Diálogos


A SEDUÇÃO DO FILOSOFAR

 

- O senhor sempre criticou Kant em suas aulas, palestras e discursos, acima de tudo pelos males decorrentes de seu formalismo, que leva à perda do realismo, da objetividade do conhecimento humano e, conseqüentemente, ao ceticismo. Há uma coincidência, porém, entre Kant e o senhor, que pode ser descoberta na leitura da conclusão da "Crítica da Razão Prática", de Kant. Lá ele diz que duas coisas enchiam cada vez o espírito dele de crescente admiração, respeito e veneração: um céu estrelado sobre a cabeça e a lei moral dentro da alma. Estes são, em verdade, os pontos de partida lógicos do pensamento dele: a ordem cósmica e a ordem moral. Deixando a questão da lei moral para mais tarde, gostaria que o senhor repetisse algo, que me contou há algum tempo, relativamente ao impacto de uma reflexão sobre o céu estrelado, no alvorecer de sua atitude filosófica.

- Realmente, tenho presente, até hoje na minha memória, profundamente lastreada em mim, essa impressão, que envolve o período, não da minha infância, mas da minha juventude. Calculo que eu tenha tido essa experiência lá pelo ano de 1912 ou 1913. Portanto, eu tinha 12 ou 13 anos (não posso dizer isso exatamente). Estava na fronteira do Uruguai com meu pai, que comandava uma força do Exército. Acompanhá-lo, em barracas, em sua vida militar, era para mim uma espécie de prêmio. Havia uma revolução no Uruguai. Lá pelas oito da noite, travou-se um duelo, num combate simulado de artilharia. Era uma noite formidável, magnífica. Eu fiquei afastado, em cima da coxilha, montado sobre um cavalo, a uma distância de mais ou menos uns 2 quilômetros do local desse combate. Debaixo dos meus pés, um universo de pirilampos, uma enorme nuvem de pirilampos. Em cima, o firmamento, "outros pirilampos”. Interessante, nessa solidão em que não tinha com quem falar, como foi estimulante para mim a percepção da Via Láctea. Eu me Iembro de que, nesse estado, nessa situação de solidão, de contemplação de um céu e de uma natureza, que me seduziam e polarizavam, tive a impressão de que havia sido levado por um estado de consciência que eu chamaria de espanto. Consciência da minha transcendência, da minha diferença face àquilo que estava diante de mim. Eu me estranhei e estranhei a minha relação com o mundo.

- Como dizia Platão, teria se espantado com o fato de as coisas serem como são... ou seja, teria começado a filosofar.

- Sim, acho que senti isso que Platão denominava o "espanto criador ". A força criadora da Filosofia não foi mesmo outra coisa senão o espanto do homem diante do mistério do ser. Aristóteles dá a esse espanto, a esse estado psicológico, um acento mais cerebral, especulativo, intelectual, ao passo que para Platão não: é a totalidade da personalidade que está envolvida, é a inteligência e, afinal, todo 0 homem, com sua vida afetiva e emocional, portanto, a totalidade da pessoa. Dizem os gregos que daqui partiu o pensamento para a es­calada filosófica, para a atitude filosófica, para a consciência filosófica.

Não vou dizer que aquilo que experimentei tenha sido, em realidade, o espanto que os gregos viram na gênese da Filosofia. O que digo é que, para mim, para a minha vivência do mundo, do meio em que eu estava, aquilo foi fundamental. Tanto que se revelou até numa modificação do meu comportamento sentimental, nas relações que tinha com os meus familiares, com minha mãe e meu pai. Quando re­tornei, isso se fez tão visível que numa noite, jantando, meu pai disse:

- Tu estás muito sério!

- Mas eu não tinha nada, não estava com enfermidade nenhuma. Estava fazendo o meu curso no Ginásio Nossa Senhora Auxiliadora e não sofri nenhuma modificação. Mas alguma coisa amadureceu em mim, alguma coisa surgiu, que eu não tinha experimentado antes. Isso eu registro.

- Teria sido o primeiro e extraordinário encontro com o ser, a que alude Jacques Maritain?

- Feitas, afinal, as necessárias diferenciações da minha experiência pessoal face à de Maritain, sinto que foi o mesmo que ele descreve, mas com muita beleza Iiterária, em "As Grandes Amizades”; e retorna depois em "Sete Lições Sobre o Ser”. Ele conta como descobriu o ser, como o ser se desvelou a ele. Era já um homem amadurecido e culto quando foi sentir, em um carro de estrada de ferro, viajando no interior da França, ao lado da Raíssa, esse desvelamento do ser, esse espanto diante da vida.

- Para o senhor, foi a primeira experiência metafísica?

- Eu não destaco, assim, como experiência metafísica autêntica, porque acho que o sujeito só vai tomar consciência profunda de toda a riqueza da experiência metafísica, principalmente nas situações sentimentais e morais.

- Sim, mas não estamos aí tocando no tema das experiências existenciais limítrofes ou até nos aproximando da segunda experiência encantadora registrada por Kant, na conclusão da "Crítica da Razão Prática", ou seja, a experiência da ordem moral na consciência?

- Isso sim, e a esse propósito posso até lhe relatar um fato que me confirmou muito nessa posição. Eu já tinha feito o meu curso de Direito, devia ter de 30 a 31 anos de idade, quando faleceu a Tia Sinhá, irmã mais velha da Tia Alice. Era a minha tia mais idosa. Ela faleceu às seis e meia da manhã. Eu tinha passado a noite com ela, mas tinha me recolhido meia hora antes num quarto distante para re­pousar, quando ouvi gritos. Pulei do local em que estava e entrei no quarto, no momento em que ela falecia. Encontrei a Tia Alice, que faleceu há dois anos, na porta do quarto, com os braços levantados, uns olhos cartesianos, espantados, diante do mistério da morte, me dizendo:

- Mas que mistério é a morte, Armando!

A morte funcionou aí como conceito limitador da vida. Mas o que e1a queria dizer, na verdade, era:

- Mas que mistério é a vida!

Isso foi fundamentalmente a parte positiva do registro. Eu senti muito bem, nessa expressão dela, todo o significado do que teria sido para ela, talvez, a experiência filosófica. EIa era uma senhora muito inteligente. Até o seu último momento de vida, foi isso: uma criatura portadora de uma capacidade de perceber o mistério do mundo e do homem, como poucos. Sem nenhuma ilustração filosófica, mas com a vivência de situações de contingência humana, de limitação humana muito viva.

- Essa foi, sem dúvida, a experiência e uma situação-limite, de uma emoção muito forte, que despertou em alguém a questão fundamental. Mas o senhor falava, como Kant, do impacto da experiência moral na gênese do filosofar...

- Ah! Se o senhor quer me perguntar quando, em realidade, se constituiu a consciência filosófica em mim? A resposta é esta mesmo: foi quando experimentei os meus dramas morais. Um ser batizado, com ambiência escolar inicialmente católica quando menino, ulteriormente, por transferência para um meio escolar saturado de laicismo e de naturalismo, como era o Colégio Militar, sofri a minha crise de comportamento moral. E quando um dia a misericórdia de Deus, afinal, me apanhou na minha mediocridade ou, melhor ainda, na minha figura de pecador moço, quando a misericórdia me arrancou dessa situação, isso foi a libertação da minha inteligência, a paz para a minha consciência. Desde então, senti que a minha única reação diante do mistério do mundo, a única resposta que eu podia dar, era um devotar-me total, se necessário com renúncia àquelas solicitações que são tão naturais, tão humanas, como constituir um lar com renúncia, afinal de contas, a mil prazeres lícitos da vida, devotando-me a esse mistério da relação com meu Senhor, com o meu Deus, com o Absoluto. A crise moral é que me Ievou a isso. Nessa cri­se, acho que operou a força redentora de Cristo, o coração de Deus, que salvou-me da minha miséria. Acho que essa vivência foi funda­mental para as posições que assumi como resposta à problemática filosófica. Ao fim disso aí, há a afirmação de Deus, categórica e ab­soluta, e há certamente a consciência da minha dependência de Deus e da minha gratidão, do meu vínculo, da aceitação dessa ordem que se impunha a mim, com essa redenção que se operara em mim.

- Assim a vida o fez filósofo...

- Talvez esses episódios, relacionados em linhas convergentes, expliquem aquilo que eu chamaria, não a minha filosofia, absolutamente, pois eu era um analfabeto total nessa matéria, mas a minha disposição de pensamento, a minha abertura de espírito para a temática filosófica. Isto é o que eu diria. Mais do que isso seria já interpretar academicamente e artificialmente uma posição que me foi dada dentro da minha condição de homem, da minha situação do ser finito, limitado.

- Pode-se afirmar, assim, que a predominância ética de sua experiência existencial explica seu interesse original e primordial pelos problemas do homem, pelos problemas do comportamento humano, no terreno dos Valores, do Direito, da Moral e da Religião?

- No meu caso, dada essa eletividade do meu pensamento para a área ética, já se compreende que meu ponto de partida tenha sido o problema humano. Mas o problema humano, enquanto objeto de análise racional, enquanto problema, porque relativo ao homem ferido, ao homem que caiu. É o homem adâmico, o homem com toda sua problemática ética. Eu sou igual a esse homem. Sentindo, por­tanto, a necessidade, para se definir, para buscar sua definição, nesse contexto, da presença do Absoluto na vida humana.

- A Filosofia aparece, então, em sua vida, como instrumento para a realização de sua destinação humana?

- Eu parto do homem, que busca na Filosofia a bem­ aventurança, do homem, que busca na Filosofia os fundamentos da felicidade, da salvação humana. Como dizia Varrão, a quem Santo Agostinho tanto cita, a Filosofia não teria sentido, se não tratasse da felicidade do homem. Essa expressão tem muito valor e está muito em relação com a minha concepção da gênese do pensamento filosófico, quando caracterizo o interesse moral na gênese do pensamento filosófico, quando analiso a constituição da Filosofia no pensamento do homem, quando analiso a aptidão filosófica, como estrutura psicológica, quando busco na Filosofia o remédio para o homem, o caminho para o homem, a vida para o homem e não destaco o papel da verdade para o pensamento. Mas acontece que o bem para a vida decorre da verdade que o pensamento possui.

Aqui, para ser sincero, dentro da minha biografia, do ponto de vista das minhas condições existenciais, dentro da situação em que eu vivi, das circunstâncias em que eu estou, comecei aquilo que eu chamo de punctum pruriens, o ponto estimulante, o chicote estimulante. Foi uma temática humana sofrida, cheia de sofrimento, foi o drama integral da existência. Foi um ponto de vista existencial, antes do existencialismo. Não o de Kierkegaard, que eu ignorava na ocasião em que constituí as minhas posições de pensamento. Só mais tarde fui encontrá-lo, dentro da Escola de Filosofia, embora ele tivesse vivido um século antes (ele é de 1815, 1830, período do Comte). São duas figuras antitéticas, embora contemporâneas e próximas, um da Dinamarca e o outro da França. É nesse sentido que eu digo que encontrei a minha polarização no problema do homem. Mas de um homem assim e não um homem inconsciente da sua situação histórica e cultural. Eu estava vinculado a uma situação histórica e cultural, que motivava minha exigência de atendimento ao drama humano, vendo a solução dele na transcendência de Deus, indo a Deus, através da experiência do homem, através dos fracassos do homem, através das enfermidades humanas, através do sofrimento e a frustração da bem­ aventurança humana. É, portanto, uma configuração ética, mas ética antropológica, não teológica, no sentido de que o Bem decorre da Verdade.

- O senhor confirma, pois, a hipótese da minha pergunta.

- Eu parti, sim, já que o senhor insiste, de uma concepção existencial humana. Tomando essa posição, e não querendo compro­meter a minha essência com a minha natureza, que é o erro dos existencialistas, não me propondo a construir sistema, mas, despreocupado com o sistema e despreocupado com a construção, busco vital­mente, dramaticamente, a minha própria definição de homem, os pressupostos e os compromissos que eu assumi com essa definição. Parti dai, mas o animal racional sentia a necessidade da motivação cada vez mais profunda e daí a minha marcha célere e rápida para a metafísica, porque era a Filosofia do ser.

- Surgiu, assim, seu interesse pela Metafísica.

- Não há uma antropologia sem ontologia. Uma antropologia, afinal, é um fruto fora da árvore, pairando no espaço. De maneira que, por exigência total de unidade e, portanto, de racionalidade e liberdade, por exigência total da natureza humana, por uma vivência profunda do problema filosófico no problema do sofrimento, da dor, da vida, da obstinação, do pecado (problema antropológico), fui levado, depois, para as posições metafísicas.

- E como se deu a passagem do interesse pela metafísica para o interesse pela Axiologia?

- Sentindo a glacialidade aparente da metafísica, parti para a Axiologia, para o Valor. Aliás, quando os homens, no século passado, tinham perdido a consciência do primado do problema metafísico, se socorreram também - era uma forma de salvar a própria existência ­da consideração da Filosofia do Valor. A Axiologia aparece como um sucedâneo da Metafísica para essa geração de filósofos do século XIX. Eles não podem ser privados da busca do sentido da vida, da significação da vida e, não o colocando como um problema metafísico, se socorrem do sentimento de uma transcendência, nos apelos do valor. A verdade nos polariza, o bem nos polariza, a beleza nos polariza, a justiça nos polariza. Eles ficam com aquilo que eu disse num curso: com um pseudônimo de Deus, que é o Valor; com essa presença laica de Deus na consciência do homem, que são os valores.

Esse é o significado da minha marcha para a Axiologia. Se eu pudesse resumir, resumiria assim. Mas não posso reproduzir aqui tudo o que eu disse sobre esses temas, todas as posições que assumi e as teorias que ensinei. Só a teoria do Valor eu a analisei durante um ano e estou, há anos, me ocupando da Axiologia jurídica e da teoria da Justiça.

- Poderíamos, então, registrar que a estrutura lógica de seu pensamento, como a de Kant, apesar das diferenças fundamentais que os separam, se embasa na idéia da ordem universal e da ordem moral, na qual o homem está inserido?

                        - A direção de pensamento é essa mesmo. Parte-se do homem, do drama humano, do problema ético do homem e, como decorrência, chega-se à exigência de fundamentação, de motivação racional, de busca da metafísica e de toda a problemática da metafísica. É por­tanto, a busca do ser e a busca do Valor que está no ser. Eu estou, alìás, nessa fase do Valor.