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NESSE CREPÚSCULO DO ESPÍRITO E DA CULTURA, SÓ A IGREJA PERMANECE, HOJE, COMO UM BLOCO DE FORÇA SILENCIOSA1 Reverendo Padre Frei Pacífico. Ouvindo as palavras que lhe
anunciavam pisar terra sagrada e face à sarça ardente, o homem bíblico
encheu-se de religioso terror. Deus estava ali, na luz e no calor daquele
arbusto, ele, o Deus de Abrahão, de Isaac e de Jacob, o Senhor do céu e da
terra. Esse frêmito do ser humano
face à Divina Presença - tradução emocional da consciência de nossa
finitude, recordação, talvez, da infidelidade primeira, obriga ao silêncio,
porque é fonte de adoração. Silenciamos sempre, nos
momentos vitais de nosso agir: silenciamos ao tomar o pão caduco que prolonga a
nossa caducidade; silenciamos, ao adorar, ao encher de Deus nossas almas. Padre Pacífico, um dia,
apontando para seus discípulos, Cristo disse: "Quem vos recebe, a mim
recebe". Desde essa revelação que implica a realidade de um misterioso
prolongamento da divina presença, na presença sacerdotal, só um comportamento
lógico é possível aos cristãos - o do Poverello, o de vosso pai Francisco,
beijando as pegadas de corcéis que conduziam apóstolos, em sua faina salvadora
de almas. O gênio moral do místico poeta do Cântico do Sol, viu Deus que
passava na esteira poeirenta daquela cavalgata missionária. Deus estava ali! E
face a ele, só cabia o silêncio, cheio de adoração e amor. Padre Pacífico, coagido por
um imperativo funcional, realizo, neste instante, algo que raia no ilogismo e
limita na profanação. Devo, em vossa presença, dissertar, julgar, analisar
vossa existência essa existência cuja contemplação, no entanto, sempre me
inspirou um silêncio cheio de religiosa admiração, essa existência que foi,
para mim, um motivo de credibilidade, uma das revelações mais ricas da
realidade do espírito e da ordem moral, uma das traduções mais altas e puras
do mundo e da vida sobrenaturais, enfim, da divina presença entre os homens. Recebendo-vos nesta sessão
destinada a cantar convosco um Te-Deum, uma ação de graças, à divina
prodigalidade que nos enriqueceu através das riquezas com que vos cumulou, devo
falar, quando experimento, tão só, à necessidade de calar, de adorar
silenciosamente o Cristo presente em seu apóstolo, ao Deus que nos visita,
através da humanidade exemplar de seu eleito: "Quem vos recebe, a mim
recebe". Para não ser frívolo, este
discurso deve imitar uma oração glorificadora do Deus que faz fecundas,
luminosas e heróicas as vidas dos que, como vós, se abandonam aos
transfiguradores apelos de sua piedade criadora de mundos e salvadora de almas. Se formular um juízo, julgar
uma conduta, uma intenção humana, na expressão de Bentham, é uma função
roubada a Deus, se definir, na frase de Platão, é uma divina tarefa, que direi
da angústia de julgar uma vida cujas riquezas só pode explicá-las e medi-las
o juízo do Deus que as derramou na ânfora de uma alma de eleito; que direi da
aventura, do temerário afã de definir uma existência sacerdotal como a vossa,
que é um inefável poema da consciência moral, um tocante idílio da graça
divina com a liberdade humana? Como, sem constrangimento, sem
perturbação, analisar, interpretar, julgar a vida de um apóstolo, como vós -
confessor do Cristo, em meio ao rumor de mil vozes que o negavam, fiel ao
Cristo, quando mil corações o traíam e o odiavam, apóstolo, que ensinou seu
evangelho a uma civilização desmemoriada do céu e do destino humano, apóstolo
que repetiu suas "palavras de vida eterna", a um século que
dessacralizou almas e instituições? Padre Pacífico, fazendo-vos Doutor Honoris Causa, esta Pontifícia Universidade formaliza, tão só, uma situação que, há muito, era uma realidade evidente para a consciência católica do Rio Grande; soleniza o reconhecimento de um fato aceito por toda a elite intelectual e moral de nosso Estado. Parece, até, algo irritante e
pleonástico, que uma instituição cultural como a nossa, cuja gênese foi
amplamente possibilitada por vossos labores, por vossas árduas conquistas apostólicas,
destaque a realidade de um valor que foi uma de suas fontes geradoras. Mestre, Doutor da Cristandade
rio-grandense, já, há muito, assim vos proclamaram todos os que - sacerdotes e
leigos, discípulos e dirigidos vossos - fluíram e conheceram a opulência e o
brilho de vosso saber, o vigor de vossa cerebração filosófica, o influxo
transfigurador de vossa ação de asceta e diretor de consciências, enfim, todos
os que enriquecestes espiritualmente. Padre Pacífico, há pouco,
saudamos desta tribuna alguém que, como vós, foi um proscrito dessa grande pátria,
que é a França, dessa França que cantou para o mundo a canção de Bernadette
e lhe ensinou a espiritualidade humaníssima de Teresa de Lisieux; dessa França
cujos gênios, como Descartes, peregrinavam aos santuários, pés descalços,
silenciosos, penitentes e humildes, e desfiavam o rosário nas penumbras das
catedrais, como Ampère; dessa França cujo pensamento e cuja linguagem,
cheios de graça e de medida, foram, no depoimento de Emílio Faguet, modelados
pela disciplina intelectual da Escolástica, e cuja história, em seus momentos
gloriosos, foi, na confissão de Voltaire, um capítulo na história da Igreja. Fostes um exilado pela intolerância
de um governo que, dominado pela imbecilidade e pelo ódio franco-maçônicos,
tentando brutalmente esvaziar de sua essência cristã esse vaso de genialidade
e espiritualidade humanas, que era a civilização francesa, corrompeu-lhe de
tal modo a essência que já Renan dizia em seu século poder aspirar apenas o
perfume do vaso quebrado, da essência volatilizada. No entanto, a Providência,
em sua misteriosa química de transubstanciação do Mal no Bem, dirigia esses
religiosos expulsos de sua pátria por uma política insana que, pela palavra de
Combes, em um momento de fuga da realidade e de conflito com as evidências históricas,
anunciava ao mundo, que a Igreja caía aos pedaços: L'Église tombe aux labeaux! Padre Pacífico, o Rio Grande,
recebendo-vos, recolheu muito dessa essência "do vaso quebrado", da
civilização francesa. Veio convosco muito do perfume dessa ânfora partida
pela estupidez e pela ingratidão do homem. Vossa presença entre nós foi, para
todos os que tiveram olhos de ver e ouvidos de ouvir, a de um confessor da
transcendência da Europa cristã, de um portador fiel dos autênticos tesouros
de uma cultura que continha em sua trama mil possibilidades de perfeição, inúmeras
potencialidades de progresso individual e social, cultura que não apresentava
nenhum sintoma de regressão e de morte, cultura viva, vigorosa, sadia, cultura
que não morreu e que, tão só, quiseram criminosamente, esmagar e destruir. Os que ensaiaram esse sacrilégio,
esses, a experiência histórica o diz, fizeram obra que já tombou, ou está
"tombando aos pedaços". Descristianizando a França, desumanizaram-na
e perturbaram gravemente o ritmo do processo da civilização humana. A obra desses iconoclastas aí
está, sob nossos olhos cheios de espanto: é a crise universal do humano, é a
instabilidade das consciências, é a confusão dos espíritos, expressando-se
em toda a patologia do pensamento contemporâneo; é a decorrente instabilidade
da vida moral, é a indisciplina dos costumes, a desorganização social, a
corrupção da família e o estancamento das fontes de vida, o desequilíbrio
econômico, o drama do fato político, a exasperação do egoísmo, a agonia da
solidariedade, é a crise da civilização contemporânea em todos os seus
aspectos, no interior da pessoa humana é no plano social e internacional; é,
enfim, a ameaça da fome, a iminência da guerra, o fantasma da regressão da
espécie ao primarismo e à barbárie. E nesse crepúsculo do espírito e da cultura, só a Igreja, embora ainda perseguida e martirizada por essa outra forma da incredulidade bárbara, que é o Comunismo, permanece, hoje, como um bloco de força silenciosa, de energia espiritual salvadora em cuja vitalidade inesgotável, radicam as esperanças dos estadistas e pensadores que trabalham pela união pacífica dos homens e dos povos, pela recuperação de um mundo que, em verdade, "cai aos pedaços" - tombe aux labeaux! Padre Pacífico, fostes, entre
nós, em meio século de magistério e de evangelização, pela palavra falada e
escrita, na tribuna, no púlpito e na cátedra, um dos grandes confessores da
transcendência e da perenidade dessa cultura cristã, contra cuja existência
conspiravam todos os instintos de morte, todos os apetites predatórios de gerações
paganizadas, que haviam esquecido que o Evangelho das bemaventuranças do
Reino de Deus é o mesmo Evangelho da civilização, o código da paz e do
progresso sociais. Irradiando em nosso meio essa
cultura embebida de humanismo integral, escoimada das corrupções que sofreu
sob o influxo profanador do naturalismo e das correntes agnósticas e
relativistas, premunistes ou curastes direções da vida intelectual do Rio
Grande, reflexos do pensamento europeu dessacralizado, que levavam nobres espíritos
rumo à negação dos valores maiores das verdades e certezas cristãs que
forjaram a civilização nacional. Em torno do missionário pensador e para lhe ouvir as lições magistrais, reuniram-se as figuras marcantes da cultura rio-grandense. Dentre elas pede-me o coração que evoque, neste instante, um dos mais altos valores científicos do Rio Grande - Heitor Annes Dias, cuja luminosa presença entre nós desapareceu há pouco, arrebatada pela morte. Fui testemunha da profunda influência do pensamento do Padre Pacífico sobre a personalidade científica e moral desse homem, que foi, sem dúvida, a maior vocação de clínico, em terras do Rio Grande. Em sua riquíssima psicologia intelectual, esculpistes os traços belos e nobres que definem o sábio autêntico, o sábio cristão! Como lembrei, em aula inaugural dos cursos da Faculdade de Medicina, Annes Dias soube humanizar sua ciência. Como Pasteur, ele ignorou as mutilações da vida intelectual, os jejuns metafísicos do cientificismo. Ele havia lido em Pascal que "o coração tem razões que a razão ignora". O universo não era, para ele,
tão só uma retorta onde se realizam, contumazmente, reações químicas e fenômenos
de mecânica; era, também, poesia e caridade. Ele sabia que a ciência ilumina,
mas que só o amor salva e eterniza o homem. Para ele o cosmos não era apenas máquina
que se examina e utiliza, era, também, paisagem que se contempla e beleza que
se frui. O mundo não era só laboratório em que se investiga e estuda; era
templo em que se adora, lar onde se ama. Ele julgava, como disse
eminente pensador, que o sábio que tenta escalar a cadeia das causas deve
deter-se quando sua ignorância lhe adverte que atingiu a região serena, onde a
oração se apresenta aos espíritos profundos, como a forma mais pura do
pensamento humano. A fascinante espiritualidade
desse sábio católico não foi um fruto isolado de vosso contato com a inteligência
do Rio Grande. Inspirando no espírito de toda elite intelectual desta capital
uma forma de pensamento, um modo de ver o homem e a cultura, ensinando critérios
de valorização da vida, dando o exemplo de um tipo de vivência integral e
harmônica de todos os apelos do espírito, fostes, em verdade, escultor de uma
nova mentalidade nos líderes da cultura riograndense. Padre Pacífico, que mais
necessitaria dizer para justificar o título que esta Universidade se honra em
outorgar-vos? E, como se não bastara para
confessar a Verdade do Cristo e a divina transcendência da Igreja, toda essa
vossa fecunda vocação de apóstolo da inteligência infiel, vosso amor a Deus,
levou-vos a uma outra forma, talvez mais franciscana, de pregação do Evangelho
e do Reino dos Céus. Após terdes, pelos fulgores
do vosso espírito, curado, em tantas inteligências, a chaga da dúvida, a úlcera
da incerteza e da incredulidade, agora, pelas riquezas de vossa caridade de
timbre heróico, sois o solitário samaritano dessa cidade da dor e do
desespero, que é um leprosário. Face a essa nova revelação
da grandeza moral de vossa vida, não cabe análise, é impertinente o
julgamento, é profanadora a oratória. Aqui, só o silêncio não
mente; um silêncio pleno de veneração, e no qual perpassa esse frêmito
sagrado que experimentamos, face à Divina Presença entre os homens. 1 Discurso pronunciado na Pontifícia Universidade Católica em 14.03.1951
em saudação a Frei Pacífico Bellevaux |