Os Direitos Humanos e a Teoria Pura de Kelsen.
Guilherme Arruda Aranha é Advogado, Mestre e Doutor em Filosofia do Direito pela PUC/SP, professor de Filosofia do Direito e Prática Jurídica da UNISA e de Prática Jurídica da UNIFIEO .
I.
Meu primeiro contato com a Teoria
Pura do Direito, de Hans Kelsen, foi na graduação do curso de Direito.
No mestrado, voltei a estudá-la. Apesar de reconhecer o incontestável rigor
formal da obra, sempre alimentei dúvidas a respeito daquele famoso “corte
epistemológico” que tem a pretensão de alçar o direito à categoria de ciência,
livrando-o de toda influência dos elementos “que lhe são estranhos”,
inclusive do mundo valorativo.
Os professores que me introduziram nesses estudos, contudo, optaram por
uma abordagem de compreensão da obra. Sem saber muito bem como criticá-la,
eu me via enredado numa série de raciocínios lógicos de inegável qualidade
teórica. Não obstante, e respeitando minha intuição, conservei a
desconfiança que desde o início nutri em relação à pureza
kelseniana.
Finalmente, quando fui aluno do professor Jacy de Souza Mendonça,
obtive valiosa orientação. A crítica à Teoria
Pura não deve ser feita “de dentro” da obra, afinal sua coerência
interna e seu elevado rigor lógico formam uma espécie de “teia teórica”
que paralisa e neutraliza as críticas que lhe vêm de fora. A crítica ao
pensamento kelseniano, ensinou-me o professor Jacy, é epistemológica. Quer
isso dizer que o exercício crítico da Teoria Pura deve atacar o seu pressuposto teórico, o seu ponto de
partida. O que se critica, portanto, não é a solidez visível do edifício
teórico, mas, sim, seu alicerce, a saber: o relativismo dos valores.
II.
Seguindo a pista indicada pode-se achar nas palavras do próprio Kelsen
os elementos necessários para criticá-lo. Não, evidentemente, na Teoria
Pura do Direito. Em outra obra, O
Problema da Justiça, Kelsen revela seu pressuposto teórico, bem como
indica aquilo que entende ser o ponto de partida das teorias jusnaturalistas.
De acordo com o pensador austríaco, as teorias jusnaturalistas possuem
um caráter dualista, ao passo em que as teorias positivistas seriam monistas.
Quer ele dizer que o jusnaturalismo parte, sempre, da idéia de uma
ordem transcendente, ideal, estabelecida pela divindade e, abaixo desta, uma
outra ordem, terrena e posta pelos homens. Daí o caráter dualista dessas
doutrinas, divididas em Aquém (a ordem terrena) e Além (a ordem divina).
Por detrás do jusnaturalismo, continua Kelsen, está o pressuposto da
justiça absoluta de origem transcendente: ela indica um valor absoluto e
exclui a validade de qualquer outra norma de justiça que lhe seja contrária.
Com isso, o fundamento de validade da norma de direito está na dependência
direta com a norma de justiça que lhe orienta o valor.
As teorias positivistas, ao contrário, rejeitam a existência de uma
autoridade transcendente e admitem tão-somente a existência de uma ordem
terrena, a saber, o direito positivo, posto pelos homens. Daí seu caráter monista.
Ao rejeitar a existência de uma ordem transcendente, o positivismo
rejeita também o pressuposto da justiça absoluta. No seu lugar, admite e
aceita o relativismo axiológico: há várias normas de justiça no tempo e no
espaço, diferentes e possivelmente contraditórias entre si (são, por
exemplo, diferentes e possivelmente contraditórias a idéia da justiça cristã
e a idéia da justiça muçulmana). Portanto, continua Kelsen, nenhuma delas
pode ser aceita como fundamento de validade de uma norma de direito, afinal,
uma norma de direito pode ser interpretada como justa por um critério e
injusta por outro, rejeitando-se, por essa operação lógica, toda e qualquer
espécie de apreciação valorativa do sistema normativo.
III.
Com base no relativismo axiológico Kelsen forja toda a sua Teoria
Pura. Se a justiça é conceito relativo – argumenta o pensador – e,
por isso mesmo, pode ser concebida de muitas e antagônicas maneiras, então
nenhuma delas pode ser invocada como critério eficiente para conferir
validade à norma jurídica. A validade da norma, portanto, não podendo ser
mensurada por nenhum valor, será sempre extraída de uma norma superior (até
o ápice da norma fundamental). Kelsen, na verdade, reduz o direito a fenômeno
estatal chegando à conclusão de que a legitimidade de uma norma corresponde
à sua legalidade.
Porém, se é certo ser impecável o caminho percorrido por Kelsen,
desde o relativismo axiológico até a conclusão de sua teoria pura, não é
menos certo que o seu pressuposto teórico está sujeito a discussões e críticas.
Ao explicar que o positivismo jurídico é teoria de caráter monista;
ao contrapor positivismo e jusnaturalismo explicando que este último possui
caráter dualista, Kelsen comete pelo menos uma imprecisão: nem toda
axiologia jurídica é jusnaturalista no sentido de que haja uma ordem
universal, imutável no tempo e no espaço.
Pode-se admitir o relativismo cultural
– e, com ele, diferentes interpretações
de justiça – sem que isso signifique a abolição dos valores na descrição
do mundo jurídico. Essa é, a propósito, a posição das contemporâneas
teorias de Direitos Humanos, surgidas após a Segunda Grande Guerra.
Em um mundo cada vez menor em função das crescentes descobertas da
tecnologia e da informática e cuja economia é, cada vez mais, ditada
unilateralmente pelas grandes potências, fica difícil deixar de notar a
enorme diversidade de povos e costumes, tão diferentes entre si, assim como
solidificou-se um certo consenso de que inúmeras dessas culturas vêm se
descaracterizando e se empobrecendo em face da globalização.
Diante dessa diversidade cultural, bem como da crescente degradação
da dignidade dos seres humanos que se empobrecem junto com o declínio de sua
cultura, que os direitos humanos procuram se situar. De um lado, portanto, a
inegável diversidade cultural e o respectivo relativismo valorativo daí
decorrente. De outro lado, a defesa incondicional de alguns valores, entre
eles, o respeito à diversidade cultural e à dignidade humana.
Assim, é lícito pensar uma teoria que procura superar a dicotomia
jusnaturalismo/positivismo proposta por Kelsen. A constatação da diversidade
cultural é um fato que não implica, para os direitos humanos, o divórcio
entre direito e valor.
O preço do corte epistemológico kelseniano é a justificação, ainda que não
desejada, de todo e qualquer totalitarismo estatal: se não há valor a ser
defendido pelos operadores do direito, se a legitimidade da lei se reduz à
sua legalidade, se uma lei específica, portanto, autoriza o assassinato de
pessoas pelo simples fato de terem nascido judias (isso para citar apenas o
caso mais emblemático de totalitarismo do século XX), então não há
tampouco como condenar moralmente o magistrado da Alemanha nazista que,
cumprindo a lei, tenha ordenado a morte de inúmeros seres humanos.
Muito embora o direito, despido de seu aspecto valorativo, possa
aumentar a margem de certeza jurídica de uma dada sociedade (essa, aliás, a
intenção de Kelsen), o que salta à vista com a experiência totalitária é
que o direito pode, também, tornar-se bizarra ferramenta de poder,
determinando comportamentos sociais rígidos, bem como o ataque à dignidade
humana.
E mesmo que o tempo não seja de totalitarismos, a pureza de um direito pretensamente sem valores acaba por justificar uma globalização econômica selvagem e o conseqüente empobrecimento de uma parcela cada vez maior da população mundial.
Como diz Karl-Otto Apel, “A civilização técnico-científica
confrontou todos os povos, raças e culturas, sem consideração de suas tradições
morais grupalmente específicas e culturalmente relativas, com uma problemática
ética comum a todos. Pela primeira vez, na história da espécie humana, os
homens foram praticamente colocados ante a tarefa de assumir a
responsabilidade solidária pelos efeitos de suas ações em medida planetária.
Deveríamos ser de opinião que, a essa compulsão por um responsabilidade
solidária, deveria corresponder a validez intersubjetiva das normas, ou pelo
menos do princípio básico de uma ética da responsabilidade” (Apel, 1994,
p. 74).
A militância de direitos humanos, atenta a essa realidade, aceita a diversidade cultural sem abrir mão da defesa de determinados valores. O esforço teórico atual consiste, portanto, na reconciliação entre direito e valor, ou, mais precisamente, entre direito e justiça.
Essa reconciliação, contudo, não representa necessariamente um
retorno ao jusnaturalismo de caráter dualista. O que se pretende, afinal, não
é que o direito terreno, posto pelos homens, reproduza o mais fielmente possível
um suposto direito transcendental que exclua a validade das demais normas de
justiça. Essa atitude acarretaria a inibição de um diálogo intercultural
entre os diversos povos.
Tampouco se admite a rejeição aos valores. Antes o contrário, o que
se procura é estimular o diálogo intercultural a fim de que se possa traçar
um alicerce valorativo que atenda a um mínimo de dignidade humana em escala
planetária. A partir daí, o desafio é, enfim, construir um novo paradigma
do direito no qual a justiça comparece não como um dado transcendental mas
como construção humana intercultural.
APEL,
Karl-Otto. Estudos de moral moderna. Rio de Janeiro, Vozes, 1994.
KELSEN,
Hans. Teoria pura do direito. 6ª
ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
KELSEN,
Hans. O problema da justiça. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998.