Discursos


A FILOSOFIA NA CULTURA NACIONAL[i].

 

Toda a nação que, como a nossa, tendo surgido num avançado momento evolutivo da História, organizou-se sobre o influxo de instituições saturadas de ideologias seculares, penetradas profundamente de concepções, ideais e valores altamente filosóficos, carece em verdade da reflexão crítica, que só uma formação metafísica proporciona.

Os que nascem e vivem em tais grupos sociais de alta densidade ideológica, em sociedades geradas por transplantação de cultura situam-se num clima psicológico, que os força à prática de atitudes, que lhes determina a formação de hábitos, cujo valor profundo e vital lhes foge à percepção.

Só uma formação filosófica integral, na qual sejam expostos, analisados e criticados os conceitos transcendentes que estruturam suas formas de vida, seus tipos de comportamento, poderá transforma-los em conscientes e autênticos portadores de cultura.

Somos ainda, em larga escala, metafísicos inconscientes de suas próprias teses. Nosso ambiente cultural está carregado de sugestões e valores, que se refletem em nossos costumes, mas que quase nenhuma refração conseguem no domínio de nossa vida intelectual. Sociólogos europeus têm registrado com razão esse nosso caráter de imitadores de cultura. Só deixaremos de ser simples compiladores de uma civilização que não criamos, no momento em que pudermos pensá-la fortemente, no instante em que a fizermos nossa por uma aceitação livre, crítica e pessoal.

É para essa tomada de consciência, para essa redescoberta ou reinvenção que concorrerá a posse de uma formação filosófica. Só após esse trabalho, disciplinador do pensamento nacional, só após esse esforço de seu soerguimento em nível do pensamento mundial, é que poderemos esperar que ele se exercite e expresse de modo pessoal, formulando concepções originais, modelando construções filosóficas que traduzem nossa experiência da vida, nosso modo peculiar e humano de ver, de sentir e interpretar a realidade. Só então, concorremos nesse estranho colóquio a que se referia Schopenhauer, o colóquio que, acima do tempo e do espaço, realizam os grandes espíritos sobre os temas fundamentais do ser e da vida. Sem esta componente filosófica, traduzida em forma explícita, nossa cultura será sempre truncada. Verdade é que toda cultura integral e harmônica é uma expressão concreta e vivida de uma concepção do mundo, ou então um clima gerador de uma visão da vida, produto mais alto do seu gênio criador.

No processo de toda cultura, implícita ou explicitamente estão presentes ideais, valores e certezas, formas emocionais e comportamentos éticos, uma objetivação psíquica enfim, cujo tecido é essencialmente filosófico. Uma cultura é uma experiência, um ensaio de aplicação de uma metafísica, de uma visão do mundo, consciente ou subconscientemente elaborada. Ela é uma metafísica vivida, uma filosofia experimentada; uma resposta prática e especulativa, que o homem dá ao mistério que o envolve e o interroga; uma forma de reação de nosso ser ao meio histórico e espiritual ao ambiente cósmico em que nos situamos.

Se assim é, o tema dessa palestra inaugural não o escolhi arbitrariamente; ele é suscitado pela própria natureza da tarefa que devemos realizar. Meditemos, pois, singelamente, sobre as relações existentes entre a cultura filosófica e a cultura nacional.

Não há domínio algum da atividade intelectual em que o espírito brasileiro se mostre tão acanhado, tão frívolo e infecundo, como no domínio filosófico, observou Tobias Barreto no fim do século passado.

Qual a causa desse fato?

O Brasil não tem cabeça filosófica, respondia o jurista da escola de Recife, supondo talvez com esta deliciosa boutade propor a solução de um grave problema.

Farias Brito, registrando o mesmo fenômeno, interpretava-o de modo diverso: "Uma civilização que começa - dizia ele - não pode competir com civilizações já amadurecidas. Para elaboração de grandes construções filosóficas originais e fecundas, é indispensável o concurso do tempo".

Leonel Franca, analisando o mesmo problema, contempla-o de modo distinto. A investigação e a construção dos grandes sistemas filosóficos, observa o eminente jesuíta, exige não só o concurso do tempo, mas ainda o esforço do homem. E neste ponto é pouco, é quase nada o que temos feito. O estudo e o ensino da filosofia, adverte ainda o ilustre pensador, têm sido entre nós descurados e tratados com supremo descaso. Faculdades e institutos superiores de estudos filosóficos, como que se encontra em todas cultas nações do velho continente, apenas começam a se organizar no Brasil. Nos tempos mais auspiciosos para o ensino, não passou a filosofia de simples preparatório. É a esta falta de estudos metódicos e profundos; que atribuímos principalmente a inferioridade da cultura filosófica no Brasil.

Que pensar do valor dessas opiniões?

Lamentamos não poder concordar com nenhuma delas: poderão contar parcelas de verdade, mas são profundamente unilaterais. O fenômeno que se quer explicar não possui uma só causa; várias concorrem na sua interpretação integral. O ponto de vista de Farias de Brito, segundo o qual só o concurso do tempo pode uma civilização elaborar uma filosofia da vida, parece inaceitável. Fosse ele uma explicação e seria inexplicável o fato de numa nação como os Estados Unidos, de idade igual à nossa, ter surgido já no século XIX uma forte afirmação do pensamento filosófico - o pragmatismo. Para explicar esta diferença do ritmo evolutivo do saber filosófico nas duas culturas - ianque e nacional - o fator tempo é imprestável. Cremos que a explicação radique na diversidade dos influxos ideológicos que modelaram essas duas culturas. A América do Norte, anglo-saxônica, organizou-se espiritualmente sob a influência de fé luterana, de uma concepção religiosa subjetivista e em perene crise de estabilidade. O latinoamericano, psicologicamente, foi estruturado pela visão católica do mundo. Esta diversidade ideológica foi decisiva na vida do mundo novo. Ela determinou um diferente ritmo evolutivo de sua civilização e, principalmente, uma profunda diferença formal e substancial entre as duas culturas em formação. A fragilidade da certeza proporcionada pela fé luterana, instável e dispersa, determinou em muitos círculos do pensamento norte-americano uma atitude de dúvida, de ceticismo, despertando assim a necessidade urgente de uma interpretação puramente racional da vida. É expressivo, é típico, que a filosofia gerada pelo estado da vida espiritual ianque reflita mais as características raciais anglo-saxônicas do que as peculiaridades de sua forma religiosa de pensamento. Impugnando a opinião de Farias Brito, cremos assim ter indicado um dentre os vários fatores que, conjugados, explicam o problema que equacionamos: é o fator ideológico-religioso ou Weltanschauung. Se esse fator explica parcialmente a quase inexistência da produção do espírito nacional, isolado no entanto, não articulado a outro, revela-se insuficiente. A explicação que, do problema em estudo, nos oferece Leonel Franca, não é mais satisfatória. Fosse a deficiência do ensino sério e metódico das disciplinas filosóficas a causa da nulidade e da pobreza de nossa vocação metafísica, seria inexplicável o surto inicial da filosofia na história. Tales, Heráclito, Parmênides não receberam certamente um estudo sério e metódico das disciplinas filosóficas e, no entanto, registramos os seus nomes como os de filósofos originais e autores de curiosas intuições do ser e da vida. E contrariamente, se fosse a existência do ensino filosófico num país a condição para o surto das grandes cabeças metafísicas, seria difícil de explicar a inexistência dessas em nações onde o ensino filosófico se realiza em forma acadêmica, sistemática e metódica. Se o fator tempo indicado por Farias Brito e se a causa "carência de ensino escolar" apontada por Leonel Franca não atendem à nossa interrogação, como responder à mesma? Em nossa crítica insinuamos a existência de outras causas que, conjugadas, supomos explicarem os fenômenos que estudamos. Para bem compreendê-lo, lembremos algumas sugestões de Max Scheller sobre a sociologia do saber filosófico. Buscando caracterizar as condições sociológicas em que se processa a formação do pensamento filosófico, observa ele que a metafísica é, dentre as demais formas do conhecimento, sociologicamente consideradas, a própria de elites intelectuais que, desligadas das tradições de toda a índole, guardadas por sua comunidade vital, e livres do trabalho a serviço da economia, dispõem de ócio bastante para contemplar o mundo em pura atitude teorética, desinteressadamente, buscando compreendê-lo apenas.

Os metafísicos seriam sempre, ou quase sempre, representantes de classes cultas e ricas. O contraste entre o campo e a cidade faz-se sentir nas preocupações preferenciais das teorias metafísicas. Lembremos o contraste existente entre a filosofia natural e cosmológica dos pensadores das colônias gregas e os caracteres do pensamento filosófico ateniense. Vários fatores influem na diversidade das formas que apresenta o pensamento filosófico na História. Eis alguns dentre eles: Primeiro: O grupo cultural e totalidade dos aspectos culturais de uma época. Filosofia e cultura são produtos de uma mesma alma, alma peculiarmente constituída de um século. Nesse grupo, várias influências se observam - o influxo da vida religiosa, política, científica, artística, econômica, etc. Segundo, o grupo psicológico racial, isto é, a alma da raça, do povo, da nação. Toda a raça possui a sua maneira própria de pensar, de sentir e de representar o mundo. Através da alma da raça influi a natureza, o meio físico, a paisagem. Um terceiro grupo de fatores condicionantes é o grupo social, ou melhor, a família, a classe, a profissão, a posição civil, etc. Diferenças relativas à vida urbana ou rural, aristocrática ou burguesa, repercutem na modelagem, na forma das construções filosóficas. O último grupo é o que Aluísio Miller denomina individual. O influxo da personalidade está determinado por todos os fatores que formam os indivíduos: "seu fundo espiritual inato, sua genialidade, seu talento, seu mundo afetivo, sua vontade, seus interesses, o grau de seu desenvolvimento psíquico, sua juventude ou sua velhice, sua experiência da vida e até mesmo sua constituição corporal". É aqui nas profundezas psíquicas, na força espiritual da personalidade, que está a fonte da investigação e da criação filosófica.

Utilizemos estes ensinamentos da sociologia do saber na análise do problema que nos ocupa a atenção. Lembremos que, para bem compreender os fenômenos que estudamos, urge atender as peculiaridades psicológicas da raça de que provimos. Descendemos de portugueses, que, no-lo ensina a História, jamais possuíram fortes cabeças metafísicas. As raras vocações filosóficas portuguesas não trouxeram contribuições originais e fecundas para o exame dos grandes temas do pensamento. Atravessando o Atlântico para colonizar este trecho da América, o português, cruzando-se com outras raças de inferior e primitiva cultura e situado num meio cósmico absorvente e plasmante, não encontrou inicialmente nessas novas condições de vida nenhum estímulo para romper a secular inércia filosófica de seu espírito. Portador dos valores da cultura latina, trazia no pensamento as tranqüilizadoras certezas que lhe ofertava a sua fé católica sobre os mais inquietantes problemas da vida. Essas certezas lhe bastavam para a realização de sua grande aventura de construir um novo Portugal; elas davam um sentido ao mundo, um valor à vida e justificavam as exigências que sua consciência moral lhe formulava ao exigir dele o rude lidar com a terra e com o homem da América. Mas quatro séculos de vida nacional, de contato dos descendentes dos primitivos colonizadores com a natureza da América, com as condições sociais aqui criadas não passaram sem exercer profundas modificações na psicologia do homem ibérico. Um intenso e extenso caldeamento racial, um viver econômico, político e social originais, resultantes em grande parte do influxo da terra e da natureza ambiente não podiam deixar de modelar um povo com características antropológicas psíquicas e sociais bem diversas das que singularizavam os primitivos colonizadores. Estas características que até agora, em vão, estrangeiros como Keyserling, estudiosos patrícios como Oliveira Viana e Euclides da Cunha tentaram fixar, embora não a tenhamos ainda bem definidas, são, no entanto, seguramente bem diversas das que distinguem o homem português. E os últimos cem anos de nossa história registram afirmações dessa nova psicologia no domínio da arte, da literatura, da ciência, da técnica, da vida político-econômica, que nos levam à certeza de que um dinamismo novo empolga a nossa inteligência, uma inquietação original e fecunda agita o nosso espírito, um ritmo, uma atenção do pensamento mais intensos, uma forma de sensibilidade mais aguda, uma vida emocional mais rica, nos distinguem profundamente da típica estrutura espiritual do povo português. A inquietação filosófica ainda em forma larvada e difusa aponta em múltiplas criações do pensamento brasileiro. Recordemos, no campo da literatura nacional, duas figuras altamente expressivas por serem afirmações da psicologia de um tipo étnico complexo da psicologia do mestiço - o sombrio e meditativo Cruz e Souza e essa vocação perdida de filósofo pessimista, que foi Machado de Assis. Dentre as manifestações desta aptidão filosófica do homem brasileiro, destaca-se a obra singular de Farias Brito. É sugestivo que a primeira tradução maciça e orgânica do pensamento filosófico entre nós se tenha revelado no homem que, conforme sua confissão, tendo perdido a fé de seu grupo racial, experimentou cruelmente o aguilhão do problema do destino humano, definindo socraticamente a tarefa do filósofo, como uma preparação para a morte. Para ele a filosofia era a sucedânea da atitude religiosa da fé cristã que perdera. E não menos expressivo é o fato de se ter modelado a sensibilidade e o pensamento de nosso primeiro filósofo, nessa paisagem de sofrimento de luta entre o homem e o meio, que é o nordeste.

Após este exame das relações entre a escassa atividade do pensamento filosófico nacional e a raça, o meio e a psicologia do homem brasileiro, convém examinar se, no tipo social de nossa vida histórica, nenhuma sugestão podemos recolher para uma compreensão mais aguda do problema que estudamos.

Se o fator ideológico religioso, que deu ao brasileiro a sua concepção do mundo, sua forma de pensar a realidade e sentir o universo, explica parcialmente a deficitária produção filosófica do espírito nacional; se os fatores relativos à raça, ao nosso tipo antropológico em formação e a influência de nosso meio físico fazem compreender em parte o fenômeno que estudamos e, ao mesmo tempo, nos oferecem a convicção de que não somos biopsicologicamente refratários às interrogações metafísicas, o estudo de nosso meio social e das características de suas estruturas, talvez, nos ofereça uma compreensão mais ampla do problema em equação. Oliveira Viana, em suas obras sobre nossa formação social, insiste no fato do caráter rural da vida nacional. Somos ainda hoje um povo de 70% de agricultores. Nosso espaço social ainda é rural. Max Scheller, em sua sociologia do saber, analisando o condicionamento social da atividade filosófica do espírito, insiste em afirmar a influência que sobre ela exerce a vida urbana, a densidade demográfica do quadro social. Os sistemas da filosofia moderna apresentam, verdadeiramente, este caráter urbano. Max Scheller sugere as dificuldades que uma vida rural isolada e ao mesmo tempo dispersa oferece à constituição filosófica de um saber orgânico e definido. Lembramos que Sócrates dizia aos seus discípulos, em meio ao tumulto das ágoras atenienses, que o campo, que as árvores nada lhe sugeriam e nada tinham a dizer-lhe. Nossa formação histórica desenvolveu-se durante séculos dentro de um sistema de ilhas sociológicas no seio das grandes fazendas, no âmbito de nossa aristocracia rural. Esse estilo de estruturação social, que impediu longo tempo a formação de grandes cidades, exerceu certamente influência profunda sobre nossa formação psicológica, nosso modo de pensar, sobre a forma de nossa curiosidade e o tipo de nossa cultura. Em sua obra, Pequenos Ensaios de Psicologia Social, Oliveira Viana observa que o tipo psicológico forjado pela forma rural de nossa vida coletiva é um tipo essencialmente doméstico. Ora, o espírito filosófico é, no contrário, um espírito universal; a imaginação filosófica é uma imaginação cósmica.

É interessante registrar nessa altura de nossa análise que os fatores apontados, como causas prováveis da lentidão do surto do espírito filosófico entre nós, apresentam-se nas condições atuais da vida nacional como forças propulsoras de desencadeamento desse surto. O fator psicológico racial apresenta-se hoje como altamente predisponente ao exercício das cogitações metafísicas. O fator ideológico-religioso, "Weltsanschauung" afirma-se em nossos dias como um excitante vigoroso da inteligência brasileira, conduzindo-a à contemplação dos grandes temas da vida. Basta recordar este generalizado movimento intelectual em torno do Neotomismo e das construções da filosofia espiritualista e cristã, liderado por figuras do clero católico como Maurílio Penido, Leonel Franca, Sabóia de Medeiros, Castro Neri e que entre nós foi comandado por esta altíssima personalidade de filósofo e asceta que foi o Padre Werner von und zur Mühlen.

Recordemos, igualmente, a direção que deste movimento assumiram talentos de escola do laicato católico como Tristão de Athaíde, Alexandre Correia e tantos outros. E a Igreja tem sido, entre nós, a grande semeadora das faculdades de filosofia.

O fator social e a peculiaridade de nossa vida rural tendem a desaparecer com a organização de grandes centros urbanos e com o êxodo da população dos campos para os centros de grande densidade demográfica. Organiza-se assim um ambiente social propício à formação de fecundos focos de cultura filosófica, gerador de elites intelectuais.

Resumindo, diremos que a escassa aptidão revelada pelo brasileiro no campo da cultura filosófica resulta da ação combinada de várias causas: a ideológico-religiosa, a psicológico-racial e a sociológica. E a análise feita justifica que afirmemos a improcedência do juízo de Tobias Barreto em que o brasileiro não tem cabeça filosófica. Não fôssemos nós, na definição aristotélica, animais racionais, animais que farejam as primeiras causas, na pitoresca definição de William James, por que não experimentaríamos o apelo à divina sedução de contemplar o mistério da vida e do ser, a fim de compreendê-lo e adorar o absoluto, o Deus dos iilósofos, que é o mesmo Deus dos teólogos - o Deus de Abrahão, de Isaac e de Jacó?

 



[i] Conferência pronunciada na Associação de Professores Católicos, entre 1949 e 1951.