| Discursos VALOR JUSTIÇA, NO PLANO SOCIAL, DA VONTADE CRIADORA E REDENTORA DE DEUS. Hoje, pela manhã, na penumbra
de um templo, no ato comemorativo do término de uma formação profissional,
participastes no mistério da redenção humana; nesse mistério que opera
especificamente no homem a conformidade de nosso querer com o querer divino.
Nesta hora, nesta velada acadêmica, neste ato escolar, não realizareis,
talvez, algo análogo, muito análogo, ao ato que praticastes dentro de uma
liturgia plena de vida, na manhã de hoje, professando, como professastes há
pouco, vossa fé no valor Justiça e no mundo que decorre de normas regaladoras
de convívio que integram a normatividade jurídica? Professando vossa fé nesse
valor, não estareis a realizar algo, como dizia, análogo, muito análogo ao
ato de participação na redenção operada por Deus na vida humana? Não será,
em verdade, a Justiça uma liturgia modeladora, uma força espiritual de
estilização do ser humano, do comportamento pessoal e coletivo, conforme o
querer criador e redentor? Sobre essa possível analogia que, existente, nos dá
tanta sugestão fecunda, eu desejaria, como um ato de agradecimento à vossa
generosidade que me fez paraninfo, superando a monotonia do discurso, evitando a
aridez de uma aula, numa palestra cordial, sem veleidades literárias, sem
preocupações docentes, tão só pensando em algo que é um amor comum, que é
vosso e que é meu, pensar nessas possíveis analogias surpreendentes, fecundas,
estimulantes para o homem e para o jurista, entre a retificação, a
conformidade do querer transviado do homem, pelo apelo de aparências de bem e
de aparências de ser, e a retificação que opera no homem a graça da redenção.
Com esta meditação singela, creio que atendo à vossa condição de seres
batizados e de cristãos e atendo também a uma exigência profunda de vossa
consciência de juristas. Meus jovens colegas, essa
meditação será breve e singela. Não poderei reconstituir aqui análises que
se processaram na Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do
Sul, em aproximadamente um mês de investigações. Trago-vos apenas o resultado
dessas investigações para apontar, desse resultado, os aspectos mais
significativos do ponto de vista humano, enquanto interessam ao mundo jurídico
propriamente dito, à ciência e à técnica do direito. - Que é a Justiça? Parece um atrevimento, quase
uma audácia, face a um auditório heterogêneo como esse que tenho diante de
mim, que exigiria talvez nesse momento cordial, uma consideração de maior
teor emocional, de maior expressão afetiva, parece uma audácia e uma impertinência
perguntar assim simpliciter, singelamente (como se a pergunta comportasse
uma resposta também simples), sobre a essência de algo que tem feito a tortura
de homens, de líderes, de condutores de povos, de dirigentes da história e a
tortura de consciências que buscam a perfeição. Em verdade, a resposta, uma
vez que assumamos o compromisso de uma renúncia, de não fundamentar a
conceituação formulada, de não basear criticamente a definição dada,
poderíamos dá-la com singeleza e brevidade, dentro desses pressupostos e
dentro das condições que acabo de traçar. - Que é a Justiça? Preliminarmente devo dizer que
não nos podemos socorrer - e o sofrimento dessa carência é de um modo
particular meu - não nos podemos socorrer dos tesouros do classicismo jurídico:
nem do mundo do jusnaturalismo, do pensamento romano e grego, nem mesmo do
fulgor, da riqueza e plenitude do mundo medieval (em que se faz o encontro do gênio
com a inspiração da sabedoria incriada do Verbo). Infelizmente, não nos
podemos socorrer desses tesouros imensos para dar, em forma singela e breve, uma
conceituação da Justiça. Por quê? É algo que registro com melancolia: toda
a sabedoria filosóficojurídica grega, todo o gênio jurídico dos romanos não
nos ofertou, em verdade, a definição, o conceito lógico da Justiça. - Que
ouvimos dessas vozes veneráveis de mestres romanos e mestres gregos? Ouvimos
definições, mas não do conceito, não da idéia de Justiça; recebemos magníficas
formulações sobre a Justiça como sentimento e da Justiça como hábito
volitivo, como virtude moral. Diz-se, por exemplo, - é a sugestão romana - que
a Justiça é aquela disposição firme, permanente, de dar a cada um o que lhe
é devido. Como se vê, registra-se aqui uma disposição volitiva, que confunde
uma disposição moral, um hábito, com a realidade objetiva, a situação
existencial, a causa justa, a realidade que o conceito deve refletir, o objeto
que este pensamento deve traduzir de forma abstrata e universal. Certamente,
Justiça é também virtude. Certamente, Justiça é igualmente sentimento.
Mas só após possuir o espírito humano uma representação conceitual, uma idéia
abstrata e universal da Justiça, só após isto (para não cometermos uma
heresia psicológica, não assumirmos uma posição antipsicológica), só após
isto podemos compreender a descrição do que seja sentimento da Justiça, o que
seja virtude da Justiça. Psicologicamente, o sentimento vem após a idéia; o
meu hábito moral, a minha disposição virtuosa para dar a cada um o que é seu
supõe um conceito prévio, uma representação intelectual, abstrata e
universal. Esta é a carência lamentável que encontramos neste tesouro de
sabedoria, de experiência, de análise, de alto espírito especulativo que
herdamos dos gregos, dos romanos e mesmo (como disse, é temerária a afirmação),
da sabedoria iluminada da Idade Média. Buscamos, conseqüentemente, não
a fixação do que seja o sentimento da Justiça, através da análise de um
comportamento que me faz sentir um ato como justo ou injusto. Buscamos não a
caracterização da virtude moral da Justiça. Buscamos ter intelectualmente
isto que nós denominamos Justiça. Se é um conceito autêntico no espírito
humano, a Justiça deve ser uma posição do ser, um estado do ser, uma situação
da realidade. Certamente, se é um conceito, deve traduzir essa situação
humana, esta posição do ser humano, pessoal ou socialmente considerado; enfim,
um objeto, uma realidade objetiva, uma situação existencial. Que é a Justiça, enquanto
dela buscamos um conceito? A Justiça certamente é um
valor. E parece que aqui faço uma escamoteação cantarélica, diante de um
auditório desprevenido de informações jurídicas. Mas creio que não há
desonestidade; ao contrário, há uma busca de se aprofundar em algo do tema,
quando se sugere que este conceito é o conceito de um valor e não um conceito
meramente formulado de uma existência de um fato. É um valor. Mas que é um
valor? Vede toda a aspereza, toda a
aridez do tema, sua complexidade, sua quase inextrincabilidade, que busco em vão
superar, com a pobreza de minha dialética e a pobreza de meus recursos literários.
É algo árido e áspero, o que abordamos. Se queremos definir a Justiça
como um valor, perguntemos, preliminarmente, que é um valor? Não podemos, neste momento,
certamente, fazer um debate axiológico, de Filosofia dos Valores. Tenho posição
tomada; tenho, digamos, convicção sobre a definição que vou dar, sobre seu
valor gnoseológico e metafísico e me limito a dar a definição para partir
dela. - Que é um Valor? Dirijo-me, a partir desse
momento, de um modo particular, ao auditório integrado por jovens juristas e
mestres do Direito. Defino o valor como sendo uma relação de conformidade
entre determinada situação humana, determinado gesto humano, determinado
estado do homem, ou do ser em geral, visualizado racionalmente numa perspectiva
de finalidade. Resumo: valor é uma relação de conformidade entre uma situação,
um estado do ser, e os fins desse mesmo ser. É a relação da conformidade da
situação, do gesto, do ato do ser, com os seus fins, que vai conferir valor a
um determinado ser. A desconformidade revelaria a carência do valor. Desvalor
é não conformidade; valor é conformidade, é coincidência do gesto, da
atitude com os fins do ser. Isto é valor. Essa definição envolve os valores
racionais (o valor verdade, o valor bem moral, o valor beleza). Em verdade,
todos estes valores, incluindo, portanto, a Justiça, expressam relações de
conformidade apreendidas racionalmente, e não sensorialmente, pelo espírito,
entre uma posição do ser e os fins próprios deste ser. Desta definição
certamente deve-se assumir a responsabilidade, fazer uma fundamentação que, no
momento, seria impertinente e inoportuna. Devo dizer apenas que, definindo assim
um valor, separo-me de toda uma corrente axiológica, dominada pelo signo
positivista, que brutalmente reduz o valor ao ser, ao ser material, e o
considera, portanto, captável sensorialmente. A via de acesso aos valores, na
definição que dei, é uma via racional e, certamente, sendo ele uma relação
de conformidade, supera, transcende a qualquer situação existencial captável
pelos sentidos. Afasto-me igualmente de toda uma linha de pensamento axiológico
dominada pela sombra (eu não digo pela luz, mas pela sombra) do criticismo
kantiano. Nós não afirmamos, com os criticistas, que o valor se opõe ao ser.
Dissemos que ele é um modo de ser, é uma situação de ser. Valor é ser, no
fundo, mas um ser visualizado intelectualmente numa perspectiva finalística. De
sorte que não confundimos o valor com o ser, como fazem os positivistas, mas não
opomos e não separamos o valor face ao ser, como fazem os criticistas e os
idealistas. Nossa posição, portanto, tem uma marca do ponto de vista gnoseológico:
pressupõe uma tomada de posição realista em matéria de conhecimento. Mas
dentro dessa concepção de valor, pergunta-se: qual é a definição própria
do valor Justiça? Se qualquer valor é isso, pergunta-se: o valor Justiça não
terá uma especificidade, não terá algo de singular na categoria ou no gênero
dos demais valores? Qual é este traço especificador do valor Justiça? Que é
a Justiça no gênero dos valores, face ao valor, face ao valor bem moral, face
ao valor verdade? Não vos quero traumatizar com
uma análise mais profunda. Limito-me apenas a registrar a definição que foi
resultado de uma investigação de vinte e tantas horas de análises acadêmicas.
O valor Justiça, face aos demais valores racionais, é especificada pelos
seguintes traços: a Justiça é uma relação de conformidade - nisto o valor
Justiça está na mesma situação dos demais valores racionais. Essa relação
é só perceptível racionalmente: não se situa, portanto, no mundo dos fenômenos;
não é acessível sensorialmente; é captável só racionalmente. É uma relação
de conformidade (e aqui vem algo que especifica o valor Justiça) entre uma
situação intersubjetiva, interpessoal humana e os fins da vida, enquanto a
vida é convívio, enquanto o viver humano é um conviver. Sob este aspecto; nós
colocamos, no valor Justiça, o seu elemento especificador. O conceito de Justiça
reproduz, reflete, traduz no espírito humano algo que o espírito humano vê
fora de si, nas coisas, na realidade objetiva, numa situação existencial
independente do pensamento, que está como algo objetivo face ao espírito.
Vejam; meus caros paraninfados, há vislumbres, pelo menos agora, da analogia
que vos sugeri, entre a obra retificadora da redenção e a operação
retificadora da Justiça. Entre estas duas operações divinizantes da vida há
uma surpreendente analogia. A que visa o espírito quando reflete esta situação
objetiva? Visa a registrar uma posição do ser humano: a posição de
conformidade, de coincidência, entre a situação intersubjetiva ou
interpessoal humana com os fins da vida, enquanto esta vida é um convívio,
enquanto esta vida se processa pela realização de um bem que não é apenas
pessoal, mas que é comum. Vede que a idéia de Justiça reflete, fotografa,
traduz algo que não está no espírito humano como esteve por séculos: como um
tabu, como algo sagrado, com uma auréola de sacralidade que impedia que se
analisasse sua origem, sua gênese psicológica. A idéia de Justiça (enquanto
posição de ser coincidente com os fins da vida humana enquanto ela é convívio)
certamente teve uma gênese psicológica, teve uma origem: na sua base estão
experiências. Não experiências jurídicas, porque é a Justiça que qualifica
a experiência como jurídica; mas experiências comuns, experiências humanas,
experiências cotidianas, experiências, como diz muito bem um Croce (não
obstante a sua orientação filosófica), que o homem realiza na sua chácara,
na sua casa, no espaço social, no contato com os seres inanimados, no contato
com os animais, na contemplação de um firmamento, na comunhão com os outros
seres humanos. Todas essas experiências vão ser trabalhadas por um espírito
que encontra diante de si um espetáculo não de caos, mas de universo;
portanto, não absurdo e ininteligível, mas de um ser ordenado (o universo é
cosmos); de um ser que não só fora, no espaço cósmico, encontra ordem, tendências,
seres que buscam um fim, mas que encontra no seu mundo interior um feixe de
inclinações, de tendências que buscam a complementação da existência, o
aperfeiçoamento da realidade; buscar bens, e os bens são fins. Os fins,
essencialmente centro de polarização, forças magnéticas que nos atraem, são
bens de que carecemos para realizar a plenitude de nosso ser. Esta idéia,
conseqüentemente, teve uma origem psicológica e uma base experimental. O espírito
humano, como centro desse espetáculo de ordem externa e cósmica e de um espetáculo
interno de ordenamento de um ser determinado, apelado pela causalidade e pela
finalidade de um modo particular, se apercebeu de que há posições de ser
suicidas, que são fugas da vida, que expressam instintos de morte, que são
truncamentos e frustrações do instinto de imortalidade e de existência que
existem em cada um de nós. Pode-se, assim, sem nenhuma
irreverência, nenhuma blasfêmia, numa análise singela, reconstituir a gênese
dessa idéia de Justiça e ver sua objetividade; ver que a Justiça, antes de
ser um sentimento, que não se sabe como, nos leva a dar a cada um o que é seu,
antes de ser uma virtude moral, que nos leva a reconhecer o seu de cada homem,
é uma idéia que está em nosso espírito - nós percebemos que a cada homem se
deve dar o que lhe é devido. O sentimento surge após: é uma fração no plano
emocional e afetivo dessa idéia, dessa representação da Justiça como
realidade objetiva, como situação existencial; o comportamento virtuoso, a
virtude da Justiça, é algo também decorrente. O sentimento anuncia a Justiça
como um apetite, um desejo, uma alegria do ser em sentir a beleza da identidade
do ser consigo mesmo: a beleza da igualdade, a beleza da conformidade, a beleza
da fidelidade do homem a seu destino. O hábito virtuoso expressa uma posição
severa e ascética de conformar toda uma personalidade segundo os supremos e
divinos apelos da vida. Vede que a Justiça, que foi
considerada sob o aspecto puramente interessante ao mundo jurídico, está a
anunciar que não vem do mundo jurídico: ela baixa ao mundo jurídico, desce ao
mundo jurídico, para iluminá-lo, para lhe conferir inteligibilidade e, de um
modo particular, para lhe dar uma expressão humana e divina. Há, portanto, na
Justiça enquanto conceito, além do aspecto jurídico interessante aos
cientistas e aos técnicos do Direito, algo que interessa ao metafísico e ao
moralista: a Justiça realiza, no espaço social, aquela mesma função
ordenadora que, no espaço cósmico, é realizada pela causalidade, por
instintos incoercíveis dos animais, por afinidades, por tendências, por
dinamismos cegos, por automatismos incoercíveis. A ordem natural, realizada
pela causalidade, deve ser prolongada no espaço social, no mundo da liberdade
da pessoa, pelo consentimento da pessoa livre em coincidir com os seus fins, com
os fins da pessoa que convive, cujo viver é um conviver, cuja destinação se
processa solidariamente dentro de uma comunhão de vida. Se assim é, não é de
escandalizar e de espantar que, na página mais soberba e divina que olhos
humanos podem ler, no Sermão da Montanha, se diga que Bemaventurados são os
homens que tìverem a fome e a sede da Justiça. Que fome de Justiça é esta de
que fala o Cristo? Ele mesmo respondeu, no diálogo com a samaritana, quando
anunciou que o alimento do seu ser era a realização da vontade do seu Pai.
Pois bem, a vontade de Deus se expressa como criadora na natureza, se expressa
como redentora na história e na sociedade. E, em verdade, a Justiça se
expressa, num e noutro mundo, como um apetite de realização desta vontade
criadora e redentora de Deus. Passando, agora, à consideração
mais teológica, mais cristã: em verdade, o que busca toda a ascese, toda a mística?
A realização de um diálogo, de um colóquio apenas? Não! A realização de
um idílio em que a graça e a liberdade, dialogando, têm um epílogo no amor,
no amor dos santos. E o santo é a expressão ideal do encontro desse querer
divino com o querer humano; é a expressão paradigma da conformidade do ser
criado com os desígnios incriados e eternos de Deus. Em verdade, realizar a
Justiça, como eu vos dizia, é operar uma liturgia de estilização da vida aos
seus fins divinos. Esta consideração abre-nos uma perspectiva magnífica, para
nós juristas: a perspectiva das linhas estruturais de um humanismo jurídico
integral, que coloque o Direito, como realidade, no coração mesmo de todas as
realidades; o Direito, como conhecimento, na totalidade do processo cultural; e
apresente o Direito, como um momento da vida universal, como uma expressão, uma
das muitas expressões, dos desígnios amorosos de Deus de pôr no homem uma força
que lhe traga a paz, essa paz que é anunciada na mensagem de Natal aos
pastores, aos homens de boa vontade, aos homens que tiverem retidão moral, que
quiserem consentir em serem segundo a vontade de Deus. Em verdade, meus caros jovens
colegas, realizai vossa profissão, vossa atividade profissional, dentro de uma
visão de um humanismo jurídico assim delineado e realizareis não a simples
atividade profissional: realizareis na vida u.ma missão sacerdotal. |