Diálogos


A VOCAÇÃO PARA O MAGISTÉRIO

 

- É claro que aceito seu plano, mas, antes de entrar propriamente na exposição das idéias que o ocuparam como pensador, gosta­ria de lhe propor algo mais pessoal, ou seja, falar sobre a origem psicológica e biográfica de sua vocação integral para o magistério. Como e por que o senhor se dedicou ao magistério?

- Bem, no ano em que o Padre Werner, por enfermidade, não pôde dar suas aulas no Colégio Júlio de Castilhos, o Eugênio Brito, que era então o Diretor da Escola, veio aqui em casa e me disse:

- Olha, Armando, você não pode dizer não...

Eu rebati de pronto:

- O que é? Se tu me pedires, por exemplo, algum valor em moeda, eu não tenho nada para te dar.

E ele continuou:

- Não! Vamos falar sério. Eu quero te fazer um convite: substituir o Padre Werner no Júlio de Castilhos. Creio que tu vais recuar, dizendo que estás com a consciência de uma responsabilidade muito grande para...

E eu Ihe disse:

- Tremenda!

- Mas, de outro lado, tu não crês que é uma providencial oportunidade? Estás sendo chamado, como aluno do Padre Werner, a uma tarefa que, afinal, para ti, constitui o ideal da tua vida: afirmar a palavra de Deus lá dentro daquelas masmorras do ensino oficial laicizado.

- Certo, isso é muito interessante. Como arena, me sinto convidado; e é essa a arena que eu aceito.

Aceitei. Assim, meu primeiro contato com o magistério foi numa instância secundária.

- E quanto tempo o senhor lecionou no Colégio Júlio de Castilhos?

- Durante um ano. Depois, o Padre Werner se recuperou e retomou suas aulas.

- O senhor lecionou também no Instituto de Educação General Flores da Cunha e no Colégio Sevigné, não é verdade?

- No Instituto de Educação estive durante três anos. Lá entrei de bombacha, espora e tudo. Arrastando espora mesmo. Foi minha primeira manifestação pública de magistério, que já não era mais ensino secundário. No Colégio Sevigné fui também professor, a convite do Frei Pacífico, que era outro Padre Werner em grandeza moral e intelectual. Lá regi uma cadeira de Psicologia aguada, açucarada, de último ano de Colégio. Apenas atendi a tarefa escolar, procurando, tanto quanto possível, ser didata.

- Mas, como surgiu o Instituto de Educação em sua vida?

- Naquela época, o Raul Bittencourt, como macaco em bazar, estava criando um tumulto intelectual muito grande no Instituto de Educação. A Dona Olga Acauan, com um grupo de mais ou menos IS professoras, queria recuperar a tranqüilidade. EIa mesma usou essa expressão, no ano passado, quando se comemorou o centenário de fundação do Instituto. Convidaram-me para falar, falei e lembrei esse episódio. Ela estava presente e conversou comigo sobre o caso. Naquela época, ela me procurou dizendo:

- Doutor, me disseram que o senhor é muito avesso à comunicação. Mas o senhor há de permitir que, mesmo sabendo disso, eu o procure em nome de umas 15 colegas do Instituto de Educação que estão sentindo essa necessidade. Nós somos católicos. A nossa integração na Igreja é, em boa parte, fruto da tradição familiar, mas, além disso, muitas dentre nós têm posição de fidelidade consciente, não apenas em razão desse impulso tradicional do meio familiar em que nos formamos, mas ainda em razão de posição pessoal assumida. Queremos manter essa fidelidade. Acontece que os autores, que nós lemos, as obras, que consultamos para o nosso magistério, estão totalmente saturadas do pragmatismo de John Dewey no campo da educação, do positivismo e do laicismo. E vivemos nessa oscilação pendular, dolorosa, terrível, entre a nossa fé e a nossa tarefa cultural. É para superar esse conflito que queremos organizar um curso, destina­do a algumas professoras, fora do ensino escolar. O senhor aceita?

- Eu relutei um pouco, mas acabei aceitando. O projeto consistia em ministrar o curso de um ano, mas acabei, a pedido delas, fazendo um curso de dois anos. Não recebi um só cruzeiro por isso. E ocorreu até um episódio muito interessante a esse respeito. Morreu na semana passada a professora Marieta Azevedo Maisonave, que foi uma brilhante aluna desse curso. Ela já era, naquela época, professora da Escola Normal do Instituto de Educação. Pois ela levou para assistir ao curso a tia dela, Dalila Gassen, mãe da Áurea Gassen Bohrer, que morreu, quando eu estava no Senado. Essa senhora assistiu ao curso. Entrou dizendo: - Doutor, eu não sou professora, mas vivo estudando desde menina. Como a minha família achou que eu não precisava fazer estudos para professora, porque não precisava trabalhar, não me formei. Além disso, sou materialista e atéia convicta. Mesmo assim, o senhor permite que eu assista a esse seu curso?

Entrou assim. Tive então diálogos, não digo tensos, mas muito delicados com ela. No fim do primeiro ano, como já disse, exigiram a minha volta no ano seguinte. Aí já era um curso para quase 50 professoras. Não integrava o currículo, mas era semi-oficial. Elas não me conheciam bem e pensavam que eu tinha pelo menos o direito a uma remuneração. No segundo ano, quando terminou a minha co­laboração, no dia da despedida, entrei na sala e vi um daqueles envelopes oficiais enormes, recheado, sobre minha mesa. Nunca pensei que quisessem insistir dessa maneira. Uma senhora que trabalhava lá como zeladora me disse:

- Doutor, esse objeto é seu.

- Realmente, nele estava escrito o meu nome. Abri e encontrei ali dentro não sei quanto. Na linguagem de hoje, seriam milhões. Chamei, então, a Dona Inês Menna, essa senhora, Dona Olga Acauan e Dona Marietinha Silva, que era uma santa criatura, e lhes disse:

- As senhoras tenham paciência. Compreendo a preocupação em colocar isso aqui sobre a minha mesa, mas as senhoras hão de compreender o meu escrúpulo, depois do que disse e fiz, em não tocar em nenhuma dessas notas. Façam-me um favor: entreguem esse valor ao Pão dos Pobres.

A comissão incumbida de levar aquele valor ao Pão dos Pobres foi integrada pela Dona Inês Menna, Dona Olga Acauan, Dona Marieta Silva e Dona Dalila Gassen. O senhor sabe que conseqüência esse gesto determinou? Essa senhora, em seguida, pediu às amigas que a colocassem em contato com Frei Pacífico. Integrada, fez-se uma criatura de dedicação total à Igreja, de uma atividade apostólica exemplar. Morreu, como já disse, de uma uremia, relativamente moça ainda, quando eu estava no Senado.

- O senhor foi também professor regular do Instituto de Edu­cação, não foi?

- Fui, sim. Devido a esse curso, um dia estou em casa e entrou aqui o Álvaro Magalhães:

- Doutor, disse-me ele, faça o obséquio de ler este ofício.

Era um oficio do General Flores da Cunha me nomeando professor. O oficio era encaminhado pelo Secretário do Interior, o João Carlos Machado, porque, naquela época, não havia Secretaria de Educação. Aquilo foi uma surpresa total, pois o professor de Psicologia do Instituto, desde a saída do Raul Bittencourt, era o velho Pitta Pinheiro. Lecionei, então, Psicologia durante três anos no Instituto de Educação.

- E como foi essa experiência?

- Aí travei batalhas ideológicas, entre outros, com o Anísio Teixeira, que era terrível. Ele veio a Porto Alegre, quando o Emílio Kemps era Diretor do Instituto. Convidaram-me para saudá-lo e eu aproveitei a oportunidade para dizer, de público, no duro, tudo o que precisava ser dito.

                        Lá dentro, todo o meu magistério era um combate contínuo ao Dewey, a tudo que há de criticável na obra de William James, e uma pregação sobre tudo o que eu via de beleza na Psicologia Prospectiva, última expressão do pensamento de William McDougall. Foi uma luta. Foi já um magistério apostólico.