Discursos


"APOSTOLIZAR É CIVILIZAR, VIVER O EVANGELHO É CRIAR CULTURA”1

 

Revmo. Irmão Afonso.

Desde o advento do Cristianismo, desde que o Verbo se fez homem e habitou entre nós, lá onde se desencadeia uma energia espiritual inspirada pela graça, um gesto ou uma sucessão de gestos humanos tangidos pela caridade, ali está, presente ativa, uma força criadora de bens culturais, de elementos e formas de civilização.

                            A História o diz: apostolizar é civilizar, viver o Evangelho é criar cultura.

E a explicação cristã desse aparente paradoxo do amor gerando sabedoria e criando conhecimento é simples como todas as explicações cristãs redutoras do mistério do ser ao supremo mistério de Deus, desse Deus que é para o homem a suprema distância e, ao mesmo tempo, a intimidade suprema.

Não foi o gênio de Patmos que, na inspiradora lucidez de sua visão do Absoluto, definiu o amor como sendo o substratum último de ser, quando disse que Deus é caridade? E esse amor que, na Teologia cantabile da Divina Comédia, "move o sol e as outras estrelas" não será, talvez, o mesmo Pensamento ordenador dos mundos, cuja presença, no cosmos, registrou o gênio grego através de Anaxágoras?

Que há de estranho, pois, no fato, registrado pela História e pela Sociologia, de ser a caridade fonte de cultura? Toda a alma que se abandona ao Amor Primeiro, sendo portadora da caridade que é Deus, o é, também, do logos, do verbo que era no princípio. A caridade está tão cheia do pensamento divino, que se faz, nas almas, luz intelectual fonte de conhecimento, sabedoria potencial.

Na visão amorosa do evangelista que, idilicamente, repousou a fronte genial no coração de Cristo, estava lá intuída, embora informulada, toda essa prodigiosa cosmovisão fixada, mais tarde, pelo Doutor Angélico, na Suma Teológica.

Para que essa caridade que, um dia, Cristo ascendeu no cora­ção humano, frutificasse em bens culturais, era necessário, tão só, a fidelidade do homem à sua vivência. E esta fidelidade fê-la traduzir­se nos mais altos valores que integram a civilização humana. Essa caridade palpitou e fremiu nas criações maiores do gênio ocidental: es­tava presente nas telas de Rafael, na arquitetura de um Miguel Ângelo, na música de Bach, na poesia de Dante, nos pensamentos de Pascal, na ciência cheia de adoração de um Pasteur; ela estava na base da atitude mental condicionante do surto da ciência moderna e da decorrente conquista da técnica, do saber voltado para o domínio e a fruição da natureza e do mundo.

E, assim, as mãos orantes dos que viveram para o amor de Cristo, por que as animava a caridade, plasmaram um teor de psicologia humana, criaram um clima espiritual, estilizaram uma forma de compreensão e de convívio, configuraram um tipo de comportamento face à natureza, um modo de estar no mundo e de usar a vida, que são os valores maiores e originais da cultura moderna.

Se o amor que arrebatou místicos, santos e ascetas, não os fez artifícios conscientes, agentes diretos de bens culturais específicos ­se Paulo de Tarso não compôs sinfonias, se Pedro não legou painéis, se Francisco de Assis, alegremente, ignorou o cálculo das probabilidades, e Vicente de Paulo nada sabia sobre a técnica da dissociação atômica, no entanto, por que viram heroicamente o "único necessário", realizando em plenitude a caridade de Cristo, fazendo de suas vidas, corolários do teorema evangélico, estiveram tão presentes nas condições criadoras da civilização contemporânea, que se pode apontá-los como seus inspiradores artífices.

As universidades da Idade Média, emergindo das catedrais, ilustraram essa vocação da caridade para criar conhecimento e produzir cultura. Em verdade, toda a sabedoria medieval foi o desenvolvi­mento temário de um madrigal a Deus; seu tecido nobre e profundo é constituído de estrofes, embora abstratas, de um poema de fidelidade a Cristo.

Tudo isso sugere que a cultura não é obra exclusiva da razão, e a civilização, produto específico da inteligência. No mistério de nosso ser, no universo espiritual do homem, outras forças vivem e atuam, talvez mais profundas e criadoras - "a razão tem razões que a razão ignora", diria Pascal, irônico e reticente. Sobre a misteriosa realidade do espírito, sobre suas potencialidades e aptidões ainda desconhecidas, poderíamos repetir ao racionalismo simplista, o sugestivo epigrama de Shakespeare: "Muita coisa há no céu, muita na terra, que ignora tua vã Filosofia". E se a experiência histórica não bastasse para sugerir que as autênticas fontes da civilização situam-se além, muito além do mundo dos silogismos, das realidades lógicas e abstratas, e, também, muito acima do círculo da experiência sensorial e dos fatos brutos da observação direta, então aí estariam os melhores registros da Psicologia sobre a gênese do conhecimento, para sugerir o condicionamento deste por outras forças espirituais e do amor. Não será, talvez, o conhecimento, um convívio? Conhecer não é conviver com os demais seres, através da imagem que deles se forma em nossa consciência? E o convívio não implica afeição e amor? Realmente, a compreensão é uma forma da caridade.

Revdo. Irmão Afonso, vosso arguto espírito gaulês já apreendeu, certamente, o sentido desta aparente digressão de meu discurso. Percebestes, já, as razões por que esta Universidade que fundastes, homenageia-vos nesta solenidade.

Um dia, nessa Gália que ouvira os ensinamentos de Tomás de Aquino, que dera ao mundo a caridade de um Vicente de Paulo, que se empolgara com a eloqüência de Bossuet, que enriquecera a ciência experimental com a genialidade de Ampère e de Pasteur, que dera à Europa esse prodigioso gênio militar, político e moral que foi Joana D'Arc; um dia, nesse século que Daudet, irreverentemente cognominou "o estúpido século XIX", um jovem, Charles Hesbaux, sonhou um sonho cheio de beleza moral. Ele sonhou renunciar ao mundo efêmero e caduco, para viver a plenitude da vida, na fidelidade aos apelos de Cristo.

Homem de seu século, esse jovem bem lhe conhecia o drama espiritual; gaulês fiel ao seu batismo, ele tinha o coração sangrando face à melancólica apostasia da França, que, na expressão plástica de Brunetière, como un enfant qui bât sa nourrice, perseguia a Igreja que plasmara seu ser histórico e lhe dera os perenes valores de sua civilização maravilhosa.

E ao amor desse jovem ao Cristo repudiado e à Igreja perseguida, sua compaixão pelo homem enfermo e ímpio, fizeram-no eleito do Senhor. E Charles Herbaux fez-se Frère Alphonse, um religioso missionário de Cristo em terras do Brasil.

E os frutos da semeadura que fez, em meio século de labores apostólicos, aí estão sob os nossos olhos cheios de admiração. A opulência dessa seara é mais uma ilustração da força civilizadora da caridade cristã.

Missionário de uma Congregação que salva ensinando, que ama ao homem educando-o, Irmão Afonso viu, com angústia, as ame­aças que pairavam sobre a vida espiritual das loiras criancinhas que povoavam suas escolas primárias, dos jovens estudantes de seus cursos humanísticos, ao ingressarem num ambiente cultural de ensino superior laico, carente de uma sabedoria integradora da vida, mosaico confuso em que, tumultuariamente, se justapunham as mais heterogêneas formas do saber especulativo e prático.

                            E, ainda uma vez, a caridade cristã face a essas almas ameaçadas de frustração de seu destino pelo agnosticismo do ensino oficial, pela mentirosa neutralidade do Estado laico, foi uma fonte criadora de cultura, Irmão Afonso quis que os espíritos que amavam o Deus que habita as catedrais, o adorassem nesse santuário da inteligência que é a universidade integral restituída à sua história e natural destinação de órgão elaborador de uma sabedoria salvadora do homem. E, inspirado no arrojo missionário, no gênio apostólico de sua Congregação, ele criou esta Universidade, mobilizando figuras exponenciais de nossa cultura, convocando os valores maiores de uma geração que perseverara no amor ao Cristo ou que a ele retornara, através da palavra de apóstolos pensadores, de sábios missionários, como o eminente jesuíta Padre Werner von Mühlen e do não menos eminente capuchinho Frei Pacífico de Bellevaux.

E assim, tangido pela caridade, Irmão Afonso, plasmando esta força elaboradora de bens culturais, situou-se entre os apóstolos que mais contribuíram para a valorização espiritual do Rio Grande. Eis porque esta Universidade fá-lo, neste momento, Doutor Honoris Causa.

Porque, com sua generosidade apostólica, com seu elã missionário, venceu mil resistências, superou incompreensões sem número, suportou todos os riscos dessa soberba ventura de criar, entre nós, um órgão de humanismo integral, por isso, o Irmão Afonso é, em verdade, mestre de todos os que, aqui ensinando, jamais esquecem que toda a ciência, todas as riquezas da vida intelectual, todas as descobertas do espírito humano, todos os valores da cultura, sem a caridade, sem o amor a Deus e ao próximo, são, na imagem do apóstolo, como o soar do címbalo e o tinir do metal.

Irmão Afonso, sem ocupar uma cátedra desta Universidade pela vossa vivência heróica do humanismo cristão, ensinais, através da palavra de todos os seus mestres, que inspiram seu pensamento nessa sabedoria, que é, na expressão de Dante, "luz intelectual cheia de amor".



1 Discurso em saudação ao Rvdo. Irmão Afonso, Doutor Honoris Causa pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.