Discursos


O IDEAL UNIVERSITÁRIO1

 

Uma universidade, dissemos alhures, não consiste tão só numa fonte de sabedoria e de ciência, numa energia espiritual luminosa e irradiante; é, ainda, uma organização de convívio; situa-se num espaço social; é uma administração, uma realidade que se insere no mundo das coisas, dos objetos materiais, dos valores úteis e econômicos. Essa mensagem do espírito de que ela é portadora, essa comunicação que deve fazer de uma sabedoria, a universidade realiza-a através de homens e pela utilização de objetos.

O ideal universitário, para que se possa concretizar e exercer sua ação transfiguradora, exige a oferenda de vidas humanas voltadas à contemplação desinteressada da verdade, a pesquisa, a exploração do mistério do ser, enfim ao saber e à técnica. Exige, também, quadros, materiais de realização, laboratórios, gabinetes, um espaço construído, um cenário próprio.

Amparar o portador da cultura, o professor, criar meios mate­riais para que atue com eficiência, são condições que, não atendidas, transformariam uma universidade numa caricatura de algo sagrado para a inteligência. Um governo universitário, que descurasse o tratamento dessas exigências, estaria na iminência de confundir a comunicação da ciência com a difusão do charlatanismo.

Senhores, o homem, animal racional, "inteligência servida por órgãos" - na criticada definição de De Bonald -, em seu esforço cria­dor da cultura, está condicionado a um duplo espaço: psicológico­social e físico-social. O surto das chamadas escolas da sabedoria clássica, greco-romana, traduz este duplo condicionamento na constituição do saber humano.

A Academia de Platão e o Liceu de Aristóteles não expressa­ram, apenas, a existência de uma equipe de pensadores, de um grupo de discípulos em torno de um mestre; foram, ainda, originariamente, casas, edifícios escolares, vulgares construções, massas arquitetônicas, localizadas em determinadas regiões de Atenas e que integravam tudo que, in illo tempore, era considerado necessário e conveniente ao processamento da cultura.

A realidade inextensa do espírito insere-se, imerge na realidade extensa das coisas. As intuições do gênio que descobre, as criações do talento que inventa, realizam-se, em verdade, meta-espacialmente. Mas as descobertas e as invenções do espírito só vão constituir bens culturais quando se objetivam e se fazem transferíveis, comunicáveis, encarnando-se em coisas, concretizando-se, fazendo-se objetos de ensino, de demonstração, de crítica e de aprendizagem. E essa objetiva­ção das produções do pensamento exige espaço adequado à sua uni­versal aquisição pelas inteligências.

Como a técnica exige o espaço da fábrica, como a mística exige o espaço do tempo, como o amor exige o espaço do lar, assim o saber exige o espaço da escola - seja ela Liceu ou Academia, seja anfiteatro ou laboratório, espaço necessário para a demonstração de um teorema ou para a observação do comportamento das afinidades atômicas e das reações dos microrganismos.

Mas, como a técnica, como a mística e como o amor, o saber exige, igualmente; o fenômeno do convívio, pressupõe o espaço social, um contexto de energias interpsicológicas, implica a existência da escola, no sentido sociológico da palavra.

Senhores, nesta sessão de Assembléia Universitária, convoca­da para o lançamento de duas fundações - a de um edifício e a de uma associação -, atendemos a essa dupla necessidade de toda organização cultural: a de espaço físico e a de espaço psicológico-social.

                            Era deprimente para nós sermos passivas testemunhas desse espetáculo de uma universidade oficial com duas faculdades - a de Economia e a de Filosofia, sem sede própria, com duas tradicionais escolas - a de Engenharia e a de Agronomia, situadas em condições materiais deploráveis, em edifícios inadequados às exigências de sua crescente população escolar e a progressiva complexidade de seus cursos; com institutos carentes do necessário aparelhamento laboratorial, com gabinetes povoados de equipamento fóssil, revelando incoercível vocação para se constituírem em museus exemplares.

Permanecermos impassíveis face a essa indigência ou consolarmo-nos com a visão de uma futura Cidade Universitária, seria trair elementar dever funcional. A fidelidade a esse imperativo compeliu­nos a agir oportuna e, talvez, importunamente, para que se corrigisse essa comprometedora anomalia pedagógica. Nosso clamor e nossa ação não foram infecundos; a palavra e o gesto reivindicadores sus­citaram, enfim, como vedes, a satisfação da necessidade vital. O lançamento desta pedra fundamental revela-nos que, em verdade, pronunciamos palavras construtivas.

Não é, ainda, a fundação de uma Cidade, talvez mesmo não seja nem a de uma Vila Universitária, a que hoje iniciamos; de qual­quer modo, certo é que, neste ato, damos um definitivo adeus, e sem nenhuma melancolia, à ameaçadora visão de uma maloca universitária.

Lançando os fundamentos desta construção monumental, atendemos, apenas, voltados para o presente e para o concreto, inadiáveis exigências da instituição sob nosso governo. Com este gesto não renunciamos, de modo algum, às providências relativas à construção da futura Cidade Universitária, obra que, pelo seu vulto, pelas dificuldades múltiplas que encerra sua realização, exigirá, para ser concluída, um decurso de tempo que, sem grave desprestígio cultural de nos­sa Universidade, não poderíamos aguardar.

Senhores, quero, neste momento, cumprir um dever de justiça. A satisfação que nesta hora começamos a dar à vital necessidade de espaço construído, de que padecia nossa Universidade, muito deve ao Senhor Governador do Estado. Sua Excelência revelou, no trata­mento desse problema básico de nossa instituição, um alto espírito público e uma nobre compreensão. Quero expressar-Ihe, por esta sua atitude, o apreço e a gratidão da Universidade do Rio Grande do Sul.

Senhores, as condições em que surgiram, na América, as universidades, não coincidem com as que determinaram sua gênese na Europa. Lá, há mais de sete séculos, no interior de uma civilização hígida, possuidora de uma vigorosa unidade espiritual, o sistema universitário caracterizava-se pela posse de uma enérgica visão unitária do ser, dominando todo o panorama de uma multiplicidade de formas especializadas do saber.

Sua constituição resultou de uma extensão feliz do direito corporativo à esfera de ação dos homens voltados à cultura. Foi um elã vibrante de solidariedade de classe, foram os vínculos criados por uma mesma vocação, por um comum ideal, que geraram as primeiras universidades. Dois traços a caracterizavam: a unidade do saber e a solidariedade, o convívio íntimo e a íntima colaboração dos portadores da cultura que as integravam.

Bem diversas foram as condições em que surgiram, entre nós, as universidades. Preliminarmente, vivemos no interior de uma civilização cuja unidade espiritual foi fraturada. Acresce que a cultura superior, entre nós, processou-se através de escolas e faculdades isoladas, que proporcionavam o saber rigidamente profissional.

Nossas universidades constituíram-se pela reunião dessas es­colas, sob o influxo de iniciativas políticas do Estado. Nelas existe menos um sistema, que um conglomerado cultural. Constituem, ainda, simples unidades administrativas. Nelas, não se traduz a existência de um espírito universitário, que pressupõe convívio demorado, comunicação de idéias, de experiências, de pesquisas em torno de problemas comuns.

Carecemos, lamentavelmente, de um espaço psicológico­-social, indispensável à constituição de uma cultura integral. Para merecer o nome que traz, nossa universidade deverá constituí-lo. E ela poderá fazê-lo, precipuamente, organizando o convívio de seus mestres e de seus alunos, proporcionando-lhes, através de vivências tipicamente universitárias, a consciência do ideal comum.

Senhores, foi para ofertar à nossa incipiente universidade essa situação, necessária à sua existência normal e específica, que hoje lançamos as bases da Associação dos Professores Universitários. Complexo, vital é o seu programa de ação. Realizado, ele transformará a vida universitária, nela gerando uma autêntica e vigorosa unidade cultural.

Senhores professores e senhores acadêmicos, testemunhais, nesta assembléia, duas iniciativas que nada têm de decorativas e protocolares: elas expressam gestos que queremos sejam criadores de realidades, atos que esperamos sejam constitutivos da Universidade do Rio Grande do Sul.

Apelamos para vossa colaboração e cremos que vos transformareis, de testemunhas, em fecundos operários desse nobre labor que, nesta hora, se inicia.



1 Discurso proferido pelo Prof. Armando Câmara, Magnífico Reitor em 01.07.48 por ensejo do lançamento da pedra fundamental das novas obras da Universidade do Rio Grande do Sul e quando simultaneamente, se fundava a Associação dos Professores Universitários.