
sim, que passou a imprimir velocidade ainda maior a suas exposições. O
primeiro resultado negativo foi o aumento de nossas dificuldades de apreensão;
o segundo, o total fracasso do taquígrafo, que desistiu da tarefa a meio
caminho por sentir-se absolutamente incapacitado de cumprir a contento seu
contrato.
Nas
provas, o Professor Câmara não era nada exigente. Satisfazia-se com quase nada
e, conforme vim a descobrir como seu assistente, quando o aluno revelava
dificuldade, admitia, até com certa dose de remorso, que o responsável pelo
fracasso poderia ter sido ele, como professor, por não ter se comunicado
satisfatoriamente. Por princípio, atribuía a cada examinando o grau que
necessitasse, o que sempre me pareceu injusto. Acontece que eu, tanto naquela época
quanto nos dez anos em que fui seu assistente, me preocupava muito com a
equidade, comparando o grau de cada aluno com o dos demais, enquanto que, para
ele, o importante era proteger os estudantes menos capazes...
Concluída
a primeira série da Faculdade de Direito, fiz novo vestibular e matriculei-me
também no Curso de Filosofia da mesma Universidade, indo assistir suas aulas de
Gnosiologia e Psicologia. Mas, no final do segundo ano, ocorreu um
desentendimento entre ele e a Congregação dos Irmãos Marista, do qual não
possuo elementos informativos suficientes e, assim, não tenho condições para
julgar o mérito, mas cujo resultado foi seu pedido de afastamento tanto da
administração quanto do magistério da Universidade Católica. Não me
matriculei, por isso, na terceira série do Curso de Filosofia no ano seguinte.
Na terceira série da Faculdade de Direito, precisando
trabalhar, consegui emprego como datilógrafo no escritório de advocacia de
Dorival Silva Schmid, que exercia também o cargo de Professor de História, na
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, e que, vim a descobrir em seguida,
era amigo íntimo e fã incondicional de Armando Câmara. Foi Dorival quem me
levou a participar dos primeiros serões no Solar dos Câmara. Senti-me muito
pequeno ouvindo o debate político e filosófico que Armando Câmara travava com
homens da envergadura de Ruy Cirne Lima, José Fernando Carneiro, os irmãos
Brito Velho, os irmãos Martins Costa, Carlos Galvez ( seu discípulo predileto
), Francisco Simmch Jr , Eloi José da Rocha, Ângelo Ricci, Ernani Maria Fiori,
Pe. Thiesen e muitos outros. Sei que neste passo estou cometendo mais um grave
pecado de omissão, mas estes são os nomes que vêm à minha mente no instante
em que escrevo estas linhas. Não se tratava de uma conversa de lazer, embora
ele por vezes a designasse como charla de galpão. Fumavam tanto quanto
falavam. Ruy e seu inesquecível charuto, Armando Câmara acendendo um cigarro
no outro. Mas todos cultivaram estratégico silêncio quando Armando Câmara
tomava parte no debate. Sua personalidade era mesmo dominante. Em qualquer lugar
em que estivesse ou chegasse, era o centro natural e quase monopolístico das
atenções. Certa noite, comentavam recente artigo de Gustavo Corção sobre
Georges Bernanos, publicado nos jornais de grande circulação do País. Dorival
lembrou-se de minha experiência anterior como locutor de
rádio e, graças a isso, tive que assumir
o papel de ledor do grupo... Apesar da efetiva e agradável experiência
como escritor e leitor de crônicas na Rádio Cultura Riograndinha, na Rádio
Farroupilha e na Rádio Difusora de Porto Alegre, enfrentei inusitada tensão no
cumprimento dessa nova missão...
Eram
debates maravilhosos, entrecortados apenas pelas intensas e frequentes baforadas
de tabaco, às quais nunca me habituei, e pelas ainda mais frequentes rodadas de
cafezinho, única bebida disponível, que o Professor Câmara ainda chamava de carioquinha...
Em
1995, o PTB lançou João Goulart candidato ao Senado da República pelo Rio
Grande do Sul. Parecia imbatível em sua própria casa, na querência de seu
padrinho Getúlio Vargas, no berço do PTB. Armando Câmara era, até por tradição
familiar, do Partido Libertador, mas sem nenhuma atuação político partidária
anterior. Numa coligação com o PSD, a UDN e o PDC, o nome dele foi lançado
como candidato ao Senado, tendo Mem de Sá como Vice.
Ao
contrário do que habitualmente fazem os candidatos a cargos eletivos, não fez
campanha alguma. Creio que tenha participado apenas de seis comícios pelo
interior do Estado, onde pronunciou discursos de elevado cunho filosófico e
sociológico, todos, porém, com extraordinária repercussão. Em Porto Alegre,
um grupo de estudantes universitários integrou-se ao movimento e organizou um
comício, na sede da Associação dos Professores Católicos, que, aliás, tinha
sido fundada por ele. Fui convidado a ser um dos três estudantes a discursar
naquela oportunidade e assim tive a primeira e única atuação político-partidária
de minha vida.
Um
ato público, no Teatro São Pedro, em Porto Alegre, marcou a aceitação das
diversas candidaturas da coligação. Nele, Armando Câmara pronunciou o
discurso que transcrevo na íntegra, por ser importante para se conhecer sua
postura em relação à missão política:
Discurso
político de conteúdo teológico, filosófico, sociológico ou psicológico,
como este, que representa a aceitação da candidatura e aqueles que foram
proferidos nos comícios que tiveram lugar em diversas regiões do Rio Grande do
Sul, parece que não poderia ter a mínima força eleitoral, mas o fato é que
ele foi eleito Senador da República,
numa clara resposta dos gaúchos de então contra a tendência para a esquerda,
e numa clara opção pelos valores do cristianismo. Derrotou nada menos que João
Goulart, o pupilo dileto de Getúlio Vargas, na terra natal de ambos, em pleito
direto.
Mas
por pouco tempo e com pouca intensidade desempenhou suas funções no Congresso
Nacional. Em sua rigorosa escala hierárquica, jamais iria sobrepor reuniões
onde eram discutidos projetos de lei de interesses regionais ou até pessoais,
sem a mínima importância para o País, às preocupações com sua própria saúde
e às atenções que dedicava à tia Alice, beirando os noventa anos de idade, a
quem tratava ao mesmo tempo como se fora a mãe que mal conheceu, a irmã, a
esposa ou a filha que não teve. Não foi um parlamentar assíduo e seu mandato
teve curta duração. Sequer houve tempo para a posse de Leônidas Xausa, que já
aceitara o convite para ser seu assessor legislativo. Não resistiu ao fato de,
um ano depois de eleito, Jango ser guindado à Vice Presidência da República
na chapa de Juscelino e assumir consequentemente a Presidência do Senado
Federal, em conformidade com os dispositivos da Constituição Federal então em
vigor. Em nome da coerência, entendia que, se havia sido escolhido Senador pelo
povo, contra Jango, contra a esquerda, e se posteriormente o mesmo povo elegia
Jango Presidente do Senado Federal, estava implicitamente lhe cassando o mandato
outorgado e, assim, impunha-se a ele o dever moral da renúncia. Além do mais,
abominava o despreparo intelectual de Jango e seu namoro escandaloso com as
esquerdas. Acima de tudo, como me disse, certa feita, com relação a Jango, não
estava disposto a “submeter-se ao primado do primário”.
Num
gesto inédito na História do Brasil, na primeira oportunidade em que João
Goulart assumiu a presidência da casa, em sua presença, despediu-se do
Congresso Nacional nesses termos:
Em
1954, ainda durante o período da campanha eleitoral contra Jango, chegávamos
ao final do Curso de Direito. Nos preparativos da formatura, no momento da
escolha do Paraninfo, um colega propôs o nome de Armando Câmara. Argumentou
ter sido ele um professor inesquecível, merecedor de uma demonstração de
apoio de nossa parte por três motivos básicos: em primeiro lugar, ainda que de
forma tardia e indireta, como reparação pelos resultados de seu conflito
com os Irmãos Maristas, quando sacrificou o exercício do magistério,
que tanto amava, em prol de sua luta pela autonomia da Universidade em relação
à entidade mantenedora; em segundo lugar, por
termos sido a última turma da Faculdade que o teve como professor; em
terceiro lugar, por sua patriótica batalha contra o janguismo, na qual
sacrificou, com total despreendimento, o cargo de Senador da República,
ambicionado por tanta gente. Lamentei para sempre não ter sido o autor da
proposta, mas assumi com todas as forças a missão de viabilizá-la. Algumas
dificuldades, efetivamente, precisavam ainda ser superadas: em primeiro lugar,
obter a aceitação por parte dele, que poderia preferir evitar o reencontro com
os Irmãos Maristas em tais circunstâncias, além de tudo, dentro da casa
deles; em segundo, evitar uma situação muito provável: que ele, aceitando o
convite, num gesto de cortesia para
conosco, viesse a criar um pretexto posterior para não comparecer à cerimônia
de colação de grau, pelas mesmas razões anteriores e porque, desde o momento
do conflito com os Maristas, nunca mais entrara no prédio da Faculdade. Fui
encarregado da consulta prévia e da obtenção da garantia de superação
dessas dificuldades previstas pela turma. Logrei pleno êxito. Com isso,
realizamos a votação para escolha do paraninfo e ele recebeu a quase
unanimidade dos votos. Seguiu-se a visita de uma comissão de formandos ao solar
dos Câmara, da qual evidentemente participei e da qual guardamos orgulhosos uma
das raras fotos com ele. Com a dignidade de um cavalheiro e a tolerância de um
cristão, retornou pela primeira vez ao prédio da Universidade que fundara e
manteve um relacionamento com elevado nível de cordialidade com todos os
membros da Congregação Marista, que o receberam, capitaneados pelo Irmão José
Otão. Com extraordinária alegria, eles registraram o fato como o desfecho
feliz de um incidente lamentável e indesejável.
Das
mãos dele recebi meu diploma de bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais,
outra foto que guardo com carinho. Sua oração de paraninfo é uma das poucas
peças de natureza jurídico-filosófica que deixou escrita. Isso nós devemos,
em parte, à dedicada eficiência do Alexandre Gruszynski, que gravou o
improviso e, por outra parte, à minha premonição ao entregar-lhe o texto
datilografado para uma prometida revisão: tomei a precaução de guardar uma cópia
comigo...
Seguiu-se
meu concurso para Promotor Público e o exercício dessa função durante dois
anos em São Pedro do Sul. Em seguida, veio a remoção para Canoas, que
possibilitou o almejado sonho de voltar a viver em Porto Alegre e retornar à
Faculdade. Em 1959, estava matriculado de novo no Curso de Filosofia, desta vez
na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, com o objetivo de ter aulas de
Filosofia com Armando Câmara. No primeiro dia de aula, segui meu hábito de
estudante atento e concentrado em recolher anotações. A diferença em relação
aos cursos anteriores estava apenas em minha localização na sala de aula,
pois, ao invés da primeira fila, como sempre preferi, recolhi-me, por prudência,
à última. Passados os primeiros minutos, fui reconhecido e não pude
fugir de tornar-me, a partir daquele instante, o alvo de quase todas as
perguntas didáticas do dia. Terminada a aula, recebi o convite inesperado de ir
visitá-lo no solar, ao anoitecer do mesmo dia. Lá recebi a estonteante
surpresa: o convite para assumir o cargo de assistente de Filosofia do Direito.
Apesar da surpresa, que dificultava a organização das idéias, apesar do
profundo desejo de aceitar o fantástico convite, e apesar da clara consciência
de que não poderia sequer parecer indelicado com ele, usei todos os argumentos
possíveis e imagináveis para justificar minha dolorosa recusa: desde os mais
simples e formais, como o fato de não ser formado pela Universidade Federal e
sim pela Faculdade de Direito da
Universidade Católica, até o tiro que me parecia mortal: eu realmente não
estava preparado para a função e ele sabia muito bem isso. Tudo inútil. Da
procedência escolar, como eu já esperava, nem tomou conhecimento; quanto à
falta de preparo, contava com que eu rapidamente chegaria a um estágio satisfatório
e, além disso, comprometia-se a não exigir de mim qualquer trabalho docente até
o final daquele ano. Mesmo assim resisti e saí do solar, tarde da noite,
deixando na soleira daquela porta, que tantas vezes cruzaria nos dez anos
subsequentes, o último desagradável e repetido não. Prometi, isso sim,
dedicar todo o meu tempo disponível, a partir daquele momento, ao estudo da
Filosofia do Direito, para, mais tarde, quando preenchesse as condições mínimas,
encontrar-me em condições de eventualmente aproveitar outra oportunidade.
Em
verdade, eu queria muito lecionar na Faculdade de Direito, mas me contentaria
com um começo na Universidade Católica em lugar da Federal e me deixava atrair
por disciplinas menos significativas, como o Direito Penal ou Civil. Mais do que
isso, no fundo de minha consciência, se se tratasse de outro professor talvez
corresse o risco irresponsável de aceitar a missão e buscar em seguida o
implemento das condições, mas ser assistente dele estava muito além de minhas
expectativas, e muito acima de minhas forças psíquicas e de minha coragem.
Na
semana seguinte, retornei ao mesmo banco da Faculdade de Filosofia, durante a
aula dele, com o firme propósito de permanecer o mais oculto possível, pois
tinha graves preocupações, decorrentes do diálogo da semana anterior no
solar. Não me livrei, porém, do destino de parceiro
do diálogo didático, agora como monopolizador involuntário... Pior do
que isso foi, ao final da aula, a última frase a mim dirigida. Funcionou como
um petardo ensurdecedor e inesquecível:
-
Doutor Mendonça, o senhor está convidado a ser meu assistente de Filosofia do
Direito na Universidade Federal do Rio Grande do Sul !
Não
é difícil imaginar o que isso representou para todos os demais colegas, que se
voltaram espantados para mim... nem é difícil imaginar o que representou para
mim mesmo. Dizer sim naquele momento, apesar das circunstâncias, seria
negar toda a minha argumentação da semana anterior e, pior que isso, seria
destruir minha coerência intelectual e moral. Dizer não, por outro
lado, seria uma deselegância muito séria, senão mesmo uma afronta, um
desaforo para aquele extraordinário homem, que tanto apreciava. Não consegui
responder. Apenas balbuciei:
-
Professor, minhas condições pessoais em nada mudaram desde a última vez em
que conversamos sobre esse assunto...
-
Por elas respondo eu !
- foi a resposta fatal, que me deixou sem qualquer saída.
A
partir daí, tive muito apoio não só de minha mulher, como também de grandes
amigos, como o Cid Furtado, que tinha sido convidado e recusara a função, o Werther Faria, que colocou à minha
disposição a extraordinária biblioteca de pensador profundo, curioso e culto
e ainda me presenteou com várias obras, mas muito especialmente o Lenine
Nequete, que viera a conhecer ao chegar em
Canoas e cujas extraordinárias qualidades de homem e pensador passei em
seguida a admirar. Todos me estimularam a enfrentar a gravidade do desafio.
Cancelei, então, pela segunda vez, e agora em definitivo, a matrícula no Curso
de Filosofia. Fechei-me em casa, de onde praticamente só saía para cumprir as
funções de Promotor Público em Canoas, assistir às aulas de Filosofia do
Direito ministradas por ele e visitar meus pais. Enfrentei uma gastrite terrível,
de fundo sabidamente emocional e por isso temporariamente incurável. Li tudo o
que era possível ler sobre a matéria: os livros que tinha em minha biblioteca,
os poucos disponíveis nas livrarias de Porto Alegre, assim como os que o
Nequete, o Werther e o próprio
Prof. Câmara me emprestaram. Foi um dos anos mais tensos e intensos de minha
vida. Mas ele cumpriu rigorosamente, como era de seu estilo, o compromisso que
assumira: só exigiu de mim atividade docente no início do ano seguinte. A
partir daí, até o final do ano de 1968, coube-me orientar os alunos da quinta
série da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul sobre os fundamentos gnosiológicos do
problema conceitual do Direito. Durante dez anos fui o aluno mais assíduo da
Faculdade de Direito, pois não perdi nenhuma aula dele. Entrementes, a convite
do Galeno Lacerda, vim a sucedê-lo na cadeira de Filosofia do Direito da PUC;
posteriormente, com a criação da Faculdade de Direito de Caxias do Sul, fui
incluído em seu primeiro corpo docente, para ministrar a mesma matéria.
Certa
feita, manifestei-lhe meus escrúpulos por ter ingressado no magistério por
indicação dele e não por concurso. Estimulou-me, então, a prestar concurso
para Livre Docência, que há muitos anos não tinha lugar na Faculdade de
Direito, e escolheu mesmo a área a que eu deveria me dedicar: os Fundamentos do
Imperativo Jurídico. Não foi fácil vencer a burocracia universitária, pois há
uma década ao menos a Faculdade não realizava esse tipo de concurso. Mas
insisti e, assim, abri uma nova era de concursos para Livre Docência na
Faculdade, da qual se beneficiaram também vários outros colegas. Como Armando
Câmara seria, pelo regimento da Faculdade, o Presidente da Comissão
Examinadora, não pude contar com a orientação direta dele, nem levar-lhe os
problemas de pesquisa que enfrentei durante o trabalho. O único professor a
quem pude recorrer foi aquele outro extraordinário gênio gaúcho: Ruy Cirne
Lima, que me cumulou com uma atenção não menos paternal, como era de seu
estilo. Quando terminei de redigir a tese, fui visitar o Prof. Ruy, em sua casa,
à noite, submetendo meu original à sua leitura dinâmica global. Leu-a em
minha presença, em meio a suas baforadas e charuto. Enquanto lia ( ou via ? ),
em alta velocidade, no silêncio de seu escritório, fui me afundando naquela
poltrona macia com a desagradável impressão de que não estava se interessando
por nada. Ao final, porém, para espanto meu, citava de cor páginas inteiras,
como eu seria incapaz de fazê-lo. Depois disso, durante meses, telefonou-me
carinhosamente, várias vezes por semana, para recomendar-me alguma pesquisa
adicional ou lembrar passagem de
algum autor que poderia me ser útil. Nessas oportunidades, continuava citando
de memória minhas palavras ( e eu não lhe deixara nenhuma cópia... ) e, também
de memória, a edição, a página e até a estante da Biblioteca da
Universidade onde eu poderia encontrar o volume por ele recomendado... Quanto
lhe devo ! Quanto lhe sou grato por esse afetuoso apoio !
Durante
as provas do concurso para a Livre Docência, Armando Câmara portou-se como o
Professor de sempre, produzindo uma argüição rigorosa, a partir de uma análise
crítica de minha tese. Destacou, principalmente, o fato de eu não ter
aprofundado a pesquisa na área da axiologia jurídica, que era seu tema
favorito e do qual, por isso mesmo, eu buscara distância. A nota curiosa, e
também reveladora de sua personalidade, ficou por conta do veemente protesto
que dirigiu a um dos examinadores do concurso porque, numa das quatro notas que
devia atribuir-me, deu grau nove e
não dez, como o fizeram todos os demais examinadores, em todas as quatro
notas... Armando Câmara tomou o fato como se tratasse de uma crítica às idéias
que eu defendia ( e que no fundo eram as dele ) ou de uma ofensa pessoal
dirigida a ele, pois eu era o assistente que ele escolhera... Enquanto isso, eu
via o gesto de meus examinadores como grave esbanjamento de prodigalidade.
Certamente eu não seria tão generoso, como na verdade não fui quando, mais
tarde, participei de comissões examinadores da mesma natureza.
Trabalhei
com ele, com muita satisfação e o máximo de dedicação, até o final de
1968, quando ele foi atingido pela aposentadoria compulsória, aos 70 anos de
idade. Além de uma parte do programa, cabia-me substituí-lo em suas ausências
bem como organizar e corrigir as provas parciais, atribuindo-lhes um grau provisório,
que ele se permitia sempre elevar de pelo menos um a dois pontos... Nas provas
finais, costumava se perturbar com o fato de os alunos não discorrerem sobre a
temática proposta levando em conta as reflexões que ele procurara provocar.
Apesar disso distribuía generosos graus finais, até mesmo àqueles que, de
qualquer forma, apenas concordavam com suas perguntas, já formuladas com a
resposta induzida, e que aguardavam apenas um sim ou um não. Testemunhei, aliás,
o dia em que, durante uma prova oral, o estudante atônito não conseguia
balbuciar sequer uma palavra e se encontrava em absoluto estado catatônico
diante dele, completamente imobilizado. Depois de várias tentativas inúteis de
arrancar o mínimo sinal de vida do pobre moço, ele desesperado exclamou:
- Meu amigo, faça, pelo amor de Deus, ao menos um gesto de assentimento
com sua cabeça, para não termos que ficar aqui a tarde inteira !
Tudo,
provavelmente, para compensar minhas avaliações, que sabia serem rigorosas.
Com muita freqüência, quando alguém lhe cobrava pelo fato de não ter escrito praticamente nada sobre Filosofia do Direito, ou por não estar escrevendo nada para os pósteros, atribuía a mim a responsabilidade de fazê-lo, dever moral que nunca pude cumprir. Sentia-me, em verdade, platonicamente lisonjeado, mas muito cedo percebi que minha situação de escriba não seria fácil: sempre que me decidia a escrever sobre Filosofia do Direito, enfrentava o problema conseqüente ao fato de não saber com exatidão se as idéias que expunha eram mesmo de minha autoria ou da autoria dele. E não sendo para mim claro esse divisor de águas, corria o risco, de um lado, da apropriação indébita de idéias, o que me levaria a ser taxado de plagiário e, de outro, de que viessem a atribuir a ele minhas fraquezas intelectuais. Por isso, além da tese de concurso, publiquei poucos artigos sobre Filosofia do Direito, que, muitos anos mais tarde, já em São Paulo, sob estímulo insistente e irresistível de amigos queridos, em 1983, reuni num volume sob o título ESTUDOS DE FILOSOFIA DO DIREITO.
Recebeu
a revolução de 1964 como uma seqüência natural e inelutável dos fatos políticos
que vivera e dos prognósticos que fizera. Esteve sempre certo de que o Brasil,
por suas raízes culturais, e a Igreja, por sua missão transcendental, viriam a
reagir contra a tendência esquerdizante, tão incentivada por alguns políticos
dominantes à época. Até por tradição familiar, aguardava que partisse do Exército
Nacional a iniciativa para o cumprimento desse papel retificador dos rumos políticos
da nação.
Nas comemorações do primeiro aniversário da revolução, na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, em março de 1965, fez um pronunciamento corajoso, no qual revela esse estado de espírito. Outro documento que precisa ser transcrito, para o perfeito entendimento de sua personalidade e de suas posições políticas.
Com
a aposentadoria compulsória, em novembro de 1968, coube-me sucedê-lo no exercício
da cátedra de Filosofia do Direito, conforme era seu desejo. Mas antes que se
iniciasse o ano letivo, ou seja, em fevereiro de 1969, fui levado à decisão de
mudar-me para São Paulo. Foi o meu querido amigo Milton Carlos Ltiff, então
assistente do Presidente da Robert Bosch do Brasil S.A, quem, à minha revelia,
deu partida a um processo que terminou me levando a aceitar a gerência dos
serviços jurídicos da Volkswagen do Brasil.
Não
interessa relatar aqui o ocorrido, mas apenas aquilo que, nesse episódio, diz
respeito a meu relacionamento com Armando Câmara. Sentia, no fundo da alma, a
grande dificuldade de explicar-lhe que, depois de dez anos de espera e preparação,
no exato momento em que chegava à posição desejada por mim e por ele, ou
seja, assumir a cadeira de Filosofia do Direito, na Universidade Federal do Rio
Grande do Sul, a ela renunciava. Dura foi a preparação psicológica para a
visita noturna ao solar, quando precisava informá-lo sobre minha decisão.
Comecei por relatar-lhe os detalhes do fato, prossegui explicando as vantagens
financeiras que me eram oferecidas, em comparação com os vencimentos de
Promotor Público do Rio Grande do Sul e de Professor Universitário, completei
com uma exposição sobre minhas responsabilidades de pai de quatro filhas, com
custos familiares elevados e receita apertada. Procurei, enfim, deixar claro o
irresistível do convite, embora de atração absolutamente material. Não
titubeei em reconhecer espontaneamente que sabia estar trocando a primogenitura
por um prato de Ientilhas, palavras que enfatizei durante minha exposição. A
tudo ele escutou silencioso e aparentemente taciturno, ampliando, assim, minha
angústia. Ao final, o julgamento para mim inesperado naquele momento, mas que,
na verdade, era, como sempre, absolutamente coerente com sua filosofia de vida:
-
Doutor, a Providência bate à sua porta e o senhor ainda protesta?
Assim era ele. O mesmo homem que assumira todas as minhas fraquezas, na
hora do convite, que me estimulara a estudar e crescer, que esperava de mim ser
seu sucessor e escriba, que poderia frustar-se com a inesperada ruptura de tudo
isso, escutava, acima de tudo, a voz de Deus nos mínimos sinais da existência
e estava sempre pronto para a ela se curvar e a Ele agradecer, num permanente
gesto de oração.
Saí
do solar tão pequeno como quando entrara pela primeira vez. Assumi, então,
minha nova forma de vida, na área empresarial, e tentei, durante dez anos,
manter em paralelo o exercício do magistério, nas Faculdades de Direito de São
Bernardo do Campo e da PUC de São Paulo. Principalmente no curso de Mestrado
desta última, durante cinco anos, ao lado de André Franco Montoro e Tércio
Sampaio Ferraz, defendi e divulguei as idéias dele. Escrevi-lhe cartas que,
como esperava e era de seu estilo, ficaram sem resposta. Visitei-o nas poucas
viagens a Porto Alegre, oportunidades em que reatamos agradáveis diálogos.
Enquanto isso, levava seu nome e seu pensamento para fora das fronteiras gaúchas.
Em 1972, a Sociedade Brasileira de Filósofos Católicos, presidida pelo Pe. Stanislavs Ládusãns S.J., organizou em São Paulo a I Semana Internacional de Filosofia. Ajudei o Pe. Ládusãns a atrair Armando Câmara para o evento. Prometeu-me participar, caso sua saúde o permitisse e manteve a promessa de pé até o dia previsto para a conferência. À última hora, coube-me ler e sustentar no plenário o texto que remetera pelas mãos de sua sobrinha Maria Helena. É um dos raros textos autênticos, no qual, sob o título Reflexões sobre a Definição do Valor, ele explicita suas idéias filosóficas.
Foi
durante os preparativos da I Semana Internacional de Filosofia que o Pe. Ládusãns
deu-me ciência de seu próximo projeto: uma coleção de perfis de pensadores
católicos brasileiros. Para meu espanto, incluía entre os trabalhos, em fase
final de elaboração, o autoperfil de Armando Câmara. Como a informação foi
prestada durante reunião de trabalho, tive de conter-me até seu final para
certificar-me do que me parecia impossível: que Armando Câmara estivesse
trabalhando na elaboração de seu perfil cultural. As explicações confirmaram
minha suspeita, ao mesmo tempo em que me determinaram uma surpresa. Ele se
recusara, como eu previa, a escrever sobre si próprio ou mesmo sobre suas idéias,
mas aceitara a alternativa de, durante algumas reuniões no solar, expô-las,
autorizando fossem elas gravadas, para servirem de base a alguém que as
utilizasse na elaboração de seu perfil intelectual. Num encontro com ele mais
tarde, em visita a Porto Alegre, tive confirmação do fato. Manifestava-se até
muito feliz com a oportunidade de deixar algo escrito, sem ter que escrever
nada...
Não
participei, portanto, da coleta dos dados que dão conteúdo à segunda parte
deste livro. Por isso, para explicar o objetivo e a natureza do trabalho, assim
como a forma como foi preparado, tomo de empréstimo alguns trechos do texto
escrito por seu coordenador, Aldo Obino, publicado na Revista
"Estudos", então dirigida pelo Pe. Antônio Loebmann. O texto
original apresentava algumas deficiências gráficas e, por isso, fui obrigado a
revisá-lo. De qualquer forma, é uma homenagem que presto, e com grande satisfação,
a Aldo Obino, pois foi seu dedicado trabalho que tornou possível dispormos hoje
do auto-retrato de Armando Câmara. Além disso, ao que sei, o texto, que ora
transcrevo, foi escrito exatamente para servir de prefácio à edição dos diálogos
gravados àquela época, o que só não ocorreu por impossibilidade material,
como contarei em seguida. Transformo em realidade, dessa forma, a nobre intenção
de seu autor. O texto preenche, por outro lado, uma lacuna que poderia ser
observada em meu trabalho: a falta de dados biográficos de Armando Câmara
relativamente fatos e circunstâncias que não testemunhei.
Pouco
tempo depois da morte de Armando Câmara, o Pe. Ládusãns entregou-me as fitas
nas quais estavam gravados os diálogos filosóficos que tiveram lugar no solar.
Repetia-se o problema das aulas ria Faculdade de Direito: ninguém conseguia
transpor seu conteúdo para a letra impressa. Datilógrafos e taquígrafos
haviam desistido, em razão da velocidade das exposições, da peculiaridade dos
temas, das formas pessoais de expressão, assim como da riqueza do vocabulário,
desconhecido para os encarregados da missão. Acima de tudo, a qualidade técnica
da gravação deixava muito a desejar.
Tentei
assumir a tarefa, mas, naquele momento, fracassei também. A morte dele era
muito recente para enfrentar a impressão de escutá-lo, como que ao vivo,
depois de tantos anos... Minha decisão de afastar-me do magistério jurídico
fora muito dolorida, e a dedicação às fitas reabriria as chagas em processo
de cicatrização. Guardei-as como um souvenir carinhosamente ligado a uma
pessoa querida e a uma época muito importante de minha vida.
Motivado,
agora, como já narrei, a retornar ao trabalho, e superada a maioria das
circunstâncias que o dificultavam, voltei a escutá-las. O tempo fora, porém,
terrivelmente impiedoso. A má qualidade técnica inicial se transformara, com o
passar dos anos, em péssima qualidade técnica. Segundo me foi explicado,
deu-se uma desintegração da matéria, que serve de base à fabricação das fìtas
de gravação, de tal forma que aquilo que era pouco audível se transformara em
absolutamente inaudível... Minha frustração foi muito grande, e o primeiro ímpeto
foi desistir novamente da missão e continuar a mantê-las apenas como souvenir.
Felizmente, a tecnologia moderna avançou de maneira extraordinária nesse
campo. Procurei um laboratório especializado que, a partir de um processo de
regravações sucessivas, conseguiu recuperá-las em boa parte, devolvendo-me a
oportunidade de divulgar seu conteúdo, ao menos parcialmente. Mais da metade
foi, por certo, perdida. De determinadas exposições só foi possível recolher
alguns fragmentos, e assim mesmo por vezes inaudíveis. Minha tarefa passou a
ser, então, equivalente ao de uma costureira que une os pedaços para
confeccionar uma veste, como ele gostava de dizer, organizando logicamente as
respostas recuperadas, agrupando os trechos esparsos de análises sobre o mesmo
tema e, na verdade, montando um diálogo ao revés: dispondo, como dispunha, das
respostas, passei a formular (ou reformular) as perguntas a que elas
correspondiam, dando vida e seqüência aos diálogos. Fui obrigado a
abandonar a forma de muitas perguntas originais, porque não proporcionariam
leitura agradável. Formulei outras e, sempre que possível, aproveitei as que
ele mesmo formulava durante sua exposição. Essa era, aliás, uma das características
mais curiosas de sua metodologia pedagógica: precisava sempre de um parceiro
para debater, ainda que, à falta de outro, esse parceiro tivesse que ser ele
mesmo. À falta de um interlocutor que lhe suscitasse perguntas, ele mesmo as
formulava, para, em seguida, respondê-las. Essa característica me foi, nesse
momento, de extrema valia, porque pude montar um novo diálogo em cima do diálogo
perdido e, apesar disso, preservar a autenticidade das anotações. Uma coisa é
absolutamente certa: se algumas perguntas não correspondem àquelas que foram
originalmente propostas, todas as respostas são absolutamente autênticas.
Delas eliminei apenas os momentos repetitivos, muito a seu estilo, conseqüência
de sua exposição oral e de seus destinatários habituais: os estudantes.
Não quero apresentar, porém, os diálogos, sem antes concluir minha experiência existencial com Armando Câmara.
Poucos meses antes de sua morte, fui visitá-lo no solar. Estava realmente
abalado pela enfermidade. Repetindo o gesto de meu pai, nos últimos meses de
vida, não fumava mais, ele que sempre acendera um cigarro no outro. Mas já era
muito tarde. O câncer, inicialmente localizado no pulmão, avançava
inexoravelmente em seu organismo. Recebeu-me no próprio leito, embora tenha
procurado conversar naturalmente sobre assuntos do momento. No meio de uma frase
cometeu um lapso, trocando uma palavra por outra, como muitas vezes ocorre a
qualquer um de nós. Parou e fez-me observar:
- Doutor, o senhor notou meu processo de desintegração mental?
Retruquei-lhe
exatamente como acima observei, ou seja, que aquilo ocorria com muita freqüência
com qualquer pessoa, ao que rebateu:
- Não, Doutor, o senhor não observou corretamente: isso já é conseqüência de uma lesão cerebral!
E
era mesmo...
Recebi
a notícia de sua hospitalização, através de um generoso telefonema do Prof.
Ruy Cirne Lima. Ao manifestar-lhe minha disposição de viajar para Porto
Alegre, dissuadiu-me o Prof. Ruy:
- Não venhas! Tu não o reconhecerias, e e1e não te reconheceria. Guarda contigo a imagem que tens dele até hoje!
Segui
o conselho do Prof. Ruy Cirne Lima, mas, como qualquer pessoa nessas condições,
muitas vezes me problematizei se devia mesmo ter seguido. O que eu não poderia
imaginar é que, se tivesse ido visitá-lo no hospital, duas pessoas muito
queridas não me reconheceriam: ele e o próprio Prof. Ruy que, por trágica
ironia da vida, fora internado no mesmo Hospital, no mesmo andar do amigo
querido, com um acidente cerebral que inutilizou em definitivo esse outro
extraordinário cérebro gaúcho.
A
notícia ribombou em minha consciência e me deixou aturdido. Não que não
estivesse preparado para recebê-la: duas experiências recentes de morte de
pessoas queridas, somadas a um pré-aviso quase paternal do Prof. Ruy Cirne Lima
e a telefonemas do fraternal Lenine Nequete, faziam-me pronto para ela. Mas a
morte de um ente querido tem sempre o sabor ácido de uma surpresa, ainda que
seja o e.vento mais certo e mais esperado da vida.
Cenas
de um filme mudo sucederam-se em minha memória. Pelos idos de 1945, na cidade
do Rio Grande, um movimento de massa entregava um ginasiano, pela primeira vez,
embora à distância, à contemplação da figura de um pensador cativante. Em
1950, as aulas de Introdução à Ciência do Direito. Em 1951, as de
Gnosiologia e Psicologia. Em 1954, a única vez em que participei ativamente de
um comício político, para levá-lo ao Senado; no mesmo ano, a aração do
paraninfo, formalizando, pela primeira vez, sua tese sobre o conceito de Justiça.
Em 1959, as aulas de Filosofia e o inesperadíssimo convite para ser seu
assistente na cadeira de Filosofia do Direito. Daí, até 1969, o convívio
quase diário. Então a aposentadoria. A separação no espaço. Os encontros
esporádicos. A defesa de suas idéias na I Semana Internacional de Filosofia em
São Paulo. A última visita e os sintomas da mesma moléstia e das mesmas
causas que acabavam de levar meu pai deste mundo... Então a notícia! Como é
difícil aceitar que os grandes homens, que são tão poucos, também devam
morrer!
Apagaram-se
os registros episódicos. Restaram na lembrança as características essenciais.
Um
homem para Deus. Não que os demais não o sejam, mas disso tão consciente e a
isso tão obediente que sua vontade Ihe servia de claríssimo norte a cada
gesto. A fidelidade à Igreja de Cristo foi a única força capaz de frenar-lhe
o ímpeto que o movia à peleja. A fé ditava fronteiras nítidas à razão e
esta à ação. Dentro de tais limites, um homem de eterna disposição para a
pugna.
Por
isso, um homem de princípios. Nunca a força das circunstâncias, o poder do
fato consumado, nem sequer os vínculos da amizade lhe ofuscaram ou limitaram o
pensamento ou traçaram o rumo da ação. Em nome dessa fidelidade aos princípios,
a renúncia ao Senado, as críticas lancinantes das autoridades e até a mágoa
de amigos muito próximos.
Um
humilde apaixonado pela verdade. Por ela fazia comícios; por ela lutava como se
estivesse engajado numa guerra de vida ou morte. Também por ela rejeitava a
palavra escrita, que lhe frustrava o prosseguimento da análise, que lhe
congelava a reflexão, que condenava-lhe a idéia a uma vida empobrecida e
fossilizada. O intérprete mais afoito poderia tomar sua fobia à forma escrita
como fruto da vaidade. Mas foram o respeito à incessante busca da verdade e a
humilde constatação de nossas dificuldades para esse mister que lhe criaram a
antipatia pelo papel branco, a caneta ou máquina de escrever.
Por
isso mesmo um espírito criador. Descobria sempre novos ângulos de análise
dialética, argumentos que nem ele, nem os demais haviam alcançado antes. E,
assim, suas aulas foram sempre novas, durante os 13 anos em que fui seu mais assíduo
aluno repetente.
Um
homem para o magistério, para conduzir os demais, pelas veredas do pensar, à
verdade filosófica, como etapa para atingir a Absoluta Verdade, embora
repetindo sempre, como Sócrates, que ninguém pode ser mestre de ninguém.
Uma
consciência pura, incapaz de presumir desvio na conduta de seus semelhantes e
incapaz de suspeitar que a notícia, que lhe traziam, pudesse ser o fruto
envenenado de alguma intriga que ignorava. Jamais admitiu, por exemplo, que
alunos seus fossem capazes de se valer de meios fraudulentos, que não fossem
dedicados estudantes, seriamente interessados pelo desenvolvimento cultural,
individual e nacional.
Um
homem só, porque foram tão poucos os homens como ele neste mundo. Capaz de
dar-se até à morte pelos adoráveis amigos que o adoraram até o fim. Capaz de
subordinar seus mais justificados programas e anseios à paixão filial pela
tia de quem foi o esteio, à afeição pelos irmãos e os parentes, mas
necessitando viver e morrer só. Ele, a meditação racional e sua oração. Ele
e Deus.
Mas
um homem rico. Não pelos bens materiais que desprezou totalmente, mas pelas
posições sociais a que renunciou e pelos vencimentos mensais apenas
suficientes para suas necessidades básicas. Rico pelos bens materiais da
comunidade, que guardou e preservou para a História do Brasil; rico pela forma
como soube subordinar as riquezas do mundo ao serviço do bem; rico, enfim, dos
únicos valores pelos quais se interessou - o bem, a verdade, a justiça. Rico,
porque viveu e morreu na riqueza de seu amigo - Deus.
Ele ficou entre nós, no exemplo de vida íntegra, nas idéias que buscou, no porte da inteligência, na grandeza da alma, na beleza da comunicação. Ele ficou, e ficará para sempre, nas aulas de seus discípulos e nas aulas dos discípulos de seus discípulos...
[i]
Parte da obra Publicada pela EDIPUCRS, Diálogos no Solar dos Câmara,
1999.