| Discursos MENSAGEM AOS BACHARÉIS EM DIREITO DA UNIVERSIDADE DO RIO GRANDE DO SUL Meus
jovens colegas, A
súbita enfermidade que me priva da alegria de assistir à vossa colação de
grau, obrigando-me a renunciar ao discurso de paraninfado, não me impede de
ofertar-vos esta singela meditação em que, nas linhas de baixo relevo de uma
miniatura de humanismo jurídico, cuido expressar algo essencial a uma lúcida
tomada de consciência de nossa vocação de juristas. Em
breve epístola, dirigida aos meus paraninfados da Faculdade de Filosofia, da
Pontifícia Universidade local, examinei, ontem, o perturbador tema da ignorância
autêntica, da que confunde o pensamento, conturba a conduta e frustra a realização
plena da vida humana. E observei que sua suposição não se processa tão só
pelo conhecimento da existência ou das modalidades existenciais do nosso ser. A
ignorância antinatural, a que acarreta o fracasso da vida intelectual e ética,
é a privação do conhecimento do sentido, do valor e da finalidade desse ser.
Sem uma visão captativa dessa teleologia, desses valores, a cultura humana será,
sempre, um luxo de mendigos, uma eufasia de caquéticos. Sem
a posse racional dessas realidades, será vã e estéril, para os fins de
constituição de uma autêntica existência humana, a mais lúcida análise
fenomenológica, a mais rica descritiva do ser, a mais eficaz técnica de
manifestação dos fatos naturais e humanos. O
direito situa-se entre fatos e, como eles, será ignorado, com essa ignorância
fatal ao espírito, enquanto lhe conhecermos, apenas, a existência e a forma ou
modo como existe. A
simples descritiva de sua fenomenologia, o mero conhecimento de sua realidade
empírica, de sua expressão experimental, possibilitará seu uso, nunca sua
explicação; permitirá, talvez, que dele abusemos, nunca que Ihe reconheçamos
a sacralidade de um valor. Ignoramo-lo
enquanto não lhe apreendemos a significação humana, à luz de uma doutrina
sobre a destinação da vida. Sem esse conhecimento, tudo o que dele soubermos,
da técnica de sua realização, da sistemática da sua realidade positiva e
histórica, será algo como a "ciência" do homem do mito platônico
da caverna: será uma palpação de sombras. Permiti
que vos confesse, nesta hora em que vos devo palavras de verdade - que só elas
são as da amizade leal e viril - que, após milênios de generosas meditações
de espíritos geniais, a obra da razão pura no esforço de compreensão do
valor humano e da teleologia da justiça, se não foi estéril e vã, não
atendeu, no entanto, a elementares interrogações do pensamento crítico a
vitais exigências especulativas e práticas de construção de um autêntico
humanismo jurídico. Mas
algo sucedeu na história que, revolucionando a consciência humana,
transmutando nossa situação existencial, repercutiu, com prodigiosa energia
transformante, no mundo da consciência jurídica, modificando-lhe a tábua de
valores e a percepção dos sentidos da conduta pessoal e coletiva, o modo de
ver as relações da liberdade com a autoridade, da pessoa com o Estado. Esse
algo foi o fato cristão. Sob seu influxo, transfigurou-se a consciência jurídica
humana, a mais genial e alta expressão do direito histórico. Como
dissemos alhures, nunca pensavam os romanos que, sobre o milagre de
transubstanciação lógica, operariam a graça e a verdade do Evangelho, em sua
definição da Justiça: suum cuique tribuere. Mal
poderiam vislumbrar toda revelação semântica que realizaria a mensagem de
Cristo, no conteúdo conceitual do suum. O ser de cada homem, o que é
devido, quem, a rigor, lhe poderá determinar? Seria necessário fixar todas as
dimensões espirituais dessa aspiração, dessa misteriosa necessidade, que é o
nosso ser faminto do Absoluto, mendigo da Eternidade. E, para o pensamento pagão,
como para o neopaganismo, o homem foi e é "esse ser desconhecido"... A
revelação, ensinando que o universo e o homem são criações da piedade
infinita, e que na origem e na destinação dos seres está presente o olhar
certificante do Amor incriado, fixou o primado da caridade face à justiça, da
participação amorosa na realização de um destino face à obrigação ao
dever coativo de colaborar no convívio Social pelo reconhecimento do suum
cuique tribuere. A
vivência destes valores da mensagem cristã, criando formas novas de contato
entre os homens, tipos originais de relações entre as almas, surpreendentes
formas de compreensão e fraternidade, estilos desconhecidos de comunicação
entre os interesses do Estado e os da pessoa - toda uma estruturação singular
do comportamento humano determinou, inelutavelmente, uma mutação essencial
do direito histórico. E
em milênios de saturação cristã da consciência jurídica, o ser da pessoa
humana, que não era para o paganismo clássico a exigência de liberdade, o
direito à vida, à propriedade, à honra, à igualdade civil e política, ao
tratamento fraterno, à compreensão, ao respeito da liberdade de crer, face aos
tabus e interesses do Estado, tudo isso se fez exigência jurídica, tomou
consistência de direito positivo, de faculdade moral de ação garantida ante
coação estatal. O
que se pedia como esmola, exige-se como direito! O que a caridade aspirava, a
justiça reconhece e tutela! Tudo isso, no mundo moderno, os códigos consagram
e os tribunais reconhecem. E determinadas aspirações da consciência jurídica
contemporânea, as grandes conquistas do direito social, são hoje textos de
lei, quais poemas soberbos de triunfal caridade cristã. E
todo esse milagre moral não foi obra de pensamento crítico, nem composto da
razão pura. Definindo o destino humano, ajuntando as forças vitais e divinas
necessárias à sua realização, a Igreja definiu o sentido e o valor da justiça,
pondo ao alcance de nossas mãos vazias as verdades que condicionam sua
compreensão e as energias que possibilitam sua realização fecunda. Dentro dessa perspectiva evangélica a justiça é uma liturgia consagradora do comportamento social aos fins divinos da vida, um rito de estilização do convívio humano segundo as intenções criadoras deste Amor que, no verso de Dante, "move o sol e as outras estrelas". Ela
é o meio de realização, pela liberdade, no convívio humano, naquela
maravilhosa ordem que, na natureza; se realiza pela necessidade. Ela busca
prolongar no espaço social, através da causalidade final e da polarização
teleológica, aquela paz, aquela beleza que, sob a pressão da causalidade
eficiente, existe no espaço cósmico. Ser fiel ao apelo deste supremo valor do
mundo jurídico é consentir na colaboração com os fins divinos da existência. Praticar,
estudar e compreender o direito, à luz dessa visão cristã da justiça, é
realizar o mais vigoroso humanismo jurídico: é por o direito a serviço da
pessoa humana e situar esta na linha de sua destinação temporal e eterna. Meus
ilustres paraninfados. Eu não poderia expressar-vos de forma mais cordial e
grata, nesta hora de despedida, meus votos pela vossa felicidade e pelo êxito
de vossa vida profissional, do que augurando-vos que sejais homens autênticos e
autênticos juristas, com a vivência plena deste humanismo jurídico que é
integral por ser cristão. |