| Diálogos A GÊNESE DO PENSAMENTO FILOSÓFICO -
Uma de suas grandes preocupações foi demonstrar a aptidão filosófica do
pensamento humano e a Filosofia, como resultante dessa natureza. Eu gostaria de
lhe propor como próximo tema de nosso diálogo a explicação da gênese psicológica
de sua forma pessoal de filosofar. -
Eu nunca fiz da estrutura do meu pensamento filosófico um objeto de análise
especifica, responsável, consciente, de modo que não falaria com uma linguagem
clara e não teria um pensamento lúcido, se quisesse fazê-lo agora que sou
abordado sobre isso. Seria algo muito complexo. Então, eu prefiro expor a minha
forma de ver o que seja o pensamento filosófico na sua estrutura, o pensamento
filosófico como estrutura psicológica, a forma de pensar filosófica; como
estrutura psicológica. Indiretamente, já estarei dizendo muito a respeito do
que eu penso sobre o que seja Filosofia e sobre a maneira como o pensamento
filosófico, se exercendo, pode produzir a Filosofia. Quando
analiso a morfologia dessa estrutura, entro numa afirmação de Deus que invade
tudo. É o problema de Deus novamente. Se eu desse uma resposta vinculando a
Gnosiologia, a Ética e a Metafísica (o que foi objeto de um curso), tudo
estaria anunciando Deus. E assim estou entrando na parte mais íntima do sacrário,
onde a análise tem tendência, não para a meditação, mas para a oração. Eu
defendo a tese de que foram fatores, não apenas especulativos mas fatores
predominantemente afetivos, éticos, existenciais, concretos, que determinaram o
surto do pensamento filosófico. A primeira escalada do pensamento filosófico
se fez sob o chicote do interesse moral. O homem filosofou para existir como
homem. Os fatores determinantes das primeiras grandes generalizações, das
supremas abstrações, foram de ordem moral. Foram as situações limites, que
eu defini como interesse moral. Sobre as situações limites, há uma enorme
bibliografia hoje. O Gerd Bornheim examinou isso na tese dele. O Max Müller e o
melhor grupo da Psicologia alemã estão hoje insistindo no valor das situações-limites
para compreensão do pensamento filosófico. Este
é um esforço, no sentido de dar uma configuração da Filosofia como algo que
integra a existência humana, as raízes humanas, no sentido de mostrar o
atendimento que ela faz a necessidades que são perenes, e ainda no sentido de
mostrar como sua tarefa é tão durável como a tarefa humana. Enquanto existir
um homem, enquanto ele guardar sua natureza racional, existirá pelo menos um
embrião de pensamento filosófico. Porque, sendo racional, ele será compelido
a pensar segundo essas leis; e essas leis conduzem, pelo seu desenvolvimento lógico
e orgânico, a uma visão filosófica unificada do homem. Como ele é homem, ser
racional livre, ele vai se comportar diante da imagem do mundo que ele integra,
atendendo a essas exigências causais, e vai se comportar no sentido de se
relacionar com este mundo e buscar sua tarefa humana de realizar a própria
perfeição. É,
assim, uma evidência na condição humana a presença de uma forma filosófica
de pensar, ao lado da forma cientifica de pensar ao lado da forma artística de
pensar, ao lado da forma religiosa de pensar. São formas diversas e permanentes
de presença do homem, como operário da cultura, como artífice da cultura e da
civilização. -
O que, a seu ver, caracteriza a postura filosófica? Por que uma forma
determinada de pensar foi qualificada como forma filosófica de pensar? O que é
essa aptidão ou essa faculdade de pensar? -
Vamos buscar a resposta à sua questão a partir dessa aptidão filosófica da
natureza humana. Uma faculdade é uma aptidão permanente para a prática de
determinadas coisas, conforme a teoria das faculdades da Filosofia Escolástica.
Reduzindo ao máximo, para ficar apenas naquilo que nos interessa; faculdade é
uma aptidão para determinados atos. Ela se revela pela sua continuidade, como
determinado estilo de comportamento. Ela tem uma configuração, como energia
espiritual adequada a determinadas exigências. Se
há, na História, como uma constante, a revelação de que o homem, além das
formas já descritas de pensar, tem a forma filosófica, não revela já esse
comportamento do homem que ele é portador de determinada estrutura psicológica,
que o leva a isso? - Ótimo, então por que não analisarmos agora a aptidão filosófica do homem como estrutura psicológica? -
Sim, mas o nosso ponto de partida deve ser a análise do que seja uma estrutura,
dentro dos conhecimentos da Psicologia. Na totalidade das energias do espírito
humano, nós encontramos forças psíquicas, energias psíquicas, que se
relacionam. Assim como, na vida, na Biologia, há estruturas orgânicas que a
Anatomia analisa, e que são os órgãos para o exercício de determinadas funções,
assim haveria também, dentro da atividade dinâmica psíquica, energias que,
para se processarem, para se exercerem, se relacionariam em formas de
relacionamento que se caracterizam pela constância. Mas
toda estrutura tem uma unidade de forma e uma unidade de função, uma unidade
morfológica e uma unidade funcional. Se há, então, no exercício do
pensamento filosófico, a revelação de uma unidade funcional do espírito,
haverá também uma unidade morfológica. Analisando esse problema, vamos em
busca da Filosofia como estrutura psicológica, na sua unidade funcional e na
sua unidade morfológica. Vamos
utilizar uma imagem: quando é que nós determinamos, por exemplo, na psicologia
do homem, a presença de um ato psíquico que se denomina um ato de memória ou
um ato de imaginação ou um ato volitivo? Certamente quando, pela forma como o
homem reage no seu psiquismo face ao mundo, encontramos determinados sinais.
Dizemos, então, que há uma estrutura mnemônica, uma estrutura da afeição,
uma estrutura da imaginação, como faculdade, como aptidão. Uma imagem mnemônica
é uma coisa, e uma imagem de ficção é outra coisa. O ato livre tem uma
determinada estrutura que não é igual à estrutura do ato intelectual. Esses
critérios são usados em Psicologia, para estabelecer um pouco de ordem na
forma como o homem psiquicamente age. Ele age pensando, age querendo, age
sentindo, age imaginando, age associando. Tudo isso são revelações de aptidões. Na
aptidão filosófica, como estrutura psicológica, vamos encontrar uma unidade
funcional. Essa é á primeira forma de uma estrutura se revelar à análise. Se
a estrutura não tem unidade funcional que comanda a fidelidade das relações
que integram, então ficamos no equívoco, na ambigüidade. A
forma como o pensamento humano se exerce já revela que a forma filosófica de
pensar é algo inelutável. Para que o homem entre na postura filosófica, basta
que ele pense e atenda às leis do pensamento. Se o homem se abandona
docilmente, se entrega à ação coativa das leis, que regem o seu pensamento,
termina dando à realidade, que está como objeto da sua percepção, uma
representação que denominamos de caráter filosófico. O atendimento às leis
que governam o pensamento conduz, nolens, volens, querendo o sujeito ou não
querendo, sabendo ou não sabendo, de uma forma incoercível, a expressar a sua
reação intelectual face ao mundo, sob a forma filosófica. Pensar é pensar
algo sobre determinada coisa. O objeto do pensamento é sempre o ser. - Mas o que significa pensar o ser? -
Pensar é relacionar as experiências que o homem colhe no seu contato com os
fatos, com os objetos que integram o mundo, com a vida, segundo exigências de
identidade, de não-contradição, de razão suficiente, de causalidade e de
finalidade. Se pensar é relacionar segundo essas leis, que comandam
inelutavelmente o pensamento, então o simples atendimento dessas exigências na
compreensão do real, independentemente da intenção do sujeito, que realiza a
operação intelectual, leva o pensamento à postura filosófica. No momento em
que eu, pensando o ser, atendo à exigência da explicação causal, estou me
colocando na posição do pensamento que marcha para a abordagem, para a tomada
de posição, face à sua causa primeira. -
Monsieur Jourdain, na criação de Molière, durante a aula de literatura em que
aprendeu a distinção entre poesia e prosa, espantouse, ao constatar que
tinha sido sempre um prosador, sem que o soubesse. Da mesma forma, o senhor
afirmou há pouco que todo o homem é filósofo, sabendo ou não sabendo,
querendo ou não querendo, tendo ou não descoberto isso em si mesmo. Mas qual
é, então, a explicação última dessa natureza filosófica do ser humano? -
Quando se pergunta em aula qual é a gênese do pensamento filosófico, a
resposta é mais um feixe de sugestões do que propriamente uma resposta. Isso não
é de admirar. O Cardeal González, um espanhol, autor de obras afamadas, com
tradução em várias línguas, embora não se propondo especificamente esse
problema, diz, a propósito da teoria do ato e da potência de Aristóteles, que
a Filosofia surge na História passando da potência para o ato. Mas, nesses termos,
a batata também passa da potência ao ato. Resta saber como a potência
intelectual passa ao ato, através de que operações psicológicas, de que
estrutura surge o pensamento filosófico. Esse é o problema. A
questão é interessante, para que não se pense, por exemplo, que Filosofias,
como a de Sartre, são assim, porque são assim. Não é a responsabilidade de
Sartre que gera esse efeito, não. Ele não tem responsabilidade nenhuma nisso.
Isso é resultante das evidências às quais ele chegou puramente pela análise
de determinadas situações pelo pensamento. - E por que o senhor afirma a importância dessa descoberta da aptidão filosófica como estrutura de pensar do homem? -
Estou realmente interessado pelo tema, estou interessado em fazer alguma coisa
que fundamente as nossas posições, porque isso nos dá base para chegar a
conclusões sobre a existência de uma Filosofia Perene e explicar que essas
manifestações imperfeitas do pensamento resultaram de um desatendimento a
essas exigências. A variedade de desvios do pensamento filosófico não é uma
expressão de riqueza, mas de pobreza, de omissão e de farsa. Uma Filosofia é
um compromisso, e nós temos que julgar a forma como os filósofos assumiram e
cumpriram mal o compromisso. -
Voltemos, por um momento, à pergunta: por que o senhor afirma que todo homem é
um filósofo? -
Para responder a essa questão, vamos ensaiar a retomada da análise relativa ao
pensamento filosófico, enquanto ele expressa o que nós denominamos uma
estrutura psicológica do homem. A
idéia de estrutura tem sido trabalhada em Psicologia com diferentes intenções
de análise, em diferentes correntes doutrinárias. Basta lembrar a Psicologia
da Estrutura, a Psicologia da Forma, a Psicologia de Spranger, a de Kõhler ou o
Estruturalismo atual. Basta lembrar, por exemplo, a análise de Krüger,
eminente psicológico da Escola de Leipzig, na sua obra "Totalidade Psíquica",
para dizer que se trata aqui de algo que tem sido objeto da análise de grandes
psicólogos. Vamos
tomar um caso concreto. O tema seria este: não seria mais rico, mais pedagógico,
mais fácil e, conseqüentemente, mais didático, numa cadeira de, por exemplo,
Propedêutica Filosófica, em vez de apresentar aos neófitos um conceito já
elaborado, em vez de lhes propor um conceito abstrato, que não corresponde a
uma realidade experimentada, a uma situação existencial vivida, iniciá-los na
visão do que seja a Filosofia existencialmente, historicamente, humanamente?
Geralmente o trabalho definidor oferecido aos apedeutas tem sido buscado nos
grandes mestres do pensamento filosófico, que resumem, nas suas conceituações
de Filosofia, a quintessência do seu sistema. Parece-me, no entanto, que seria
mais pedagógico, mais psicológico, mais humano, para estabelecer o primeiro
contato de alguém que, dentro do pressuposto de um curso universitário,
ignora, pelo menos oficialmente, a Filosofia, apresentar-lhe, não um conceito,
um conhecimento filosófico, que é já o produto elaborado por uma determinada
forma de pensamento, que é já o resultado da atividade do pensamento, mas
apresentar-lhe a forma como esse conceito, de natureza filosófica, resultou de
algo que se apresenta na natureza psicológica do homem, como o que se denomina
uma estrutura psicológica. Resumindo: a aptidão filosófica é ou não é algo
que corresponde ao conceito de uma estrutura psicológica? - Mas, Professor, o que é, afinal, uma estrutura psicológica? Parece-me que sua resposta ficou ainda incompleta. -
Voltemos, então, a nosso ponto de partida. Toda a Psicologia, que analisou, em
séculos de presença nos cursos de formação universitária, o homem e o
problema das faculdades psicológicas, ensina que faculdade é uma aptidão
permanente para a prática de determinados atos. Essa aptidão, essa
potencialidade, essa virtualidade, que se revela no exercício da aptidão,
corresponde ao que, por exemplo, em Biologia, na área de Anatomia, se denomina
uma estrutura. Assim
como há a estrutura de uma morfologia renal, cardíaca, pulmonar, hepática,
etc., haveria, no campo psicológico, por analogia, formas de reação do mundo
interior psicológico, face ao mundo exterior, ao universo, ao meio ambiente.
Haveria formas de comportamento, disposições, faculdades, aptidões, que
corresponderiam, pela maneira como se revelam permanentes em toda a linha da
vida humana, desde o seu início até o fim, ao conceito que se utiliza, por
analogia, em Biologia, de estruturas anatômicas. Assim, a memória, a atenção,
o poder associativo, a própria estrutura racional do homem, a estrutura
volitiva do homem, todas essas atividades, que são objeto de análise de
grandes tratados de Psicologia. Por exemplo, na obra de Scheler, há uma análise
magistral do que seja a estrutura da atividade racional, desde o inconsciente do
pensamento até suas formas conscientes, quando o pensamento, tomando consciência
da sua função, regido pelas suas leis, que são reguladoras do próprio
comportamento, se revela como uma força espiritual que tem funções
especificas, rigorosamente distintas, por exemplo, das funções volitivas. Vamos
trabalhar agora sobre essas linhas, que se revelam como linhas de ação dessas
estruturas psicológicas, sejam volitivas, representativas, lógicas, racionais,
etc. As linhas de força que integram a força espiritual do homem são múltiplas
e heterogêneas, não obstante estarem unificadas dentro da estrutura geral da
personalidade humana. A unidade da personalidade não impede, porém, que ela se
expresse na personalidade intelectual de alguém, na personalidade moral de alguém,
na personalidade artística de alguém. Há as formas do gênio moral, do gênio
especulativo, etc. Não obstante essa unidade, as múltiplas energias, que
integram a estrutura fundamental da personalidade, se combinam, através de uma
inclinação, de uma tendência inata e constitutiva do indivíduo, para a produção
de determinadas formas de reação do homem face ao mundo. Assim, ao analisar a
aptidão filosófica, como estrutura psicológica, não vamos encontrar uma matéria
homogênea, uma ou duas linhas de força integrando o quadro da estrutura psicológica
que expressa a aptidão filosófica, vamos encontrar, ao contrário, linhas de
forças, tendências e inclinações heterogêneas. No entanto, quando elas se
associam, dentro de um determinismo psíquico (porque são determinações do
ser psicológico), expressam inclinações, tendências e vivências. Nós ás
encontramos expressas num ato que traduz todo o esforço dessas linhas que
integram a realidade psicológica do homem. Nós dizemos que essas forças,
embora heterogêneas e diversas, realizam, em comum, conjugadamente,
determinados atos psicológicos. Elas se revelam presentes à análise, quando
o espírito, retrospectivamente ou dentro de introspecções profundas, as
surpreende como elementos integrantes de determinados atos. Elas se expressam na
unidade de um ato, que é o desfecho de uma atividade múltipla de linhas
diversas e heterogêneas de forças psicológicas. Elas integram uma estrutura
psicológica. Minha
intenção é definir o pensamento filosófico como resultante de uma estrutura
psicológica. Uma estrutura constituída de forças, de fenômenos e de tendências
psicológicas. Forças que, embora distintas, heterogêneas e diversas,
trabalham, dentro de um determinismo psicológico, para produzir em comum, para
se revelarem no comportamento psicológico, para produzirem determinados atos. A
forma do pensar filosófico é a expressão desse determinismo psicológico. Os
atos resultantes do pensar filosófico, que são as formas filosóficas do
pensamento, são as resultantes, o estuário, o termo de um processo de elaboração
dessa forma de comportar-se do homem diante do mundo, no sentido de conhecê-lo
e, conhecendo-o, atuar sobre ele; no sentido de, conhecendo o homem a si mesmo e
o mundo em cujo seio está, dirigir-se a esse mundo, comportar-se face a ele.
Vamos encontrar essas forças assim: uma multiplicidade heterogênea que se
conjuga para a prática e o exercício dessa forma de pensamento que é a
Filosofia, no sentido em que realiza permanentemente determinado produto. O
produto dessa atividade da estrutura é o que denominamos pensamento filosófico
ou aptidão filosófica do espírito. Em
todos os atos da personalidade está a totalidade psíquica. No ato do exercício
do pensamento filosófico está essa totalidade. Em cada ato humano está o
homem todo. Na multiplicidade das operações, dos atos psicológicos do homem,
vamos encontrar uma multiplicidade de energias convergentes. Essa estrutura se
revela, não só una, mas constituída de uma complexidade de forças; se revela
sempre igual em todos os comportamentos humanos; se revela permanente no homem,
tem continuidade, integra a estrutura total da personalidade. Ela não é
constituída apenas de energias, que tentam a satisfação das exigências
puramente especulativas do homem, porque a Filosofia não é obra só do
pensamento, é obra de uma personalidade que pensa, de um homem que pensa.
Conseqüentemente, nessa estrutura devem estar presentes exigências de
compreensão, assim como exigências de ação. A
Filosofia não se limita tão-só a explicar o homem, mas a, explicando o homem,
atender a exigências de realização interior dele. Não é só uma exigência
para atender à necessidade de compreensão e de explicação, mas para atender
às exigências totais de realização humana. Uma realização que não se
processa apenas com a presença de fórmulas para o espírito, mas com o
atendimento de todas as exigências de perfeição, de acabamento, de integração
do homem na verdade e, conseqüentemente, no bem dela decorrente. Uma
estrutura é, então, a conjugação de uma multiplicidade heterogênea de
linhas de força, de tendências, de inclinações. Algumas aparecem
subconscientes e outras até inconscientes, pois só vamos conhecê-las através
da análise dos seus efeitos. É o que caracteriza o inconsciente: uma
interpretação racional, não uma verificação experimental introspectiva.
Essas linhas de forças podem ser, portanto, conscientes, subconscientes e até
inconscientes. Por exemplo, o fundo do pensamento, que eu expresso, no momento
em que falo agora, é inconsciente, integra o meu inconsciente racional, está
imerso em áreas de atividade subconsciente, na própria expressão do meu
pensamento no momento. E há a raiz de reflexão de plena e total lucidez, de
plena evidência. Não
esperemos que o pensamento filosófico se encontre apenas na análise que estou
fazendo dele como estrutura psicológica, na área da atividade psicológica
consciente. Lá estarão presentes, assim como nos bastidores, energias que se
expressam subconscientemente, e outras, que radicam nas profundezas do
inconsciente humano. Na própria percepção de uma evidência pela razão não
se exaure a totalidade da vida racional. Há sempre um fundo de inconsciente. Vamos
ficar dentro da analogia que há pouco estabelecemos entre o organismo
biologicamente, anatomicamente, fisiologicamente considerado e o conceito de
estrutura transferido para a área da organização psicológica e espiritual do
homem. É uma analogia que eu aceito, embora tenha perigos. O organicismo, em
Política, em Sociologia e em Psicologia tem os seus perigos. Mas vamos ousar,
como critério, fazer essa tentativa de interpretação analógica do conceito
de órgão e de função. Eu
vejo a aptidão filosófica como uma estrutura psicológica se expressando da
seguinte forma: primeiro, é uma estrutura que decorre de um determinismo
intelectual. Os fatores que vamos indicar são constitutivos da estrutura psicológica
expressa nos atos. São fatores causais. Há uma causalidade psicológica que
predetermina o homem a ser filósofo, a pensar os objetos que ele pensa, em
estilo filosófico, em forma filosófica. Nós não realizamos um ato de pensa
mento como expressão da nossa liberdade. Porque existimos, somos
inelutavelmente racionais. Os fatores são, por isso, determinados pela própria
natureza racional do homem, porque ele é racional. Embora
possa ocorrer a transcendência da causa, face à situação contingente da
experiência, isso não reduz em nada o valor da própria experiência. Seu
valor permanece. Mesmo que a causa esteja além do experimentável, se o efeito
estiver dentro do âmbito da experiência, a exigência causal da explicação
é legítima. É o mesmo problema da essência de Deus. Ele transcende a causa,
apesar desse grande cartaz que está aí, o universo, essa grande evidência,
que nos envolve. -
A lei da causalidade ou o fato da causalidade no ser são, então, suficientes
para explicar a gênese do pensamento filosófico? -
Não. Não só a exigência causal governa e dirige o pensamento, mas também
as demais exigências: da não-contradição, da identidade, da razão
suficiente e da finalidade. Desde que o pensamento, se exercendo, se exerça
segundo as leis que o regem, os produtos desse exercício terão o caráter próprio
do pensar filosófico. Essas leis conduzem o pensamento a uma integração. As
experiências não ficam fracionárias, desmembradas, sem conexão. Elas se
integram, no atendimento das exigências, em grupos representativos, em
considerações de idéias que vão constituir uma visão das coisas, de
natureza filosófica. A
tese, singelamente apresentada, seria esta: observa-se a unidade funcional da
estrutura, como se observa o homem através da História, sempre compelido,
pelas leis que regem o seu pensamento, a produzir formas de representação da
realidade, tipos de explicação do ser, que têm a denominação de explicações
de natureza filosófica. Mas
há um segundo aspecto. Todas as Filosofias, sejam elas quais forem, trabalham
segundo essa exigência que, atendida, leva à produção de um pensar segundo a
causalidade, segundo a nãocontradição, segundo a identidade, segundo a razão
suficiente, segundo a finalidade. As Filosofias, apesar dos conteúdos
conceituais mais diversos, só se constituem fiéis ao atendimento dessas exigências,
a que o próprio pensamento atende. Conseqüentemente, surgem produtos de
pensamento que não são produtos, como os do pensamento científico. São
produtos tipicamente denominados filosóficos. Caracteriza,
ainda, a unidade funcional do pensamento filosófico, não só a busca da
integração, do sentido da globalização, do sentido da afirmação, dentro de
uma constituição unitária da realidade, mas ainda a busca de sentido da existência
integrada, das experiências integradas dentro de grupos unificados. Busca de
unidade da representação e busca do sentido da representação. Aqui já surge
o problema do valor: o problema do sentido é o problema do valor. O pensamento
filosófico se comporta sempre, através da História, como o atendimento de uma
exigência primeira, de integração das experiências, busca de unidade das
experiências e busca do sentido dessas experiências. No
momento em que o homem, pelo exercício do pensamento, encontra a significação
do ser, ao lado da percepção da unidade do ser, nesse momento ele está
revelando a satisfação de uma exigência que atravessa toda a História e que
caracteriza a forma de pensar filosófico. É a forma que encontramos nas definições
comuns de Filosofia. Qual é, por exemplo, a forma tomista de ver a Filosofia?
É a busca, pela razão natural, das primeiras causas e dos últimos fins. Aí
está caracterizada a forma filosófica do pensar, resultante do atendimento das
exigências de o homem, pensando, pensar segundo as regras que comandam o
pensamento humano. Essas regras já dispõem o pensamento, preordenam o
pensamento, dirigem, inclinam o dinamismo intelectual para a produção de um
produto próprio, um produto específico, que nós denominamos o produto filosófico
do pensamento, que atende à exigência de integração das experiências e de
globalização das experiências e, por outro lado, de apreensão do sentido das
experiências. Saber a significação que tem um homem dentro dessa imagem assim
constituída da unidade representativa do mundo; saber qual o sentido que tem a
relação do homem com essa totalidade visionada, com essa concepção unitária
do mundo; saber que significação tem o mundo para mim e qual é a minha posição
no mundo, é o problema do valor, o problema do sentido. Em todas as Filosofias
há isso. Isso é um leque contínuo, uma constante, um enredo permanente. Funcionalmente,
o pensamento filosófico é apreensão global e integradora das experiências,
levado a isso pelo atendimento das exigências do seu próprio dinamismo. Pensar
é relacionar os dados da experiência segundo exigências de identidade, não-contradição,
causalidade, razão suficiente e finalidade. Quando o pensamento se exerce
dentro dessas exigências, ele produz alguma coisa. Essa produção se
caracteriza como a produção de uma representação unitária, global,
unificante das experiências. Simultaneamente com a apreensão dessa unidade
representativa das experiências do homem, a exigência de compreensão do
sentido disso que ele afinal representa. Essa apreensão do sentido já
representaria a parte ética da concepção filosófica. A primeira é a parte
metafísica. A outra é a parte ética. O ser e minha posição dentro do ser,
meu relacionamento com o ser, a significação que eu tenho dentro de uma
totalidade ontológica, dentro de um contexto integral, universal do ser. Isso está indicando, portanto, a existência de alguma coisa, dentro da natureza psicológica do homem, que determina essa forma de pensar. Há não apenas o pensar. O meditar não é um explodir, e a meditação não é uma explosão. Essas energias são dirigidas, são determinadas. O homem vai à Filosofia, primeiro, por um determinismo ontológico. Querendo ou não querendo, vamos constituir o exercício do pensamento dentro dessa forma de exigências, que são as leis que regem o pensamento. Isso é de muita importância. Conseqüentemente, há algo que eu chamaria a situação-mestra da Filosofia. Qual é? É o determinismo ontológico do ser racional. A ontologia humana, do ser racional, conduz inelutavelmente a uma abertura desse sentido para os seus problemas, que são problemas de natureza filosófica. A causalidade compele o pensamento a filosofar, seja um pobre homem selvagem, ou seja, um doutor da Sorbonne. Porque é homem, obedece a um determinismo. Não se trata de algo eleito, escolhido, mas de algo forçado, determinado causalmente. Vamos à Filosofia por um determinismo causal, porque as leis, que regem o exercício do pensamento, nos conduzem a posturas de pensar, a formas de relacionar que são tipicamente filosóficas. Há, assim, na constituição psicológica de pensar, uma parte integrada por forças, que agem independentemente da escolha e da liberdade do homem, e que é a reveladora do universo funcional. Uma disposição determinante, coativa. |