CLÁUSULAS
PÉTREAS E SUA EXTENSÃO: INTRODUÇÃO AO PROBLEMA
Elder Haga é Mestre em Direito Constitucional pela PUC, Advogado.
O
tema escolhido não é simples e, portanto, as breves colocações a serem
expostas somente têm a finalidade de iniciar uma discussão e também para
instigar os estudiosos do direito ao debate de uma questão lapidar de qualquer
ordenamento jurídico: quais são os direitos fundamentais? Ou, em outros
termos, qual é a extensão das cláusulas pétreas na Constituição de 1988?
O
tema é inquietante, pois a doutrina recorre, freqüentemente, à explicitação
das características dos direitos fundamentais para identificá-los no mundo
factual.
Por
outro lado, a discussão de como se dá a migração dos direitos fundamentais,
até então não-escritos, para os ordenamentos jurídicos positivados, é questão
de ordem para seguir-se adiante, devendo-se, porém, estudar o
constitucionalismo, porquanto, esse movimento deu base à positivação dos
maiores valores de uma dada sociedade, sendo assim, regidos por essas normas jurídicas
supremas.
Com
essas informações primárias, pode-se, então, tentar estabelecer qual é a
extensão das cláusulas pétreas na Constituição Federal do Brasil de 1988.
Por
fim, é útil ainda o estudo da interpretação constitucional, uma vez que,
sendo os direitos fundamentais positivados, deve-se entender os métodos de
interpretação constitucional que orientam a aplicação desse especial ramo do
direito.
Cumpre
lançar, preliminarmente, uma distinção que se deve ter clara, para se estudar
a extensão das cláusulas pétreas na Constituição Brasileira de 1988.
Assim,
os Direitos Fundamentais são aqueles que designam, conforme orientação de
Maria Garcia, citando Perez Luño, “los derechos positivados a nivel
interno”[1].
Ou seja, são os direitos reconhecidos pelo ordenamento jurídico posto, como
sendo essenciais aos indivíduos e à própria sociedade.
De
outro lado, os direitos humanos referem-se a um domínio mais amplo, querendo
significar “los derechos naturales positivados em las declaraciones y
convenciones com la dignidad, libertad y igualdad de la persona que não han
alcanzado un estatuto juridico co-positivado”[2].
Constata-se,
dessa maneira, que o conceito de direitos humanos é mais amplo do que o de
direitos fundamentais. Ou ainda, constituem-se em dois planos de direitos como
afirma Bidart Campos:
“Sem
nos determos aqui, resgatamos dois planos: um, o de que a filosofia dos direitos
humanos define na supra positividade como o que ‘deve ser’ reconhecido na
positividade; e outro, o de que na positividade já ‘é’, tal como o plano
anterior prescreve ou exige o que ‘deve ser’. Ao primeiro plano se pode
convencionalmente dar um nome: direitos humanos, por exemplo; ou para outros,
direitos morais ou direitos naturais; no segundo plano é dado atribuir-lhes
outro nome: direitos fundamentais, por exemplo; ou para outros, direitos
subjetivos jurídicos”[3].
Assim,
as expressões serão utilizadas de acordo com as acepções acima apresentadas,
facilitando o estudo do tema.
Desta
maneira, a identificação dos direitos fundamentais começa pelo preliminar
exame das características apontadas pela doutrina.
Dessa
forma, esses direitos são dotados de certas características que lhes conferem
o caráter de essencialidade à própria realização do homem.
São
características, conforme ensinamento de Luiz Alberto David Araujo
e Vidal Serrano Júnior:
a)
Historicidade: a formação e consolidação desses direitos ocorrem
dentro de uma cadeia histórico-evolutiva. E nesse sentido o alerta de Celso
Ribeiro Bastos:
“O
que é importante analisar é a formação histórica dessas liberdades. A sua
significação exata não pode ser apreendida senão avaliando-se o lento
processo pelo qual se deu a sua aquisição. É que no início dominava a
ilimitação do poder estatal. Mesmo nas sociedades que se governaram por um
princípio democrático, as liberdades públicas, tal como as entendemos hoje, não
existiam, mesmo porque a idéia de indivíduo, enquanto algo diferente da
sociedade que o envolve, foi uma lenta aquisição da humanidade”[4]
.
b)
Universalidade: são direitos universais na medida em que se dirigem a
todos os humanos. Veja-se, por exemplo, as Declarações de Direitos do Bom Povo
da Virgínia (1776)[5]
e do Homem e do Cidadão (1789)[6].
Ambos os documentos referem-se ao homem como detentor de certos direitos de sua
natureza, sendo aplicados, portanto, a todo e qualquer ser humano, daí seu caráter
universal.
Tanto
é assim que J. A. Gonzáles Casanova, citado por Celso Bastos, afirma: “Estas
declarações têm em comum seu caráter declarativo ou de proclamação prévia
a toda regulamentação legal. Puramente, o que se declarava ou proclamava era o
caráter natural ou fundamentalmente humano de certos direitos. Estes direitos
naturais seriam uma crença religiosa ou filosófica que viria a outorgar e a
justificar um conhecido e secular direito à resistência contra a tirania ou a
renúncia ao pacto Rei-Reinado quando o primeiro o violasse, ao não respeitar
os direitos fundamentais dos súditos. Passa a ser expressão de direitos muito
concretos e de reivindicações políticas específicas, as Declarações
citadas adotaram uma formulação abstrata, geral e universalista, própria da
filosofia do Iluminismo”[7]
.
c)
Limitabilidade: os direitos são relativos, uns em relação aos outros,
devendo-se buscar a harmonização. Novamente capta-se da Declaração dos
Direitos do Homem e do Cidadão a validade desta característica para se
identificar os direitos fundamentais, com a análise dos artigos 4º e 5º [8].
Constata-se,
pelo exame, que o limite do exercício dos direitos fundamentais encontra-se
justamente na possibilidade de exercício dos mesmos direitos pelo próximo e,
enquanto, não constituam agressão à sociedade. É, por isso, que, no caso do
exercício legítimo de direitos contrapostos, a recomendação é de que a
harmonização se dê pela cedência recíproca, ora qual, cada um dos titulares
reduzem suas esferas jurídicas, de maneira a não anular completamente a sua própria
esfera e a do outro.
d)
Concorrência: os direitos podem ser cumulados, ou seja, um só titular
pode manter em sua pessoa inúmeros direitos fundamentais. Sendo assim, a
Constituição e as leis devem encontrar um ponto de convergência e equilíbrio
para assegurar, em diferentes normas, a proteção de diversos direitos
fundamentais exercidos por um só titular num só ato.
e)
Irrenunciabilidade: o indivíduo não pode dispor desses direitos, a
ponto de Rivero afirmar que “o homem não pode renunciar, mesmo
voluntariamente, sob pena de deixar de ser homem”. Ora, essa é uma característica
evidente, por tudo o que já foi exposto, porque são direitos decorrentes da própria
natureza de ser humano e, por isso, são realidades inseparáveis.
Os
direitos fundamentais são identificáveis por meio de suas características.
Assim, presentes todos esses caracteres, é de se reconhecer o direito como
sendo fundamental.
De
outro lado, como já afirmado, a expressão direito fundamental refere-se à
positivação de direitos reconhecidos pelo ordenamento jurídico interno. Esse
reconhecimento, porém, pode recair tanto sobre os verdadeiros direitos
fundamentais (com todas as características expostas), como sobre outros
direitos positivados sob tal categoria, sem, na verdade, sê-lo em sua essência.
Daí
a importância de se reconhecer o movimento denominado de constitucionalismo,
com o fim de entender a positivação dos direitos fundamentais, para depois,
aferirmos sua extensão sob proteção de cláusula pétrea.
A
associação entre Constituição e direitos fundamentais não é inútil. Isto
porque, como salienta Manoel Gonçalves Ferreira Filho, “desde a Revolução
de 1789, o regime constitucional é associado à garantia dos direitos
fundamentais. Não é ocioso recordar que a Declaração dos Direitos do Homem e
do Cidadão (art. 16)[9] condicionou à proteção
dos direitos individuais a própria existência da Constituição”[10].
Constata-se,
portanto, que a idéia de se colocar um determinado número de direitos
conferidos a um indivíduo encontra-se na base da formação do
constitucionalismo.
O
constitucionalismo é um movimento ideológico e político, que veio em
contraposição ao absolutismo até então vigente.
Esse
constitucionalismo, chamado de clássico ou moderno, reconhecido a partir do século
XVIII, caracteriza-se essencialmente por positivar os direitos humanos. Estes,
após sua inserção no documento escrito, ganhavam o campo da positivação,
devendo, assim, serem assegurados e respeitados pelos indivíduos e,
principalmente, pelo Estado. Como já referido, com esta positivação esses
direitos passaram a ser adjetivados como fundamentais.
Essa
noção é importante para demonstrar como o constitucionalismo moderno
contribuiu para a expansão, para os mais diferentes povos, da idéia de
direitos individuais sagrados (sob influência cristã), reconhecidos como
liberdades públicas ou direitos fundamentais de primeira geração.
Acerca
desta expansão, Santi Romano faz interessante anotação ao afirmar que “o
direito constitucional dos Estados Modernos resulta do direito constitucional
inglês e das demais ordenações dele mais ou menos derivadas diretamente”[11]
.
Assim,
o direito inglês, dado ao seu historicismo influenciou todos os demais povos.
Por historicismo, quer-se referir ao caráter de evolução histórica que os
ingleses têm na formação de suas instituições, sendo esta espontânea e
natural.
O
mesmo autor explica que os direitos consolidados por essa evolução histórica
do direito inglês, ao chegarem na França, ganharam contornos racionalistas. Ou
seja, a partir daqueles direitos historicamente reconhecidos na Inglaterra, os
franceses passaram a teorizar até culminarem na Declaração de Direitos de
1789.
Por
outro lado, com a colonização da América do Norte pela Inglaterra, surgiu uma
nova forma de se vivenciar aqueles direitos históricos ingleses. Isto porque é
da tradição norte-americana valorizar algo segundo um ponto de vista pragmático,
ou seja, segundo sua utilidade e aplicação concreta.
Assim,
nessas ‘trocas’ de experiências, a que Santi Romano chama de importação,
reimportação e transmigração, é que se constata a expansão da fórmula
escrita para assegurar os direitos fundamentais.
Agora,
cumpre destacar o “alcance inovador do constitucionalismo moderno”[12]
, consistente, segundo Jorge Miranda, na conscientização de se considerar a
Constituição como documento fundamental para regular as relações
Estado-indivíduo. Sob este novo enfoque, a Constituição é dotada de certas
matérias imprescindíveis à defesa dos valores essenciais do Estado e do indivíduo.
Esse
conjunto de matérias imprescindíveis é que faz surgir a classificação de
Constituição Material, ou seja, aquela que veicula as matérias essencialmente
constitucionais. Quais são essas matérias? Segundo Karl Loewenstein é
indispensável que uma Constituição disponha, no mínimo, sobre separação de
poderes, controle desses poderes, mecanismos de solução dos impasses entre os
poderes, rito de reforma das matérias constitucionais e direitos individuais e
os instrumentos para sua garantia.
Mas
vale o alerta de Bidart Campos ao diferenciar normas declarativas de direitos
declarados:
“Dentro
do classicismo normativo, há então um ‘direito objetivo’ (de nível
constitucional) que será a dimensão normativa objetivada na Constituição
escrita, que reconhece ou declara os direitos, e um ‘direito subjetivo’ que,
à raiz do primeiro, e com certeza com idêntico nível constitucional, será
atributo ou faculdade que titulariza o homem de acordo com a Constituição.
Pode
ficar fora de dúvida que em nenhuma de ambas dimensões o constitucionalismo clássico
pode ser originariamente interpretado como outorgando ou concedendo direitos aos
homens, senão unicamente como reconhecendo-os ou contrastando-os. A inscrição
constitucional é uma constante jurídica solenizada na Constituição em favor
dos direitos humanos que não são um presente por ela conferidos, não obstante
na qual não se perde o sentido de que, no sistema normativo estatal, são
direitos públicos subjetivos porque o Estado os reconhece em sua Constituição”.
“Do
parágrafo precedente se depreende que permanece nitidamente destacada uma
dualidade impossível de confundir ou identificar: por um lado, as normas
formuladas na Constituição escrita que reconhecem os direitos, e por outro, os
direitos que constam nessas normas. Norma declarativa e direito declarado, não
são o mesmo: os direitos declarados são direitos ‘nas’ normas da Constituição,
e as normas declarativas são normas ‘da’ Constituição que se referem a
direitos”[13].
Nota-se,
pelo que foi exposto, que a Constituição, ao enumerar os direitos
fundamentais, estará fazendo uma declaração reconhecendo a existência de
direitos anteriores a essa declaração.
Torna-se
ilustrativo, assim, a expansão dos direitos fundamentais na mesma medida em que
o constitucionalismo se disseminou dentre as diversas culturas.
Por
outro lado, seguindo adiante, a classificação de Constituição Material,
implicou em outra: a Constituição Formal. Esta quer significar que certas matérias
que não são essencialmente constitucionais, são elevadas a esse patamar, em
razão dos valores fundamentais do Estado, com o fim de preservar sua unidade
política. Ou seja, certos temas são entronizados na Constituição para
receber o status que esta proporciona,
sem, no entanto, ser-lhe essencial. É dessa classificação que se inicia a
confusão em se determinar quais são, de fato, direitos fundamentais, pois
tantos e variados assuntos são tratados na Constituição, mas sem se ligar às
matérias definidas por Loewenstein como sendo essenciais.
Daí
a importância do tema.
Então,
como se determinar na Constituição Federal de 1988 quais direitos são
fundamentais e, por isso, chamados de cláusulas pétreas?
A
Constituição, pois, é o documento solene em que estão encartadas as normas e
regras estruturais e organizacionais do Estado. Dentre essas regras e princípios
estão aquelas que se referem aos direitos fundamentais, sendo estes
considerados essenciais para que o Estado exista efetivamente, na medida em que
garanta aos indivíduos a realização plena de suas finalidades.
Pode-se
dizer que a Constituição é um sistema normativo que encontra em si a validade
do ordenamento jurídico, mas também interage com os fatos sociais. Dessa
maneira, ela encontra suficiência normativa em si, mas recebe defluências da
sociedade, como forma de se manter atualizada com a evolução política, econômica
e social.
Ao
lado da possibilidade de reforma em seu texto, segundo rito por ela mesmo
previsto, a Constituição se atualiza por meio da hermenêutica e da interpretação
específica que lhe serve.
A
interpretação constitucional é dotada de especificidades. O ilustre Carlos
Maximiliano, em sua célebre obra de hermenêutica jurídica, alerta para a
distinção da interpretação do Direito Privado e aquela a ser realizado
quanto o objeto é o Direito Público. No caso deste último, a interpretação
deve ser cuidadosa, porque as premissas são distintas, sendo que tais normas têm
caráter público e imperativo, diferentes da norma do Direito Privado, cujo caráter
é permissivo e particular.
Conclui-se,
assim, que pelo grau de importância da Constituição, justifica-se a hermenêutica
especial que a atende.
Dessa
maneira, a Constituição possui pressupostos hermenêutico-constitucionais que
orientam a aplicação de suas normas.
Esses
pressupostos, denominados como postulados por Celso Bastos, são: a supremacia
da Constituição, a unidade constitucional, máxima efetividade e harmonização.
A
supremacia da Constituição significa que a norma constitucional é superior a
todas as demais, servindo-lhes como fundamento de validade. Expressa também a
proibição de ser interpretada a partir das leis que lhe são inferiores.
A
unidade da Constituição orienta que o intérprete considere cada norma
constitucional em interdependência com todas as demais, reconhecendo-se que estão
no mesmo patamar hierárquico.
O
postulado da máxima efetividade determina que a interpretação que se faz da
Constituição deve conferir o maior grau de eficácia à norma, que se traduz
na realização plena da Constituição.
Outro
postulado, decorrente dos anteriores, é o da harmonização e significa que as
normas constitucionais, por estarem no mesmo patamar hierárquico e por lhes
serem conferidas o máximo de efetividade não devem, quando conflitantes,
anular uma à outra. Ou seja, nos casos de tensão entre normas constitucionais,
o intérprete deverá se socorrer da razoabilidade para reduzir o campo de atuação
de cada uma das normas, proporcionalmente, de forma a garantir eficácia de
ambas, mesmo que de maneira reduzida.
Ao
lado dos postulados, encontram-se os instrumentais hermenêuticos, assim
chamados por Celso Bastos, valendo o alerta desse autor, no sentido de que não
são instrumentos imprescindíveis e muitas vezes são aplicados em conjunto.
Esses
instrumentais existem porque o ponto de partida e o limite da interpretação
estão definidos pela letra da lei. E é nesta que surgem as dúvidas quanto aos
sentido, devendo-se, caso possível, utilizar-se dos instrumentais hermenêuticos,
impropriamente chamados de diretrizes interpretativas.
Por
primeiro, as palavras da Constituição devem ser interpretadas com o
significado que elas têm na linguagem comum, popular, e, somente de forma
excepcional e motivada devem assumir seu sentido técnico jurídico. Isto
decorre do fato de a Constituição ter sido confeccionada por representantes do
povo, que podem advir de diferentes setores da sociedade e somente a linguagem
comum seria adequada ao entendimento por todos sobre seus direitos. Assim,
privilegia-se o sentido popular em contraposição ao técnico que só é
utilizado excepcionalmente.
Já
outro instrumental indica que os termos idênticos devem ter o mesmo
significado, quando dispostos em normas diferentes, salvo exceções. A
Constituição possui diversas dessas exceções, na medida em que ela utiliza
palavras iguais empregadas em sentidos diferentes, que somente são apuráveis
dentro da análise sistemática das normas constitucionais.
Ao
lado desse instrumental está a que orienta a atribuição de significados
diferentes aos termos diferentes, salvo exceções. Este instrumental é crucial
para o problema a ser enfrentado neste capítulo. O caso dos direitos
fundamentais na Constituição e exemplo das exceções, porquanto em muitos
momentos ela faz uso de diversas expressões para se referir aos direitos
fundamentais.
Para
se atribuir o mesmo sentido em termos diferentes, o intérprete se valerá de
outros instrumentais, por exemplo, o que orienta a atribuição do significado
ao termo segundo sua finalidade, ou segundo seu sentido histórico ou em acordo
com a vontade do legislador histórico ou contemporâneo etc.
Obviamente,
estes instrumentais serão aplicados segundo a necessidade e sempre
justificadamente com atendimento aos postulados constitucionais e sempre se
orientando pelos princípios norteadores dos maiores valores da sociedade
encarnados na Constituição.
Assim,
com estes postulados, os instrumentais e mais o reforço dos princípios
constitucionais, é possível interpretar a Constituição de maneira a lhe dar
aplicação, notadamente, no que tange aos direitos fundamentais, consoante a
regra do parágrafo 1º do artigo 5º da Constituição Federal ao determinar
que “As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação
imediata”.
Dessa
forma, pode-se constatar a importância da interpretação qualificada que é
realizada em relação à Constituição e também, na posse dessas informações,
seguir adiante e enfrentar a questão inicialmente colocada.
O
sistema constitucional brasileiro adotou, em relação à classificação quanto
à mutabilidade, uma Constituição de caráter super rígido. Isto porque ela
prevê um rito legislativo solene, especial e mais dificultoso para realizar
alterações na Constituição do que aquele previsto para alterar a legislação
ordinária. Ao lado disso, ela prevê um núcleo imutável, cujo conteúdo não
pode, sequer, ser alvo de discussão que tenha por fim sua extinção.
Nestes
termos, reza o artigo 60, parágrafo 4º:
“Não
será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir:
I
– a forma federativa de Estado;
II
– o voto direto, secreto, universal e periódico;
III
– a separação de Poderes;
IV
– os direitos e garantias individuais”
Nota-se
que a Constituição, nesse núcleo imutável, também chamado de cláusulas pétreas,
coloca a proteção dos direitos e garantias individuais.
A
grande questão é: qual é a extensão dessa expressão? De fato, quais os
direitos que estão abrangidos por esta expressão, constituindo-se, assim,
verdadeiros direitos fundamentais?
O
problema é agravado, em virtude de o legislador constitucional ter-se utilizado
de diversas expressões ao longo do texto (direitos fundamentais, direitos
humanos, direitos coletivos, dentre outros), cabendo ao intérprete realizar a
extração do verdadeiro sentido e alcance dessas normas constitucionais.
Sendo
assim, como se determinar quais os direitos e garantias individuais intocáveis?
Por
primeiro, a Constituição prevê em seu título II os direitos e garantias
fundamentais, como cinco capítulos, a saber: dos direitos e deveres individuais
e coletivos, dos direitos sociais, da nacionalidade, dos direitos políticos e
dos partidos políticos.
Somente
pela enumeração desses direitos já é possível notar a incompatibilidade
terminológica, donde surge uma questão preliminar: a cláusula pétrea envolve
todos os direitos e garantias fundamentais, englobados no título II? Ou nem
todos os direitos desse título são fundamentais?
Por
uma interpretação literal já se poderia responder que nem todos os direitos e
garantias do título II são cláusulas pétreas. Isto porque o inciso IV do parágrafo
4º do artigo 60 da Constituição menciona a expressão ‘direitos e garantias
individuais’, e dentro do título II, há um capítulo que se refere aos
‘direitos e deveres individuais e coletivos’.
Ou
seja, pela interpretação literal, as cláusulas pétreas restringir-se-iam ao
capítulo I do título II, ressaltando ainda que a literalidade dos termos
permitiria também a conclusão de que nem todos os direitos desse capítulo são
alcançados pela petrificação, protegendo somente aqueles individuais,
excluindo-se os coletivos.
Esta
interpretação decorre da aplicação pura e simples do instrumental hermenêutico
que determina que aos termos diferentes não se deve conferir o mesmo
significado, salvo exceções.
Ocorre,
porém, que a Constituição é um sistema de normas dirigido a uma finalidade
especial: estruturar e organizar o Estado. Assim, as interpretações não podem
ser apenas literais, devendo envolver também um sentido teleológico.
Desta
maneira, é conveniente lembrar que a estruturação do Estado passa pela
garantia de direitos invioláveis conferidos aos indivíduos, que na Constituição,
ao serem positivados, recebem o nome de direitos fundamentais. Assim, esses
direitos não podem ser restringidos por uma interpretação que leve em conta
somente as expressões utilizadas.
Assim,
para se interpretar a Constituição deve-se ter em mente que a letra da lei é
somente o início da jornada interpretativa, sendo necessário cotejar essa
literalidade com os valores fundamentais de caráter político, econômicos e
sociais, os postulados constitucionais e os princípios norteadores da efetivação
da Lei Maior.
Conclui-se,
portanto, que os direitos fundamentais não são somente os relacionados ao
indivíduo e inscritos no artigo 5º da Constituição.
Pode-se
ainda afirmar que existem outros artigos que externam as características de
direitos fundamentais, mesmo estando fora do rol do artigo 5º.
É
interessante anotar o critério proposto pela ilustre Maria Garcia para se
identificar quais são os direitos fundamentais. A autora após descrever as
contribuições de Canotilho e de Ferdinand Lassalle para o tema, propõe um
critério de identificação dos direitos fundamentais básicos, que são
justamente aqueles dotados de todas as características já mencionadas
(historicidade, universalidade, limitabilidade, concorrência e
irrenunciabilidade) e outros que tenham uma referibilidade direta àqueles.
O
artigo 5º, caput, apresenta os cinco
direitos fundamentais básicos, a saber: vida, liberdade, igualdade, segurança
e propriedade. Por outro lado, somente são verdadeiros direitos fundamentais
aqueles que tiverem ligação direta com um desses cinco direitos básicos.
Outros direitos são constitucionais, mas não têm o caráter fundamental.
Dessa
maneira, todos os incisos, segundo a autora, do artigo 5º são direitos
fundamentais, sendo que outros direitos espalhados pela Constituição, bem como
os advindos de tratados internacionais, pelo artigo 5º, parágrafo 2º, também
poderão ser assim reconhecidos, caso apresentem vinculação direta com a proteção
da vida, liberdade, igualdade, segurança e propriedade.
Cumpre
ressaltar, entretanto, que este entendimento sofre críticas, pois, segundo
opositores, tende a ampliar demasiadamente o rol de direitos fundamentais, por
exemplo, incluindo direitos sociais como sendo materialmente fundamentais.
Diz-se
materialmente fundamental, pois também nesta questão faz-se a distinção
entre direitos materialmente fundamentais e outros formalmente, ou seja, aqueles
essencialmente fundamentais e estes somente elevados ao patamar de direito
fundamental na Constituição.
Observa-se,
assim, a existência do alto grau de dificuldade para se determinar quais são
as cláusulas realmente petrificadas na Constituição.
Não
podemos, é certo, realizar uma interpretação que retire a força da Constituição,
no que toca à proteção de certos direitos fundamentais. Dessa maneira, é
estreme de dúvidas, o fato de que os direitos sociais podem e devem ser
considerados como direitos fundamentais acobertados pela cláusula pétrea da
Lei Maior.
Nesse
sentido o entendimento dos Ministros Carlos Velloso do Supremo Tribunal Federal
na Adin nº 939-7/DF ao afirmar: “É sabido, hoje, que a doutrina dos direitos
fundamentais não compreende, apenas, direitos e garantias individuais, mas,
também, direitos e garantias sociais, direitos atinentes à nacionalidade e
direitos políticos. Este quadro todo compõe a teoria dos direitos
fundamentais. Hoje não falamos, apenas, em direitos individuais, assim direitos
de primeira geração. Já falamos em direitos de primeira, de segunda, de
terceira e até de quarta geração”.
Ocorre,
porém, que a maioria do STF tem o entendimento mais restritivo da extensão da
cláusula pétrea, por entender que a assim considerar estar-se-ia restringindo
demasiadamente o poder de revisão do legislador constitucional derivado.
Agora,
neste outro sentido, o Ministro Sydney Sanches, na já citada Adin 939-7/DF:
“Mas,
afinal de contas, quais seriam especificamente estes direitos e garantias
individuais? Ora, da Constituição consta todo um título (II) dedicado aos
direitos e garantias fundamentais. Ele está subdividido em 5 capítulos, dos
quais o primeiro trata dos direitos e deveres individuais e coletivos, o segundo
cuida dos direitos sociais, o terceiro dispõe sobre nacionalidade, o quarto
enumera os direitos políticos e o quinto enuncia os princípios que devem
governar os partidos políticos. Será que tudo que aí está, sendo expressão
de um direito ou garantia individual, deve ser considerado insuscetível de
modificação ou abolição pelo poder constituinte derivado? Direitos ou
garantias previstos em outros títulos estariam nesta mesma situação?”
“Uma
resposta afirmativa a tais indagações não parece plausível, pois isto
significaria a quase completa eliminação do poder de revisão. Deixar a solução
subordinada ao exame de cada caso concreto, a valoração do direito ou garantia
que, em um dado momento, estiverem sendo cogitados, tampouco merece aplauso.
Conforme anotou Canotilho na obra acima citada, Forsthoff moveu uma cerrada crítica
à chamada jurisprudência valorativa, alertando para os ‘perigos da insegurança
da constituição, da dissolução da lei constitucional numa casuística
interpretativa, carecida de racionalidade e evidência, e onde os juízes deixam
de estar sob a constituição para passarem a donos da mesma constituição”.
Com
escusa a este último entendimento, devemos sempre amplificar os direitos
fundamentais (ou humanos), independente da nomenclatura. Prender-se aos rigores
procedimentais de reconhecimento dos direitos fundamentais significa diminuir o
conteúdo valorativo destes direitos.
Como
visto, a Constituição somente positiva um direito que preexiste, sendo assim,
não seria equívoco dizer que um rol positivado não abriga todos os direitos
fundamentais, devendo-se buscar sua extensão por toda a Constituição, uma vez
que esta é um Sistema.
Conclui-se
que, a par do entendimento majoritário do Supremo Tribunal Federal, em sentido
contrário, os direitos fundamentais não são apenas aqueles inscritos no rol
do artigo 5º, devendo-se reconhecer esse caráter em todos os direitos que
tenha direta e imediata conexão com os cincos direitos fundamentais básicos:
vida, liberdade, igualdade, segurança e propriedade.
[1] GARCIA, Maria. Mas, quais são os direitos fundamentais?. Revista de Direito Constitucional e Internacional nº 39, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, página 115.
[2]
GARCIA, Maria. Mas, quais são os
direitos fundamentais?. Revista de Direito Constitucional e
Internacional nº 39, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, página
116.
[3]
Texto Original: “Si nos detenemos aqui, rescatamos um doble plano: uno, el
de lo que la filosofia de los derechos humanos define en la suprapositividad
como lo que ‘debe ser’ reconocido en la positividad; y outro, el de lo
que en la positividad ya ‘es’, tal como el plano anterior prescribe o
exige que ‘debe ser’. Al primer plano se le puede convencionalmente dar
un nombre: derechos humanos, por ejemplo; o para otros, derechos morales o
derechos naturales; al segundo plano es dable atribuirle otro nombre:
derechos fundamentales, por ejemplo; o para otros, derechos subjetivos jurídicos”.
CAMPOS, Germán J. Bidart. Teoría
General de los Derechos Humanos. México: Universidad Nacional Autónoma
de México, 1989, página 234.
[4]
BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Constitucional. 22ª edição, São Paulo: Editora
Saraiva, 2001, página 174.
[5] Declaração do Bom Povo da Virgínia: I – Que todos os homens são, por natureza, igualmente livres e independentes, e têm certos direitos inatos, dos quais, quando entram em estado de sociedade, não podem ser por qualquer acordo privar ou despojar seus pósteros e que são: o gozo da vida e da liberdade com os meios de adquirir e possuir a propriedade e de buscar e obter a felicidade e segurança”.
[6] Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão: Art. 1º. Os homens nascem e são livres e iguais em direitos. As distinções sociais só podem fundamentar-se na utilidade comum.
[7]
Texto Original: “Estas Declaraciones tenían en común su carácter
declarativo o de proclamación previa a toda regulación legal. En puridad,
lo que se declaraba o proclamaba era el carácter natural o fundamentalmente
humano de ciertos derechos. Estos derechos naturales serían una creencia
religiosa o filosófica que vendria a otorgar autoridad y a justificar um n
conocido y secular derecho a la resistencia
contra la tirania o a la denuncia del pacto Rey-Reino cuando el
primero la violara al no respetar los derechos fundamentales de los súbditos.
Pese a ser expressión de derechos muy concretos y de reivindicaciones política
específicas, las Declaraciones citadas adoptaron una formulación abstracta,
general u universalista, própia de la filosofia racionalista de la
Ilustración”. BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Constitucional. 22ª edição, São Paulo: Editora
Saraiva, 2001, página 175.
[8] Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão: Art. 4º. A liberdade consiste em poder fazer tudo que não prejudique o próximo: assim, o exercício dos direitos naturais de cada homem não tem por limites senão aqueles que asseguram aos outros membros da sociedade o gozo dos mesmos direitos. Estes limites apenas podem ser determinados pela lei.
Art. 5º. A lei não proíbe senão as ações nocivas à sociedade. Tudo que não é vedado pela lei não pode ser obstado e ninguém pode ser constrangido a fazer o que ela não ordene.
[9] Artigo 16 da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão: “A sociedade em que não esteja assegurada a garantia dos direitos nem estabelecida a separação de poderes não tem Constituição”.
[10]
FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves, GRINOVER, Ada Pellegrini, FERRAZ, Anna Cândida
da Cunha. Liberdades Públicas. São
Paulo: Editora Saraiva, 1978, página 109.
[11]
ROMANO, Santi. Princípios de Direito
Constitucional Geral. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1977, página
43.
[12]
MIRANDA, Jorge. Manual de Direito
Constitucional. 3ª edição, tomo II, Coimbra Editora, 1996, página
17.
[13] Texto Original: “Dentro del clasicismo normativo, habrá entonces un ‘derecho objetivo’ (de nível constitucional) que será la dimensión normativa objetivada en la Constitución escrita, que reconoce o declara los derechos, y un ‘derecho subjetivo’que, a ráiz del primero, y por supuesto con identico nivel constitucional, será atributo o facultad que titulariza el hombre de acuerdo a la Constitución.
Puede quedar fuera de duda que en ningua de ambas dimensiones el constitucionalismo clásico pudo ser originariamente interpretado como otorgando o concediendo derechos a los hombres, sino únicamente como reconociéndolos o contrastándolos. La inscripción constitucional es una constancia jurídica solemnizada en la Constitución a favor de derechos humanos que no son un regalo que ella hace, no obstante lo cual no se pierde el sentido de que, en el sistema normativo estatal, son derechos públicos subjetivos porque el Estado los reconoce en su Constitución.
Del precedente párrafo se desprende que permanece nitidamente
destacada una dualidad imposible de confudir o identificar: por un lado, las
normas formuladas en la Constitución escrita que reconocen los derechos, y
por el outro, los derechos que constan en esas normas. Norma declarativa, y
derecho declarado, no son lo mismo: los derechos declarados son derechos
‘en’ las normas de la Constitución, y las normas declarativas son
normas ‘de’ la Constitución que se refieren a derechos”. CAMPOS, Germán
J. Bidart. Teoría General de los
Derechos Humanos. México: Universidad Nacional Autónoma de México,
1989, páginas 325 e 326.