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Padre Werner foi um jesuíta, professor do
Colégio Anchieta, de Porto Alegre, reconhecido por todos os seus inumeráveis e
ilustres discípulos como extraordinário orientador cultural e encantador guia
moral. A ele atribuía o
Prof. Armando Câmara a exploração inicial de sua vocação filosófica, o estímulo
para a reflexão e, acima de tudo, a correção daquilo que considerava seus
deslizes de juventude. A veneração pelo
Padre Werner era tal, que o Prof. Câmara tinha sempre os olhos umedecidos,
quando a ele se referia. Na figura dele, estribava a segurança de princípios lógicos
e éticos que o norteavam. Foi também o Prof.
Câmara o assistente que acompanhou o velho jesuíta, em seu leito de morte, até
o segundo final nesta terra, fato ao qual se referia com profunda emoção. Parece que o único texto
deixado pelo Pe. Werner é este: a transcrição ( ou o manuscrito ) de duas
palestras sobre Livre- Arbítrio, que ele fez, nos dias 29 de julho e 5
de agosto de 1919, aos Congregados Marianos do Colégio Anchieta. O texto foi publicado, no
mesmo ano, pela Typographia do Centro, de Porto Alegre, e um exemplar
chegou às minhas mãos, no ano de 1954, como presente de outro discípulo
saudoso do mesmo velho jesuíta, o Prof. Laudelino de Medeiros. Para divulgá-lo, tomei a
iniciativa de fazer uma revisão ortográfica, porque, hoje, não é nada agradável
o confronto com a infinidade de letras dobradas, e ph’s de nossa antiga
ortografia da língua portuguesa. No mais, a publicação é integral. A importância desta
divulgação não decorre apenas da maravilhosa análise sobre assunto tão
transcendental, mas ainda da possibilidade que nos proporciona de buscar as raízes
mais remotas do pensamento do Prof. Câmara. São Paulo, 8
de outubro de 2002 Jacy de Souza Mendonça.
O LIVRE-ARBÍTRIO Pe. Werner von und zur Mühlen S. J. Meus Senhores, Nem em todos os pontos
daquele combate eterno que as ondas do oceano sustentam contra a terra firme, a
peleja é igualmente renhida e violenta. Na
areia da praia larga e suavemente inclinada, as vagas acodem, estendem-se em
brancos lençóis e recaem com tranqüilidade no leito do mar. Onde, porém, um penedo
escarpado sai do alinhamento da costa, qual guerreiro destemido que avança para
combate singular, lá recrudesce também a fúria das ondas. Vagalhões imensos
afluem e curvando-se com ruído parecem querer descer ao fundo para abalar os
alicerces de rochedo em que o inimigo assenta, rodeiam-no como para espiar um
ponto fraco, levantam-se, crescem, sobem, querem afogá-lo na massa das suas águas,
envolvem-no numa tempestade de espuma, de estrondo, de fúria, e depois, lassos
e exaustos, recaem no abismo donde saíram, deixando o velho quebra-mar, grande
e solitário, na sua gloria de campeão nunca vencido. Assim acontece também
nas lutas espirituais, no choque não menos violento dos sistemas filosóficos
que se disputam as inteligências e os corações dos homens. Há perguntas que, embora
controversas, não despertam interesse, que levam uma existência precária nos
programas das escolas, e há outras que são discutidas quase diariamente em
disputas acaloradas quando não violentas, onde se empenham não só as forças
da inteligência como também os sentimentos do coração, porque sentimos que
sua decisão é grande como a eternidade, que dela depende todo um sistema filosófico,
toda a concepção do mundo, toda a significação da vida do homem e de seu
destino. Um destes pontos
cardeais, Meus Senhores, é a questão do livre-arbítrio sobre a qual tenho, na
presente hora, a honra e o prazer de vos entreter. A doutrina que vou propor não
é minha, é apenas um capítulo da philosophia perennis, é da herança
dos séculos. Sou simples porta-voz de uma escola e — ouso acrescentá-lo —
porta-voz também da sã razão, do bom senso, assim como vive no coração da
maioria dos homens. posição da vontade na
hierarquia de nossas faculdades Acima da imaginação, na
qual recebemos e percebemos as qualidades sensíveis do mundo corpóreo, a luz
do sol, a fragrância das flores, os trovões da tempestade, a harmonia dos
cantos, o calor, o frio que as estações trazem, tudo enfim que é objeto dos
nossos sentidos, e que é percebido pelos próprios animais, possuímos a
inteligência, a qual, servindo-se dos produtos da imaginação, forma idéias
abstratas e com elas juízos e raciocínios. A nossa vida sensitiva, com suas
impressões e associações, assemelha-se à dos irracionais. Só pela inteligência
é que o homem se torna homo sapiens, matemático, astrônomo,
engenheiro, médico, jurisconsulto, religioso, poeta. O complemento natural da
imaginação, que é sensitiva e material, é a apetência sensitiva. Este
apetite sensitivo, material como a imaginação, palpita nos nervos, faz ferver
o sangue, diminui ou aumenta as pulsações do coração, faz empalidecer ou
corar, faz tremer ou paralisa, conforme se chama ira, medo, desejo, inveja,
amor. Como este apetite, sensitivo e material, é o complemento natural da
imaginação, assim também a inteligência, faculdade abstrata e espiritual,
vem acompanhada de um apetite espiritual que é a vontade. Sentimos a existência
desta vontade em todos os seus atos cônscios, sobretudo, porém, quando ela se
põe em oposição ao apetite sensitivo, combatendo as paixões e pondo-lhes um
freio na boca espumante. Hércules domando o cérbero
de três cabeças, eis a imagem da vontade a respeito do apetite sensitivo, com
a diferença apenas de que não só doma o apetite sensitivo mas também o
amestra e o dirige para seus fins. Como a inteligência faz
o homo sapiens, assim a vontade forma o caráter. A vontade Antes de estudarmos a
mais bela prerrogativa da vontade, a sua liberdade, passemos um lance de vista
sobre sua natureza e suas funções. A vontade é uma
faculdade intrinsecamente independente do organismo, espiritual como a inteligência
e a própria alma, tendo como objeto o bem, todo o bem, e como funções atos
livres e atos necessários. Ela é a sede da afeição
superior. À vontade é que atribuímos alegria e dor moral, nela reside o
prazer que segue o sacrifício feito a favor de outrem, o arrependimento que
segue o crime, a satisfação íntima do sábio que arrancou mais um segredo à
natureza, as inclinações para o bem moral, para os ideais, para o altruísmo,
e, além destas inclinações e afeições que em muitos casos não dependem de
nosso consentimento, reside ainda na vontade a faculdade de dispormos livremente
de nós, de nossa pessoa, de nossos atos: o livre-arbítrio. Os atos livres são,
pois, só uma parte dos atos da vontade. Outros atos e afeições são manifestações
espontâneas e necessárias da sua tendência fundamental para o bem, são
determinados pela natureza da vontade e pelo objeto. Essencialmente orientada
para o bem, a vontade não pode, por exemplo, deixar de se sentir atraída pelo
ideal do bem, de alegrar-se quando dele se aproxima, de sentir horror quando
dele se afasta. Destas inclinações e
afeições inalienáveis da natureza humana, e que garantem uma certa constância
e uniformidade no proceder, distinguem-se nitidamente as decisões da vontade,
as determinações autônomas e livres da vontade, estas que são a atividade própria
do livre-arbítrio. A intensidade de todas
estas manifestações da vontade pode percorrer toda a escala desde as mais
fracas veleidades até aos mais violentos arroubos da energia. O objeto da
vontade é o bem. O mal como tal, o objeto que é totalmente mau, não pode ser
apetecido pelo homem. Até nos atos mais hediondos, nos crimes mais atrozes, o
criminoso descobre ainda um lado bom ou que tal lhe parece, uma satisfação que
fosse dos instintos mais grosseiros, e só por este lado, por um bem verdadeiro
ou imaginado, estes objetos são acessíveis à vontade humana. A vontade é uma faculdade
espiritual, í.é, inextensa e intrinsecamente independente da matéria. Sem repetir aqui os
argumentos com que a psicologia prova esta tese, supomos o fato, e damos apenas
a explicação do conceito “independência intrínseca", porque
este conceito é indispensável para elucidar o funcionamento da vontade no
presente estado da nossa natureza. No estado de união entre
a alma e o corpo, o exercício da vontade é ligado a órgãos corpóreos, assim
como o exercício da inteligência é ligado ao cérebro. Se estes órgãos
vierem a padecer uma indisposição, uma doença, a vida intelectual,
respectivamente a da vontade, ressentir-se-á da mesma. Certa dependência é,
pois, atestada pela experiência. Mas ha dependência e
dependência! Querendo resolver um cálculo
astronômico muito complicado, o sábio depende de tinta e papel. Sem estes
meios de fixar a marcha nas suas idéias e os resultados adquiridos, nunca
chegaria a resolver o problema. Esta dependência, porém, é toda extrínseca.
O cálculo não é feito no papel, mas na mente do sábio, O papel serve só
para facilitar a operação e a orientação, para acudir à fraqueza da memória.
Uma memória prodigiosa seria, quiçá, capaz de suprir a falta destes meios. A solução do cálculo
depende também do preparo matemático, e esta dependência é intrínseca. A dependência entre a
vontade e o organismo é extrínseca, como a dependência entre o calculo matemático
e os meios de escrever: a atividade orgânica não entra nos constitutivos do
ato livre, a vontade só é a causa deste ato. Este fato, explicado e
provado em psicologia, dà a resposta a uma dificuldade muitas vezes levantada
contra o livre-arbítrio, e que o Sr. N. M. Korkounov, na pàg. 343 de seu ,,Cours
de théorie générale du droit", exprime nos termos seguintes: “Si nous
envisageons les conditions de la vie humaine, nous remarquons que la dépendence
de la vie morale de l'organisme est un fait incontesté aujourd'hui, admis par
tout le monde, même par des métaphysiciens, comme par exemple Hartmann. Mais
si les phénomènes psychiques dépendent de l'organisme, soumis lui-même au
principe de causalité, comment peuvent-ils eux-mêmes échapper ce principe?*' A resposta a esta observação
do erudito russo está na distinção que se há de fazer entre dependência
intrínseca e extrínseca. O exercício da
vontade depende do organismo, mas não como da sua causa, só como de uma condição,
como o cálculo matemático do papel, esta dependência e extrínseca. Daí vem
que as causas materiais não regem a vontade, esta “escapa” às forças da
matéria. A dependência extrínseca
de uma condição não deixa, entretanto, de se fazer sentir, e como o músico não
pode fazer música perfeita quando o instrumento é defectivo, assim a vontade não
pode funcionar com perfeição quando o organismo está doente. Embora não sujeita às
leis da matéria, a vontade não “escapa" ao princípio da causalidade. O
ato livre tem causa plena e completa! Mas, já que não depende intrinsecamente
da matéria, também não é na matéria que devemos procurar sua causa. O princípio
de causalidade, este grande princípio de todo o ser e de todo o saber, governa
também nos atos da vontade, mas de um modo diferente do que o autor do Cours de
Théorie Générale imagina, como em seguida veremos. Esta vontade não é,
absolutamente, uma faculdade obscura, subconsciente, nebulosa, fogo fátuo que
foge e ilude o lasso e desesperado romeiro da verdade. Não! Fundamentalmente idêntica
ao próprio “eu”, ela se manifesta com a grande e serena luz do meio dia em
todos os nossos atos plenamente cônscios. análise do livre-arbítrio A mais nobre entre todas
as prerrogativas da vontade é, sem duvida, sua liberdade, o chamado livre-arbítrio. Para provar a existência
desta liberdade, será preciso primeiro bem enfocar o conceito da mesma, dar sua
definição, analisar-lhe o processo, porque é precisamente da falsa interpretação
da doutrina que nasce a maior parte das dificuldades que os deterministas contra
ela levantam. Estes ataques dos
deterministas têm, muitas vezes, por ponto de partida a ignorância da questão,
por arma um sofisma e por alvo um espectro criado pela própria imaginação do
atacante. Sentimos, freqüentemente e com mágoa, na argumentação de certos
autores, a falta do sentido lógico, do rigor matemático, da nitidez das linhas
geométricas. Explicar a doutrina do
livre-arbítrio é defendê-la. Seja, pois, esta a definição
do livre-arbítrio: a faculdade do homem de se determinar para agir ou para não
agir, para agir deste ou daquele modo, quando realizados todos os requisitos que
esta determinação exige. A definição atribui, pois, a decisão entre duas
possibilidades opostas à vontade, não obstante a pressão do meio exterior e a
luta interna dos vàrios motivos. um exemplo Para concretizar estas
abstrações num exemplo, estudemos o desabrochar do ato livre num fato
particular. Por que fases passa a decisão de fazer uma viagem ao Rio de
Janeiro? A inteligência percebe, estuda o objeto e encontra nesta viagem
grandes vantagens para o corpo e para a alma, mas, ao mesmo instante,
descobre-lhe também desvantagens e sacrifícios de tempo e de dinheiro.
Outras possibilidades de viagem se apresentam. Buenos Aires alicia o
viajante, porque lá deixou muitos bons amigos, e Montevidéu porque de là
trouxe ótimas lembranças da sua ultima estada. Mas ir a Buenos Aires ou a
Montevidéu, é sair da pátria, do País da sua língua e de seus costumes. Todas estas
possibilidades de viagem podem ser escolhidas porque cada uma tem o seu lado
bom, nenhuma necessita, porque cada uma tem seus senões. As considerações da
inteligência vão se prolongando, e, entretanto, a vontade sente-se inclinada jà
para uma, jà para outra destas viagens: inclinações espontâneas, involuntárias,
resultado, muito natural das boas qualidades dos objetos. Depois de ter muito
deliberado e pesado os prós e os contras de cada viagem, a inteligência chega
a uma conclusão: o melhor será ir ao Rio. Este ato é um juízo, concebe-se na
inteligência. Este juízo põe termo às deliberações. Em seguida, e só em
seguida, e separado deste juízo, talvez por minutos, pode ser por horas e por
dias, vem a decisão da vontade: vou ao Rio! Esta decisão é, com toda a
propriedade, o ato livre, o ato de auto-determinação, o ato moral, o ato que
sentimos como nosso, o ato que enunciamos pelas palavras: eu me decido; eu tomo
a resolução; eu quero. Estas expressões são como a marca de proveniência do
ato: o ato da livre vontade é nosso, sai do mais íntimo da nossa pessoa. O livre-arbítrio é a
faculdade de nós nos determinarmos ï Depois da decisão
procedemos à execução da mesma. No ato que acabamos de
analisar, à decisão seguiu o juízo: o melhor é a viagem ao Rio. Veremos mais adiante que a vontade nem sempre opta pelo bem
maior. Quanto à exatidão da análise
não pode haver dúvida, ao que nos parece; é bem assim que procedemos,
deliberando, pesando, escolhendo, decidindo-nos, quando se trata de uma
determinação importante: e quando a importância da determinação não é
tanta, vamos ainda pelo mesmo caminho, embora mais depressa. A análise filosófica
enuncia apenas aquilo que todos nós experimentamos. Supondo um objeto próprio,
o processo da volição livre passa, pois, pelas fases seguintes: percepção do
objeto pela inteligência — deliberação — inclinações espontâneas na
vontade — juízo — decisão — execução.. Será ainda mister
analisar estas fases, uma por uma; esta exposição contém, em gérmen, a
refutação da mor parte dos ataques correntes contra o livre-arbítrio. objeto O objeto proposto à
deliberação deve ser — realmente ou aparentemente — bom, ao menos
deve apresentar um lado bom, para ser objeto de uma faculdade que essencialmente
procura o bem, e que só para o bem é criada, como os olhos para a luz e o
ouvido para o som. Até o suicida vê na extinção da sua existência o mal
menor, e sob este respeito, que lhe parece um bem, pode procurar a morte. Além de bom, o objeto há
de ser possível. Para o impossível não nos podemos determinar. Podemos
desejá-lo, não podemos querê-lo. O poeta pode desejar uma viagem pelas
estrelas, mas não se pode determinar para voar mais alto do que sobe o
aeroplano. Para ser objeto da
escolha livre, o bem deve ainda ser um bem limitado. Diante do bem
absoluto, sem limites, sem sombra, sem condições, representando a felicidade
sem mescla, que se recebe sem custo, que se guarda sem cuidados, que se possui
sem deixar lugar a outros desejos, nem presentes, nem jamais futuros, diante,
enfim, do bem infinito, a vontade não tem mais a liberdade de o rejeitar. Possuísse
esta liberdade, a vontade não seria essencialmente orientada para o bem. Esta consideração,
necessária para fixar os limites da liberdade, possui, entretanto, só
interesse teórico, o bem absoluto não se apresenta assim cá de telhas abaixo. Cada objeto apresenta
sempre ao menos duas possibilidades contraditórias: a de aceitá-lo e a de o
rejeitar, muitas vezes, porém, apresenta varias possibilidades, contrárias
entre si: viagem ao Rio, a Montevidéu, a Buenos Aires. percepção do objeto pela
inteligência A inteligência, que,
percebendo o objeto, prepara a decisão da vontade, deve ser sã, seu uso
desembaraçado. Na medida em que for anormal, será anormal também o exercício
da vontade, e a razão disto é, porque a atividade da vontade segue a inteligência.
Só enquanto percebe o objeto, o “eu” pode querê-lo, só enquanto tem a
convicção de que a planejada viagem é boa ou má, pode ter inclinação para
ela, escolher ou rejeitá-la. Esta dependência entre a
vontade e a inteligência dá a medida para a moralidade dos atos. Uma ação
será moralmente boa ou má, só quando como tal for percebida. Por isso, um
louco, embora pratique ele as hediondezas de um Nero ou de um Diocleciano, não
será um criminoso nem como tal considerado, porque desconhece a maldade de suas
ações. Do contrário, seria ação
moralmente má a que erradamente fosse julgada tal pela pessoa que a pratica,
porque queremos os objetos assim como se refletem na nossa inteligência. Seria criminosa uma
viagem custosa para quem tem a convicção de que os gastos da mesma
acarretariam a miséria para a família, ainda que esta convicção se baseasse
em informações erradas. deliberação Percebido o objeto, a
pessoa passa a deliberar sobre o partido por tomar. Antes de me decidir, penso,
delibero, i. é, procuro dar-me conta do bom e do mau, do agradável e do
desagradável, de todas as conseqüências que a decisão possível vai trazer.
Delibero para meu governo, para não me decidir à toa, para que a resolução,
que vou tomar, seja razoável. Prolongo ou abrevio a deliberação conforme a
evidência e a importância dos fatos, conforme o interesse que o objeto da
decisão me inspira. influência do caráter É evidente que nesta
deliberação cabe um papel importantíssimo ao caráter da pessoa, à sua educação,
aos seus costumes, ao seu passado todo. Influirão muito as sugestões da parte
das paixões. Que diferença entre as apreciações de um cavalheiro e de um
criminoso, em matéria de honra! Que diferença em o nosso modo de ver o
procedimento de um amigo e o de um inimigo! Que distancia não vai do entusiasmo
que o moço tem para longínqua viagem até à aversão pela mesma no coração
do ancião sedentário e inativo. Toda a nossa sensibilidade, costumes de raízes
profundas, todo o nosso ser está, às vezes, empenhado nesta deliberação, e a
sua influência é dupla. Esta apetência,
sensitiva ou supra-sensitiva, ideal, atua sobre a inteligência e sobre a
vontade. Ela atua sobro a inteligência,
distribuindo luzes e sombras sobre a questão, conforme sua inclinação, apaga
o que não lhe convém, dá relevo ao que pode servir a seus desígnios, acentua
e elimina, para convencer a inteligência no sentido da paixão ou do sentimento
preponderante. Ela atua ainda sobre a
vontade, inclinando-a com mais ou menos força, para um ou para o outro lado. A influência desta apetência
é grande. Ela e determinante? Os argumentos do
livre-arbítrio provarão que não! E, de fato, a inteligência ouve sempre, a
par das aspirações idealistas da alma e da linguagem, muitas vezes apaixonada,
da apetência sensitiva à voz da razão, e está sempre em condições de fazer
o desconto do exagero, isto ao menos nos casos normais e naqueles que do estado
normal não muito se afastam. A vontade, que,
naturalmente segue a inteligência (não absolutamente, mas como ela — a
vontade — quer), não pode ser determinada pela apetência, quando a inteligência
lhe descobriu os sofismas. inclinações espontâneas da
vontade Assim como o apetite
sensitivo causa inclinações ineficazes na vontade, a própria inteligência
produz os mesmos efeitos, e sendo que pela inteligência percebemos vàrias
possibilidades, opostas entre si, sentiremos também várias e encontradas
inclinações na nossa vontade. Com outras palavras, o homem gosta ou
aborrece-se com aquilo que a razão ou o apetite sensitivo lhe propõe como
agradável ou desagradável. Sentimentos e afetos desta ordem costumam prevenir
as resoluções da vontade, inclinam-na numa ou n'outra direção, e com estas
inclinações a vontade está disposta para agir, porém não determinada. Ela
pode resistir a estas inclinações. Estas tendências da
vontade podem tornar difícil, dificílima uma resolução em sentido contrário:
não a tornam impossível. Elas podem ser fortes, a vontade é mais forte. Elas
não determinam a pessoa, esta se determina a si mesma. juízo A deliberação remata
num juízo. O objeto é julgado bom ou mau, aceitável ou não. Este juízo é
um ato da inteligência e seria erro grave confundi-lo com a decisão. São
fatos de todo diferentes e absolutamente irredutíveis, os que são expressos
nestas duas proposições: “A viagem me convém” e “quero fazer a
viagem”. O juízo sobre o objeto
é o ultimo elemento dos que preparam o ato livre. decisão importância dos requisitos Enumeramos todas as condições
necessárias para o ato livre. Ouçamos ainda como o Exmo. Cardeal Mercier
aprecia a importância destas condições no funcionamento do livre-arbítrio. “ L'exercice de la
liberté dépend, indirectemcnt, de l’état de l’organisme et, plus généralement,
de conditions materieles. Il est d'expérience, du
reste, que les conditions physiques teles que le climat, le régime, les
dispositions natureles et hérédítaires, aussi bien que les influences morales
de tradition ou d'éducation, informent considérablement l'exercice habituel du
libre arbitre. Dans quele mesure? Exceptíonnelement, l'action
peut en être déterminante, mais la preuve du libre arbitre nous autorise à
affirmer que, en règle générale, ele ne l'est pas. En dehors des cas
exceptionnels bien connus — ivresse, folie — ou de certains autres plus ou
moins problématiques — hypnose profonde, hystérie, dégénérescence — les
influences nuisibles de l'organisme sur le libre arbitre sont plus au moins déprimantes,
mais n'abolissent pas la responsabilité personnele” ( Psychologie II, pag.
143 ). O mesmo se diga da
influencia que uma grande paixão pode exercer sobre a vontade. Se a paixão
chegar a perturbar a razão, ela perturba, pelo fato mesmo a vontade, se
momentaneamente destruir o uso da razão, será momentaneamente destruído o
livre-arbítrio. O caso não é impossível, mas certamente excepcional. discussão É esta, meus Senhores, a
doutrina genuína do livre-arbítrio. Ela está no meio entre
duas doutrinas extremas, a do determinismo e a do indeterminismo absoluto. Enquanto o determinismo,
exagerando a influência das causas que influem na vontade, nega o poder da
autodeterminação da mesma, o indeterminismo nega toda a influência das
causas, exagerando a independência da vontade. Para o determinista as ações
humanas são resultantes certas de causas inevitáveis, para o indeterminista
absoluto, elas são irrefletidas, efeitos do acaso, praticadas à toa. No
sistema deste indeterminismo, o curso da nossa vida é como o de um navio sem bússola
nem leme, no determinismo como o curso de um vapor a que faltassem os combustíveis. Duas doutrinas igualmente
erradas! No meio, entre elas,
livre das exagerações de ambas, está a doutrina do livre-arbítrio. Ela não
nega absolutamente que a vontade depende, nas suas decisões, de alguma maneira,
da constituição psíquica e física de cada indivíduo humano, do meio cósmico,
social, individual, das influências hereditárias, e principalmente da inteligência,
só nega que esta dependência seja absoluta. A vontade não é
absolutamente uma faculdade sem tendências, sem direção, sem característica,
superior a tudo, impregnada de nenhum elemento pessoal. Pelo contrário, segue
da nossa análise que a decisão livre é o que ha de mais pessoal na natureza
humana. Preparada pela inteligência, imbuída de todos os afetos do coração,
sofrendo as influências do passado, refletindo o ambiente, nascida enfim no
mais íntimo do nosso ser, a decisão livre é a mais perfeita expressão da
nossa personalidade. A vontade livre não é tão
pouco uma causa arbitrária, instável, ambígua, não subordinada a lei alguma,
ela se governa pela inteligência.O que a inteligência achar bom, melhor, agradável,
útil, a vontade o poderá querer — mas livremente. Ela não é uma força
misteriosa, insondável, incompreensível, ao menos, não encerra mais enigmas
ou maiores do que a faculdade de pensar e a de sentir e, certamente, menos do
que o determinismo com sua oposição contra o sentido íntimo e a convicção
primigênia de todos os homens. Vejo que a viagem ao Rio
é boa. Posso realizá-la. Decido-me a partir para là. Nada de misterioso! A
decisão é minha. Sou livre! livre-arbítrio e princípio de
causalidade A descrição que fizemos
dá-nos igualmente os elementos necessários para responder ao melindre metafísico
dos que julgam que o livre-arbítrio daria quebra à lei da causalidade.
Proponho esta dificuldade assim como a formulou o Sr, Augusto Messer, professor
em Giessen na Alemanha, que neste ponto entra mais no âmago da questão do que
muitos outros. Diz este autor: ...uma
causa produz seu efeito só quando completamente determinada para este efeito,
e, quando completamente determinada, não pode deixar de o produzir. Logo o ato,
chamado livre, para tornar-se efeito, necessitava de uma causa completamente
determinada e, havendo esta causa, não podia deixar de ser produzido. O
argumento, tão nitidamente proposto, tão bem alisado, parece uma sedução
metafísica, e là está o cuidado minucioso com que o químico prepara suas
experiências, para nada faltar na causa, certo de que o efeito se produzirá
infalivelmente, se a causa for perfeita, aí está o crescimento das plantas que
é apenas a resultante de várias causas que o determinam, aí está a vida
sensitiva dos animais com todas suas manifestações, nas quais também
reconhecemos apenas reações, efeitos completamente determinados, aí está
todo o mundo corpóreo, para ilustrar a tese do fisiologista de Giessen, que uma
causa produz seu efeito quando completamente determinada, e que, quando
determinada, não pode deixar de o produzir. Para respondermos ao
arguto oponente, lembremo-nos primeiro qual é a causa do ato livre. A causa do ato, seja da
viagem à Capital Federal, é, de um lado, o objeto, a viagem, com todas as suas
circunstâncias concretas, percebida pela inteligência e atuando sobre a
vontade, do outro lado uma faculdade que tem a possibilidade de se decidir para
a realização do ato. Vejo, posso, quero. Vejo o objeto, posso querê-lo,
quero! O ato tem uma causa completa, o principio da causalidade está salvo. Voltando à argüição
do Sr. Messer, ele não se dà por satisfeito com esta explicação. Ele
pergunta: a decisão para a viagem a Montevidéu e a decisão para a outra a
Buenos Aires tinham uma causa completa, ou não? Se a tinham, como é que não
se realizaram? Se não a tinham, como é que eu podia me decidir para uma destas
viagens, como podia escolher livremente? Sim, como a causa da
decisão para a viagem ao Rio era completa, assim, e sem que nada lhes faltasse,
estavam completas as causas para as viagens às repúblicas vizinhas, mas nem
por isso ara preciso que estas se efetuassem. Atento exame da causa do
ato livre dará a prova e a explicação do que avançamos. A causa da decisão livre
é sempre complexa. Ela contém elementos mediatos, por ex. o agradável do
objeto, inclinações espontâneas na vontade, e um elemento imediato, a
vontade. A causa completa da decisão
encerra pois um elemento do qual dizemos — e prová-lo-emos mais adiante —
que é dele que depende a decisão. Este elemento é a vontade livre do eu. Se,
por conseguinte, a causa da decisão está completamente constituída, o eu,
negando seu consentimento, pode fazer que da causa não proceda o efeito, do
mesmo modo como, consentindo, pode produzir o efeito, i. é, a sua decisão. A causa livre
distingue-se das causas materiais precisamente em que ela contém um elemento
autônomo: o eu inteligente e livre. E' verdade que uma causa
desta ordem não pode entrar numa explicação exclusivamente mecânica da vida
e do mundo, mas esta impossibilidade só prova que aquela filosofia materialista
é falsa. O fato do livre-arbítrio é apenas um daqueles pontos em que o
materialismo de todos os matizes contradiz a resultados evidentes da psicologia. Voltando ao exemplo da
viagem ao Rio: as causas estavam completas para quatro decisões diferentes
(incluindo a de ficar em Porto Alegre). O elemento imediato, a vontade livre,
era o mesmo em todas elas. Todas as quatro decisões podiam ser tomadas, como,
porém, as decisões dependiam do elemento imediato, nenhuma devia efetuar-se. Eis a resposta às
perguntas do Sr. Messer. Supor como ele supõe, que uma causa completamente
constituída deve sempre passar a efetuar-se é supor aquilo que deve ser
provado. Concebida como deve ser
concebida, a causalidade do ato livre satisfaz às exigências da mais rigorosa
metafísica, e os argumentos pelo livre-arbítrio que, em seguida, havemos de
trazer, provam que esta explicação é a única que concorda com os fatos. O erro do Sr. Messer está
numa explicação arbitrária do princípio da causalidade. Este princípio diz:
tudo que principia a existir tem sua causa. O engenhoso metafísico revira este
princípio, e diz: toda a causa produz seu efeito, i. é, quando da parte da
causa nada falta, nem o efeito poderá faltar. Concedemos o princípio
do Sr. Messer para todo o mundo mineral, vegetal, animal, isto é, concedêmo-lo
para todo o âmbito das causas chamadas necessárias. Este seu princípio, porém,
não é uma conseqüência, nem uma aplicação do princípio da causalidade.
Para atacar eficazmente o livre-arbítrio, o Sr. Messer devia provar que é da
essência da causa produzir sempre o efeito, então poderia aplicar esta
afirmação à vontade do homem dizendo: quando a vontade pode agir, ela deve
agir, portanto não é livre. Mas o nosso ilustre adversário fica devendo a
prova da universalidade deste princípio, enquanto nós provaremos que existe
realmente uma classe de causas que, podendo produzir seus efeitos, nem sempre
passa a produzi-los. Todo o efeito tem sua causa, mas nem toda a causa — i. é,
conjunto de circunstâncias, de per si, capaz e suficiente para produzir um
efeito — produz este efeito. O mesmo erro encontra-se
na citada obra de Korkounov, pág. 394. O § 39 desta obra é, a nosso ver, um
exemplo clássico de um ataque contra uma doutrina muito insuficientemente
conhecida pelo atacante. o livre-arbítrio e a lei da
conservação da energia Objetam ainda os
deterministas que o conceito de causa livre está em oposição à lei da
conservação da energia. Dizem: o ato livre não
se produz sem alguma transformação no organismo. A vontade, se fosse livre e
soberana, atuaria sobre o organismo, e comunicar-lhe-ia assim uma energia que
este antes não possuía, como um bola do bilhar dá sua energia a outra bola
que encontra. Com outras palavras, a ação da faculdade espiritual aumentaria
continuamente a soma de energia que está na matéria. E se assim fosse?! A lei da conservação da
energia está provada para sistemas materiais, para os confins entre matéria e
espírito não está provada. O livre-arbítrio está por conseguinte fora desta
lei e ninguém pode, em boa lógica, invocá-la contra a liberdade. Além disso, não é
absolutamente exato que o ato livre deve aumentar a soma das forças materiais.
A conservação da energia e o livre-arbítrio podem conviver em ótima
harmonia. Todo o erro dos
materialistas consiste em supor que, na doutrina do espiritualismo, a alma atua
sobre o corpo como uma bola sobre a outra. Não! Alma e corpo são uma substância
viva. As forças do corpo, latentes ou em ação, são as forças da alma. A
alma pode se servir destas forças, pode dirigi-las, não como princípio que
vem de fora, mas como princípio intrínseco, que com estas forças e a matéria
faz uma só substância. A ação da alma, no ato
livre, referente às forças materiais do organismo, não é, por conseguinte,
criadora de forças novas, consiste apenas em aproveitar as forças jà aí
existentes, ou em transformar em trabalho atual as forças latentes. Ela é semelhante, neste
particular, à ação do dono de uma fabrica, que, sem criar força alguma nos
braços dos trabalhadores, aproveita as que trazem em seus músculos,
dirigindo-as para determinados fins. Autores de grande nomeada
nas ciências naturais, e certamente insuspeitos aos deterministas, como Fechner
e Mach, reconhecem, aliás, que com esta explicação se podem perfeitamente
harmonizar o fato do livre-arbítrio e a lei da constância da energia. a vontade escolhe sempre o bem
maior? Devemos ainda responder
à pergunta, se o homem escolhe sempre o bem maior. Com certeza, não! Quantas vezes, procedendo
muito bem, temos perfeita consciência de podermos proceder muito melhor! O traidor, o perjuro, o
ladrão, o assassino e, em geral, todos que cometem atos moralmente maus, sabem
muito bem que o contrário seria melhor, que escolheram para si o menos bom. Será preciso dar à
pergunta uma outra forma: o homem cede sempre ao motivo mais forte? Nem isso!
Que o comum dos mortais siga em geral o motivo mais forte, concedêmo-lo
facilmente. Mas a pergunta é, se o segue necessariamente, determinado, e isto
é o que negamos. A análise do ato livre
mostrou-nos, como causa do ato livre, o objeto percebido e mais a faculdade
livre, e assim como o objeto mais forte, unido com a vontade pode ser a causa
completa do ato livre, do mesmo modo o objeto menos forte o pode ser. Se o
objeto menos forte existisse só, daria motivo bastante para a decisão, porque
é que a presença de outro mais forte o impediria a ter a influencia de que é
naturalmente capaz? Além disso: se em frente
de dois bens desiguais, sou livre em aceitar ou rejeitar de todo o bem maior,
com mais razão sou livre em trocá-lo pelo menor. Sobre tudo, porém, é
contra a experiência, afirmar que damos necessariamente a preferência ao bem
maior. Ah! Sabemos muito bem que freqüentemente, sobretudo quando porfiamos
para alcançar ou para defender um bem moral, a ação da nossa vontade vai
“na linha da maior resistência" (W. James). Além da nossa experiência
pessoal, temos a história religiosa e profana onde não faltam exemplos heróicos,
sangrentos até de ações realizadas contra os motivos mais fortes. Esta linha
da maior resistência é, aliás, o caminho dos grandes caracteres. decisão ou determinação Decompondo o processo do
ato livre, vimos que passa pelas seguintes fases: percepção do objeto pela
inteligência — deliberação — inclinações espontâneas da parte da
vontade — juízo — decisão — execução. Estudemos ainda em que
esta nossa análise difere da que propõe o Sr. Pedro Lessa, na sua Filosofia do
Direito, na pág. 189. Decompõe-se, diz o Sr. Ministro do Supremo Tribunal
Federal, a volição, nos seguintes elementos: a) motivos; b) escolha entre os
motivos; c} impulso psíquico; d) determinação; e) execução. À parte o que ha de
determinismo na explicação, os primeiros e o último destes elementos
concordam bastante com a nossa análise. Mas o quarto, a “determinação”, o
ponto central de todo o sistema, a chave da abóbada para onde convergem todas
as linhas da argumentação, todas as forças da sua erudição, esta desperta
depois do mais vivo interesse com que principiamos seu estudo, as mais vivas
duvidas. Se há um ponto, em que a doutrina deve ser clara, segura, precisa, é
este, e se não o for, é porque a doutrina é falha. Eis aqui a descrição da
“determinação” que o eminente filósofo do Direito dá. Notemos que o
elemento que precede a determinação, na ordem estabelecida pelo Sr. Pedro
Lessa, é o “impulso psíquico”, o qual corresponde de alguma maneira ao que
nós chamamos: inclinação espontânea da vontade, ao passo que esta
“determinação” devia substituir o elemento que nós chamamos “a decisão
da vontade”, o “eu quero”. Explicando, pois, a
“determinação” escreve o citado autor, pg. 199: “escolhido o motivo, ou
dada a ação de um só motivo, passa-se um momento que liga a representação
antecipada e ideal dos movimentos que vamos realizar aos movimentos reais, que
manifestam no mundo externo a volição. Esse momento é a determinação,
a volição propriamente dita. A análise descobre nessa fase o impulso
motor que se segue à escolha do motivo, que é um resultado desta escolha,
quando há motivos diversos em jogo, e que se segue a um só motivo, quando este
excita, estimula, atua, sem contraste. A determinação, repetimos, é a conseqüência
necessária da escolha do motivo, tem como antecedente necessário o motivo
preponderante, vitorioso; e, portanto, é absurdo descobrir (o delicado
estilista gosta de caracterizar como absurda a doutrina que combate) a idéia
de liberdade na determinação, como absurdo é ligar essa idéia à operação
exclusivamente intelectual da deliberação ou estudo dos motivos. A passagem da idéia ao
ato, do motivo e do impulso psíquico à execução, nem sempre se realiza
imediatamente depois da escolha do motivo. Quando a execução é espaçada, a
determinação se chama resolução, propriamente dita.” Analisemos esta análise. Depois da escolha do
motivo — seja, por exemplo, a presença de um irmão meu no Rio o motivo
porque prefiro a viagem para esta Capital — passa-se um momento que liga a
representação dos movimentos futuros — embarcar para o Norte — aos
movimentos reais. “Um momento liga”.
Mas o momento é tempo. O tempo não liga. Só as coisas ligam-se no tempo. Quem
liga, pois? A resposta é capital, O livre-arbitrista diz “ligo por minha
decisão”. O determinista diz “o momento liga”. Não podemos admitir a
resposta. Se, porém, quisesse, com a palavra momento, significar figuradamente
uma força, devia indicar, analisar, descrever esta força. “Esse momento é a determinação,
a volição propriamente dita” (pág. 199). Nesta proposição
identifica, o distinto filósofo três coisas que, para o determinista,
pertencem a três categorias diferentes: tempo, ação transitiva (a determinação)
e ação imanente (a volição). Com a mesma lógica poderíamos dizer: ,,este
minuto é o tiro de revólver e é a morte de uma pessoa." Este “ligar” é volição,
i, é, ato da vontade. É também determinação. Por conseguinte, a
determinação é ato da vontade. Temos o direito de tirar esta conclusão,
visto que o eminente autor da “Filosofia do Direito”, identificando volição
e determinação, dà as premissas dela. Sendo ato da vontade, a determinação
deve também partir da vontade, e com esta afirmação a doutrina do Sr. Pedro
Lessa já não estaria muito longe da doutrina verdadeira. “A análise",
continua o aludido escritor “descobre nessa fase o impulso motor que segue à
escolha do motivo". Este impulso motor é o
ponto cardeal de toda a discussão, e sentimos que não seja analisado e
descrito com a clareza que sua importância exige. Este impulso que segue a
escolha é, naturalmente, diferente do impulso psíquico, de que depende a
escolha e do qual a “Filosofia do Direito” traz tão minuciosa descrição. A filosofia clássica
consagra-lhe toda a atenção e descreve-o em plena conformidade com os dados da
experiência pessoal e quotidiana. Para ela este impulso é a decisão, não
parte da inteligência, mas da vontade. Depois de ter refletido, quero. Uma pessoa pode
contemplar os motivos durante algumas horas, mas quando, em seguida, toma um
partido, quando se decide, se resolve, quer, ela produz
um ato essencialmente diferente do contemplar. Contemplar é muito mais
passivo do que ativo: querer é ativo só. Contemplar é ver; querer é decidir.
Contemplar é receber luzes: querer é tencionar, é um ato de ordem diferente,
todo subjetivo, que sai do nosso íntimo e que supõe uma faculdade diferente da
inteligência: a vontade. a resolução Falando da passagem da idéia
ao ato, diz a citada obra (pág. 200): “Quando a execução é espaçada, a
determinação se chama resolução propriamente dita.” Na nossa concepção, a
palavra resolução tem um sentido bem claro e definido: decisão autônoma da
vontade para uma ação futura. Mas que pode ser a resolução para o
determinista? Ligação entre movimentos reais e ideais? Não, precisamente
porque no caso de uma execução espaçada estes elementos ficam, por enquanto,
separados, e estão separados no momento da resolução. Impulso? Não, porque não
há coisas que mais nitidamente se distinguem do que um impulso que recebo e uma
resolução que tomo. Impulso e resolução são dois extremos de uma linha
incomensurável Passagem espaçada da idéia ao ato? Ainda uma vez, a resolução
é uma entidade psicológica inconfundível com qualquer outra. Que é a resolução
para o determinista? O determinista não o diz! Quer nos parecer, meus
senhores, que este confronto entre as duas análises deterministas e
livre-arbitrista não deixa dúvida sobre o valor de ambas. retificação de dois erros históricos Os autores que tratam do
livre-arbítrio procuram dar um interesse particular a seu assunto, traçando,
num estudo histórico, a linha que divide os filósofos antigos em deterministas
e livre-arbitristas. Devemos por falta de tempo renunciar a este esboço, por
interessante que seja. Mas, seja-nos licito apontar dois erros que freqüentemente
se repetem nestes trabalhos históricos. O primeiro é atribuir a
Santo Agostinho opiniões deterministas. Não, Santo Agostinho não
foi determinista. Gênios da envergadura do grande bispo de Hippona nem podem
ser deterministas. Este erro, velho de muitos séculos, e defendido
principalmente por Jansenistas, entrou também, modernamente em livros de
autores, sob outro ponto de vista, muito apreciáveis, como do Sr. Pedro Lessa,
de Emílio Faguet, até de Rodolpho Euken. E' um erro de interpretação!
Santo Agostinho não nega a liberdade de praticar a virtude, diz apenas que a
virtude, praticada livremente, mas sem a graça de Deus, é virtude tão somente
natural, pode merecer uma recompensa natural, mas não sobrenatural. Não diz,
que o homem não possa evitar o pecado sem a graça, diz apenas que sem a graça
de Deus de fato cai em muitos pecados. Neste sentido corretíssimo, em harmonia
com a doutrina da Igreja, e quanto ao 2.° ponto, com a experiência de todos os
dias, é que o santo filósofo diz
que toda nossa vida depende de Deus, que a nossa vontade e imprestável, e que
com nossas forças não podemos nada, tirando desta fraqueza a conclusão que o
homem deve fortalecê-la com a graça de Deus procurada em fervorosa oração. Outro erro histórico, e
este de historia contemporânea, é supor que o determinismo seja, hoje em dia,
opinião vitoriosa no consenso dos entendidos. Diz o erudito Pe. Froebes a
respeito da posição atual da questão do livre-arbítrio, o seguinte: “Não
faltam, também nestes últimos tempos, filósofos que com os filósofos dos
tempos passados, defendam a liberdade como fundamento inconcusso da moralidade e
como fato certíssimo, como, p. ex., Renouvier, Maine de Biran, Victor Cousin,
Jouffroy, Boutroux, Kromann, Wentscher, von Rohland, Siebeck, Joel, Bírkmeyer.
Parece até que, como jà se iniciou uma reação contra o sensismo, assim também
se está iniciando outra reação contra o determinismo, como fica patente pelo
próprio tom da controvérsia." E Rodolpho Eucken, o
profundo analisador do pensamento moderno, escreveu para O governo dos
deterministas otimistas: “Há dois fatos que deviam inspirar um pouco de
circunspeção a este respeito: de um lado existe ainda bom numero de sábios
notáveis que combatem o determinismo, e o numero deles parece antes aumentar do
que diminuir; do outro lado o determinismo está longe de gozar nos outros países
a mesma estima como na Alemanha. Assim é rejeitado cientemente e energicamente
pela “filosofia da descontinuidade” na França, onde Bergson inclui a
liberdade corno elemento essencial no seu sistema filosófico.” Embora nulo o numero dos
deterministas práticos, o dos deterministas teóricos não pode ser desprezado.
E' que o determinismo é espontâneo em vários sistemas filosóficos, conclusão
inevitável de premissas muito diferentes, ponto onde se cortam caminhos que
partem de pontos opostos, e filósofos que, aliás, se combatem em toda a linha,
concedem-se mutuamente o determinismo. Lutero nega a liberdade
de praticar o bem, porque não tem cabimento na teologia dele. Os materialistas de todas
as escolas devem negar o livre-arbítrio, porque este supõe, no homem, um princípio
supra-material. O panteísmo, que entende
que o processo mundial seja a evolução de um ser absoluto, deve conseqüentemente
negar a livre vontade individual. A “harmonia
preestabelecida” de Leibniz é incompatível com a noção correta do
livre-arbítrio, ainda que o seu autor sustente a liberdade. Também Kant, embora não
negue a liberdade totalmente, não quer também admiti-la franca e simplesmente
no seu sistema. Sem prolongarmos esta
enumeração fica patente que a propagação do determinismo não está baseada
numa unidade de convicções filosóficas entre
os deterministas. Longe de là! A hoste dos deterministas compõe-se de soldados
de uniformes muito diferentes e que, alias, defendem bandeiras inimigas. O determinismo é como o
ponto de contato de duas espadas cruzadas. Acabamos, meus senhores,
de estudar o livre-arbítrio assim como é em si mesmo, e assim como se reflete
na mente de seus adversários. Sentistes talvez a falta
da competente prova ao lado de uma ou outra afirmação, mas não convinha
antecipar sobre o estudo dos argumentos que fica reservado para outra palestra,
na qual esperamos dar satisfação a todos os desejos. o livre-arbítrio provado pela
consciência íntima Meus senhores! A tese que na reunião
passada foi o assunto de nossa despretensiosa palestra, está ainda reclamando
as provas. O homem, dissemos, possui
a faculdade de se determinar a si mesmo, quando prontos todos os requisitos da
autodeterminação. A determinação vem de dentro. O determinismo afirma: a
determinação vem de fora da vontade. Esta é determinada pelas influências
que atuam sobre ela. Nossas ações e resoluções são a resultante psicológica
destas influências, assim como a linha que descreve o projétil é uma
resultante mecânica de forças físicas. Ambas igualmente necessárias,
passivas. Não! O homem é livre, e
o primeiro argumento desta liberdade, o argumento mais imediatamente evidente,
ao qual o próprio determinista não se pode furtar na vida prática, é a
convicção natural, inata, espontânea que todos os homens têm da sua
liberdade. a convicção da liberdade
Os homens têm a convicção
de possuir o livre-arbítrio. Ora, esta convicção não pode ser enganadora.
Logo, possuímos de fato, o livre-arbítrio, Os homens têm a convicção
de possuir o livre-arbítrio. Tenho a certeza que
posso abrir e fechar a mão, i. é, que o abrir e fechar depende da minha
determinação pessoal, que nenhum motivo, nenhuma consideração me obriga a
preferir um gesto ao outro, que não só posso abrir quando quero — o que
seria pouco — mas que posso querer como quero — e isto é tudo. Esta convicção da
liberdade é a alma de toda a nossa atividade consciente. O guerreiro que no
campo da batalha aceita uma decoração, aceitá-la com a convicção de que foi
ele quem se distinguiu, que sua ação não foi apenas uma resultante fisiológica,
independente da sua decisão. Irritamo-nos contra uma pessoa da qual sabemos que
procedendo mal, podia proceder bem. Que significação pode ter uma resolução
senão a de determinação autônoma para uma ação futura? E uma ação
passada só pode deixar remorso, quando sabemos que praticando-a, podíamos não
praticá-la. Ninguém tem remorso de uma queda, facilmente nos arrependemos de
nos havermos livremente exposto ao perigo de cair. Delibero, porque quero me
determinar, para me determinar conforme a razão, sentindo claramente que a
decisão depende de mim. O pai castiga o filho, porque este não procedeu
como devia e podia proceder. Ninguém quer determinar
por pedidos, conselhos, ordens, mas pedindo, aconselhando, mandando quer influir
para que uma outra pessoa se determine. É esta, de fato, a intenção dos
homens, e esta intenção revela que os homens julgam a natureza humana dotada
de liberdade, e o mesmo se diga dos castigos e das deliberações. Em frente desta convicção
tão universal, tão fundamental, tão elementar, a interpretação que alguns
deterministas querem dar às palavras e aos outros meios de persuasão, como
sejam pedidos, conselhos, castigos, é destituída de autoridade, como também
esta concepção determinista nunca saiu fora do recinto estreito das preleções
filosóficas, nunca se tomou popular. Quem vive a nossa vida de
todos os dias tem esta convicção: sou eu quem me determino para minhas ações,
e tem-na tão forte que uma pessoa, a quem os deterministas concedessem a
liberdade, não a poderia ter mais forte. Esta convicção não é
de ontem, ela é velha como o mundo. Os Santos e os pecadores, assim como as
primeiras páginas da Sagrada Escritura os descrevem, os heróis que canta
Homero, Hamu-Rabbi e os autores egípcios dos “livros dos mortos”, velhos de
milênios, tinham esta convicção como nós a temos. E como é antiga, esta
persuasão é também universal. O homem, como se reflete na literatura de todas
as línguas é sempre uma pessoa livre. Que sentido pode ter um drama sem a
auto-determinação da figura principal? Os únicos que quebram
esta universalidade são uns filósofos, que lembram a palavra de Cícero: não
há absurdo que não fosse afirmado por um filósofo — e ainda é só na sua cátedra
ou na sua mesa de trabalho que estes filósofos são deterministas, na prática
são lívre-arbitristas como todos os outros. esta convicção tem força de
argumento Ora a convicção
universal da liberdade não pode ser enganadora. Este testemunho que todos
os homens dão do livre-arbítrio, de um modo tão constante e tão universal,
tem força de argumento. A consciência da
liberdade é um fato interno, observado imediatamente; manifestado claramente. Não
intervém nenhuma circunstância estranha que possa ser causa de um erro, Os homens puderam
enganar-se sobre o movimento do sol e da terra. O erro pode entrar nas narrações
históricas de fatos afastados de nossa época, até de fatos contemporâneos,
quando não são de observação fácil. Mas sentir-se livre, sentir-se a si
mesmo como causa determinante de seus atos, é um fato cuja averiguação não
necessita mais preparo científico do que o sentir-se cansado, sentir-se com
fome ou com alegria. Cada pessoa é autoridade nesta matéria. Quiséssemos negar
a aptidão de alcançar a verdade num assunto de observação tão fácil e tão
imediata, tão simples e tão direta, então, qual seria a verdade que ainda
poderíamos alcançar ? Quem duvida da liberdade, da qual temos uma convicção
igual à que temos da nossa existência, deve logicamente duvidar de tudo,
entrar nos arraiais do cepticismo extremo. A convicção universal
do gênero humano, autoridade na matéria, é a convicção da nossa liberdade.
Logo somos livres. o determinismo na vida pràtica Dissemos, acima, que a
exceção que os deterministas fazem desta lei universal, é só teórica. Por
necessidade inata, eles tornam sempre a gravitar para o livre-arbitrismo prático,
quando, por um esforço cientifico, instantaneamente dele se afastaram. Com efeito — para
trazer só um exemplo — nada mais comum na vida do que um sentimento de impaciência,
uma pequena irritação contra uma pessoa, cujo proceder nos contrariou, e não
é falar mal de ninguém supor que os deterministas também se irritem de vez em
quando, Mas qual pode ser a
significação da impaciência provocada por uma falta no sistema determinista?
Esta impaciência é um movimento que dirige sua ponta contra uma pessoa que fez
o que não devia fazer, contra uma culpa pessoal. Ninguém se irrita
contra o vento que batendo com a janela lhe quebrou um vidro, irritamo-nos, se
muito, contra a pessoa que teve a culpa disso, deixando a janela aberta, quando
era tempo de a fechar. Nenhum pai irrita-se
contra o filho que quebrou a perna, irritar-se-á entretanto contra o filho que
por descuido culpado quebrou um vidro. No determinismo não há
culpa. Para o determinista não há falta que não devia ter acontecido: para
ele tudo acontece como deve acontecer, nem ninguém faz o que não devia
fazer. Contra quem é, pois, que o determinista se irrita? Mas, responderá ele
talvez, a pessoa que cometeu a falta devia pensar primeiro, para ser determinada
pelos pensamentos. E como podia “pensar
primeiro”, se para tal não estava determinada? Mas, insistirá
ainda o determinista, as palavras de franco descontentamento, são meios de
educação, servem para determinar uma pessoa para, de futuro, proceder melhor. A representação
tem, sem dúvida, valor educativo. Mas a irritação, que é muito mais
um castigo da pessoa irritada do que da pessoa culpada, que valor educativo pode
ter? E que razão de ser, que força de determinar tem aquelas irritações,
muito mais pungentes aliás, que motivos de delicadeza proíbem manifestar? Não, a espontaneidade da
impaciência nos casos aludidos revela claramente a espontaneidade da persuasão
que temos do livre-arbítrio. O determinista que assim se impacienta, lança,
pelo fato mesmo, convencido protesto contra sua própria doutrina. discussão do argumento
precedente Examinemos ainda algumas
objeções que os deterministas levantam contra o argumento que prova o
livre-arbítrio pela consciência íntima do gênero humano. O Sr. Alfred Fouillée
diz na pàg. 88 de seu livro “La liberté et le déterminisme”(5ª edição):
,,Cette conscience de Ia liberté supposerait que nous nous voyons absolument
indépendants: 1º de notre corps; 2° de 1'univers; 3° du principe même de
l’univers.” Se estas três condições
fossem realizadas, saberíamos qual seria o estado da nossa liberdade quando
livres do corpo, do universo e do princípio do universo, ignoraríamos, porém,
por completo qual a nossa liberdade no estado atual das coisas. Sobre a nossa
independência presente, só a consciência presente é capaz de julgar, e
duvidar desta capacidade importa, como jà o dissemos, no ceticismo universal. Surpreendente de
ingenuidade é a argumentação daqueles deterministas que reivindicam para si o
testemunho do gênero humano, afirmando que os amigos que aconselham, as
autoridades que castigam, os instrutores que ensinam, os pais que educam, eles e
todos em geral que querem influir nos seus semelhantes, procedem com conselhos,
prêmios e castigos, porque querem na individualidade do educando criar uma força
motriz que impulsione e determine a este, porque querem formar o caráter de uma
outra pessoa de tal modo e de tal modo modelá-lo que seja determinado para
certos fins. Em resposta, perguntamos
primeiro: todos estes modos de educação combinam com o livre-arbítrio? Sem dúvida,
e melhor do que com o determinismo! O educador quer abrir a inteligência sobre
o bom e o mau, sobre as conseqüências dos diferentes modos de agir, quer
inclinar a vontade do educando para o bom, decliná-la do mal, quer desenvolver
sentimentos nobres, quer criar o costume de proceder bem. Ora a inteligência,
as inclinações da vontade, os sentimentos, o costume são, também para o
livre-arbitrista, as causas objetivas do ato livre, e podemos perfeitamente
dirigir e desenvolver estas causas objetivas, ficando convencidos de que a causa
subjetiva, a decisão da vontade, não é determinada por estas causas, que ela
é apenas influída. Os aludidos meios de educação não provam, por
conseguinte, a convicção do determinismo nos educadores que os empregam. Perguntamos segundo: qual
é o sentido que os educadores, de fato, ligam a estes meios de educar? A
resposta está contida no desenvolvimento que demos ao nosso argumento. De fato
são todos livre-arbitristas. prova tirada da necessidade da
moral A verdade do livre-arbítrio
pode ainda ser provada pela necessidade da moral. O determinismo destrói a
moral. Ora é contra a razão querer destruir a moral. Logo o determinismo é
contra a razão. O determinismo destrói a
moral. Quem nega o livre-arbítrio, nega a base da moral e seus elementos
constitutivos: responsabilidade, culpa, obrigação e sanção. a)
o
determinismo destrói a base da moral A base da moral é a
diferença que distingue qualidades e ações que são o efeito da própria
vontade (no sentido do livre-arbítrio) das qualidades e ações que não
dependem da vontade. Todos os homens entendem que só ações livres entram na
ordem moral. A cor do nosso cabelo, a força muscular do gigante, a fortuna que
cabe por herança, os talentos músicos, poéticos, plásticos que fazem o
artista, o aleijão conseqüência de um desastre, tudo isto não pertence à
ordem moral, mas o uso que o gigante faz da sua força, o modo de gastar a
fortuna herdada, a aplicação, o zelo com que os talentos são aperfeiçoados e
desenvolvidos, a paciência com que o aleijão é suportado, isto é o que
constitui a ordem moral. Qual é a linha de demarcação entre a ordem moral e a
ordem fisiológica? É' precisamente o livre-arbítrio. Todas as ações e
qualidades que classificamos de “morais” dependem do livre-arbítrio, tudo
que não depende do livre-arbítrio não é considerado como dizendo respeito à
moral. Apagando esta linha de demarcação, a moral acaba de ser urna província
separada. As ações morais serão englobadas no número das ações mecânicas,
reflexas, fisiológicas. A mais alta virtude do coração humano, o amor a Deus,
não será mais moral do que as palpitações diurnas e noturnas do mesmo coração. Trinta anos de sacrifício
de uma irmã de caridade estarão, moralmente, no mesmo nível de trinta anos de
vida criminosa de um monstro humano. Esta conseqüência impõe-se
com lógica inexorável. O meu amor a Deus e ao próximo só então é meu
perante a moral quando eu me determino para amar, quando eu quero
este amor. Sendo apenas incutido por forças estranhas, ou resultante da complexão
psíquica, o amor pertence à complexão psíquica, pertence a estas forças, não
a mim. Para ser meu, e para eu ser moralmente bom por causa dele, devo torná-lo
meu, querendo-o livremente, praticando-o livremente. Uma pessoa tem um caráter
muito impetuoso. Este efeito é resultante da complexão psíquica. Reconhecendo
este defeito, combatendo-o, não o tornando “seu”, a pessoa o possui, como
possui a cor de seu cabelo, sem sombra na sua moralidade. Tornando-o seu,
querendo-o livremente, praticando-o livremente, determinando-se para estes ímpetos,
o defeito, antes só materialmente dela, será agora moralmente dela. Liberdade e moralidade
estão entre si na mesma relação como a alma e a vida. Tirai a liberdade, e da
moral ficará só um cadáver. b ) a responsabilidade Sem liberdade não há
responsabilidade. Responder: só pelo que
eu fiz! Dar conta: só pelo que corre por minha conta! Sofrer conseqüências: só
quando meus os antecedentes! Diz o determinista: o que
fizeste é obra da tua complexão psíquica. Tu és a causa. Tu responderás. Mas de que resulta esta
minha complexão psíquica? Da educação? Eu não me eduquei, fui educado. Das
minhas idéias? Tenho as que me foram transmitidas, não tenho originais. Da
minha constituição física? Se esta dependesse de mim, seria melhor! Das influências
sociais, cósmicas? Mas eu não sou nem cosmos nem sociedade, recebo o que me
querem dar. Dos meus costumes? Mas eu não os desenvolvi, nada desenvolvo,
porque me falta a força de me determinar para qualquer movimento. Na constituição
psíquica não há nada meu, não tive vontade livre para dirigir sua formação,
sou apenas testemunha do que, sem mim, em mim se passa, logo também não é
minha a responsabilidade pelos resultados desta complexão. Se minhas não foram as
linhas convergentes, como será minha a resultante? c ) a idéia de culpa Sem livre-arbítrio não
há culpa. O próprio Sr. Franz v. Lizt, fundador principal e enfant terrible
da “União criminalista internacional" tirou esta conclusão no Congresso
psicológico de Munique em 1896, com uma clareza que espantou os próprios
correligionários dele: “Distinguir o castigo preventivo, aplicado aos
criminosos incorrigíveis, do internamento de loucos perigosos, é praticamente
inexeqüível e teoricamente absurdo”. “O criminoso incorrigível não é
responsável” (Zeitschrift für die gesamte Strafrechtswissenschaft, XVII, 81)
“Que os conceitos de culpa e pena continuem a existir nas criações dos
nossos poetas; mas são incapazes de resistir ao rigor da crítica e à análise
científica. Conseqüentemente deve desaparecer o conceito da pena perante o do
tratamento e do internamento, protetor da sociedade. Não há distinção entre
os dois conceitos de crime e loucura” (ibid. 81). A conseqüência da
conferência do Sr. von Lizt foi que muitos juristas saíram da “União” e
um deles, o professor Lammasch, de Viena, dirigiu, em carta aberta, publicada no
“Deutsche Juristenzeitung” (1898 pag. 92), as seguintes palavras ao audaz
conferencista: “Ao negar a diferença entre crime e loucura, entre prisão e
hospício..., destruís os fundamentos éticos do Direito Penal, pondes em
perigo a liberdade pessoal de quem ofende, e, se não bastassem as leis penais,
tornais a justiça dependente das opiniões variáveis dos psiquiatras, pondo-a
em oposição aos sentimentos de justiça, tal como vivem no coração do
povo." Entretanto, não há
negar que, nesta discussão, a lógica está do lado do Prof. Prof. v. Lizt. Sem
liberdade, pode haver loucura; culpa não pode haver. E como no determinismo não
há culpa, também não há obrigação nem dever. d ) a idéia de obrigação
Obrigação pode haver só
naquilo que depende de mim. O leão não tem a obrigação de respeitar a vida
do homem, o homem a tem. Se o leão conhecesse a importância da sua ação, e
se pudesse deixar de devorar o homem, teria a obrigação de o respeitar. Tenho a obrigação de
sustentar minha vida, não tenho a de não morrer. Porque? Que obrigação de
ser alto pode ter quem nasceu baixo, e que obrigação de contar 20 anos quem
nasceu há 15 anos? O determinismo importa numa inversão de todos os valores.
Notai bem, para o determinista, o criminoso não tem mais liberdade de deixar o
crime, o virtuoso de se sacrificar pelo próximo, do que o moribundo de não
morrer, ou a árvore cortada de não cair. A idéia verdadeira de
obrigação inclui necessariamente, metafisicamente, por definição, a
possibilidade de cumprir o que se nos manda. Nenhuma lei pode obrigar o paralítico
a marchar contra o inimigo, nem obrigar a pagar impostos a quem nada possui. Se no determinismo, o
homem não pode cumprir seus deveres, por causa da sua complexão física ou psíquica,
que obrigação pode ter de os cumprir? E se em conseqüência da mesma não
pude deixar de os cumprir, para que ainda falar em dever? e ) a idéia de sanção
Sem liberdade não há
obrigação, nem tão pouco sanção. Castigo só merece quem faz o mal, podendo
fazer o bem; prêmio só quem faz bem, podendo fazer o mal. O próprio Prof. von
Lizt não duvida em tirar esta conclusão: “A concepção determinista
suprime, em frente da pessoa responsável, bem como da pessoa irresponsável, o
conceito da culpa, sustentado na escola clássica e inseparável do livre-arbítrio;
e com o conceito de culpa suprime o de sanção... a concepção determinista
leva a abolir a idéia de culpa.” “Sem livre-arbítrio não há nem culpa
nem sanção”. O conceito de castigo,
“sustentado pela escola clássica”, é precisamente o conceito moral
do castigo. Que o determinista quer reter “conseqüências desagradáveis do
crime”, para com elas determinar o homem a evitar os mesmos, bem o sabemos;
estas “conseqüências”, porém, não têm nada de moral, são meios de
adestramento, pesos numa balança impessoal, são a mola numa engrenagem que
carece de movimento próprio, rebaixa o homem ao nível dos animais. Esta conclusão deve ser
admitida por todos os filósofos, qualquer que seja, aliás, sua opinião em
explicar as bases do Direito Penal. A sanção divina está
do mesmo modo eliminada do sistema determinista. Desaparece, para o homem
determinado, com a idéia de culpa perante Deus, conseqüentemente, a do pecado,
a da satisfação, da redenção pela morte de Jesus na Cruz, das penas do
purgatório e do inferno; a consciência cala-se, a eternidade futura estende-se
sem sombra de responsabilidade para o justo e para o pecador, a morte não
oferece mais motivo de medo ao velho criminoso do que à alma inocente, Deus
preparará a mesma eternidade aos tiranos, aos assassinos, aos ladrões como às
vítimas deles. Os deterministas querem substituir a moral antiga (verdadeira e
sempre nova!) por não sei que progresso da humanidade que tornaria os crimes
cada vez mais raros e o altruísmo cada vez mais sublime. Não nos demoremos
nesta objeção, lembremo-nos só qual o estado atual da moralidade entre
aqueles que não se agarram com toda a força às idéias de responsabilidade própria
perante um Deus que julgarà nossa vida e decidirá da nossa eternidade! Meus Senhores, temos razão
de dizer que o determinismo acaba com a moral? As teorias que nos oferece em
lugar dela, podem ser boas para entreter e animar uma discussão, mas para
fortalecer a vontade contra uma paixão, para temperar um caràter, para dar
motivos de virtude, fortes, vencedores na lida da vida, sobre tudo da vida dos
menos favorecidos, estas ficções sem fundamento não servem mais do que o
orvalho da noite para salvar uma cidade em chamas. a abolição da moral é um
contra-senso
Abolição da moral, eis
a conseqüência lógica do determinismo. Ora esta abolição é um
contra-senso. É um contra-senso supor que a humanidade em peso, durante tantos
séculos se tivesse enganado no ponto de maior importância da sua vida. Fosse
assim, a nossa natureza, tão admiravelmente organizada para a vida sensitiva,
seria essencialmente falha e deficiente para sua vida espiritual. É um
contra-senso supor que o que há de mais nobre, mais elevado, mais generoso na
história, seja devido a um erro, que os grandes descobridores tivessem achado
às costas da América, das Índias, do Brasil na direção de uma resultante psíquica,
que o engano de se julgarem livres nos tivesse dado os Alexandres, Césares, os
Nun'Àlvares, os Ignácio de Loyola e Francisco Xavier. É um contra-senso supor
seja verdadeira uma doutrina que abre o caminho a todas as desordens morais, e
que degrada a moralidade da espécie humana abaixo dos animais. É um
contra-senso o fatalismo que este determinismo inclui, afirmando que toda a vida
do homem, desenvolvendo-se de causas necessárias e sem intervenção de uma
vontade livre que possa influir no curso deste desenvolvimento, seja sua própria
fatalidade. Um espírito superior ao nosso, conhecendo bem a constituição
atual do mundo e todas as combinações dos átomos e das moléculas, devia —
para o determinismo — ser capaz de predizer a vida de todos os homens
presentes e futuros, até aos mais insignificantes pormenores, porque estas
vidas estão todas contidas na combinação presente da matéria, como o efeito
necessário na sua causa necessária. Tal fatalismo é um contra-senso! E um
contra-senso é ainda deixar os homens na lida da vida sem o amparo sequer da
dignidade pessoal, pois como será pessoa um ser que se desenvolve como a
planta, como o animal sem poder de qualquer modo, por determinação própria,
por iniciativa pessoal influir na marcha de seu destino? O determinismo dá com a
moral em terra. Ele toma a pobre natureza humana, amordaça-lhe a consciência,
rebaixa-lhe a dignidade, amolece a energia, tira o sentimento da
responsabilidade, apaga a idéia de virtude, de mística, declara nulas todas as
promessas de recompensa, despedaça a esperança numa vida futura, a confiança
nas próprias forças, e em troca destas verdades dá-lhe a ilusão da
irresponsabilidade de cousa alguma e perante ninguém, e assim desamparado, qual
navio sem bússola, sem velas, sem leme, manda o homem para as tempestades da
vida! Qual será o fim desta tragédia? Perguntai aos magistrados, aos diretores
das prisões, eles vos dirão qual o nível aonde pode baixar o homem que tem
ainda o sentimento da responsabilidade, que conserva ainda, ao menos
teoricamente, alguma moralidade. Quem se atreve a olhar para o abismo que se
abre diante daqueles que acabaram totalmente até em teoria com a moral. Eis as conseqüências
monstruosas, mas lógicas, do determinismo. Sendo falsas as conseqüências deve
ser falso o princípio do qual logicamente são deduzidas. Disse muito bem, sob este
ponto de vista, o velho Kant: Este argumento, deves, logo podes, é
postulado fundamental da razão prática.
discussão: o livre-arbítrio e as estatísticas
Os deterministas,
entretanto, procuram também se valer da ordem ética, para estear nela sua
tese. Baseando-se na
regularidade com que certos fatos morais, tais como matrimônios e suicídios,
se repetem; na regularidade com que parecem depender do tempo, da semana, do
dia; até na regularidade, enfim, com que a curva estatística acompanha as
circunstâncias exteriores, dizem ser impossível que causas indeterminadas
produzam efeitos tão uniformes. Este argumento prova
apenas a falsidade do indeterminismo absoluto, que nega toda a influência dos
motivos sobre a vontade, mas ante o livre-arbítrio, assim como
é sustentado na filosofia clássica,
o argumento das estatísticas é destituído de valor. Com efeito, o homem,
dissemos, governa-se, considerando os motivos. Se — por conseguinte — os
motivos são os mesmos em certos tempos, se mudam conforme certas circunstâncias,
é natural que os atos livres acompanhem este movimento. A determinação do
livre-arbítrio é também influída pelas circunstâncias, se pois as circunstâncias
se conservam iguais, haverá também certa uniformidade nos atos da vontade. Se
uma certa idade é mais própria para o casamento, será nesta idade que haverá
maior numero de casamentos em todos os anos, e ficando constante o numero da
população de um país, não admirará a constância do numero dos matrimônios
celebrados entre pessoas desta idade! Exorbitar do que é razoável seria
loucura, não conseqüência do livre-arbítrio. Nem era preciso, os
adversários recorrerem a fatos da importância dos citados: tinham em casa
exemplos não menos interessantes. A maior parte dos homens levanta-se de manhã
e toma uma refeição ao meio dia. Estes fatos têm certa universalidade, porque
são universais os motivos que convidam a proceder assim. Que os deterministas
suponham, por um instante, uma pessoa dotada do livre-arbítrio, assim como o
analisamos. Esta pessoa deixará de se levantar de manhã, por poder deixar de
se levantar? Ela deixará de tomar a refeição ao meio dia porque é livre de a
deixar? Pelo contrário, por ser livre, ela fará o que a razão e o juízo
aconselham. O determinista deve conceder que a vida dos homens continuaria como
antes, se de repente Deus lhes desse a liberdade do arbítrio. Razão, juízo
etc. guardariam sua força que sempre foi muito grande, mas, de fato, nunca
determinante. livre-arbítrio e confiança mútua
A mesma consideração
prova, que a certeza com que calculamos, prevemos as ações futuras dos nossos
semelhantes, a certeza que temos, de que uma pessoa que ontem foi nosso amigo o
seja ainda hoje, é ao menos tanta no sistema do livre-arbítrio como a que o
determinismo oferece. Este meu amigo, e, em
geral, os homens têm juízo — fato este que não depende do livre-arbítrio
— e este juízo há de necessariamente aconselhar certas ações em certas
circunstâncias, há de aconselhar, por ex., que o amigo que o foi ontem o seja
ainda hoje, que quem quer chegar o mais depressa possível, tome o caminho mais
curto etc. Se, do outro lado sabemos, que uma pessoa tem o caráter assim feito
que faz sempre — ainda que livremente — o que julgar mais razoável, então
será fácil predizer seu modo de proceder, senão com certeza absoluta, ao
menos com muita probabilidade. O mesmo se deve dizer dos
outros motivos que costumam influir nas ações dos homens. A certeza que o
determinista pretende possuir, não é maior, porque, também no sistema dele, são
tantas as causas que influem nos atos humanos, que praticamente nunca permitem
afirmações absolutamente certas. argumento metafísico O argumento de que os
defensores do determinismo fazem mais gala, é o argumento metafísico. Entendem
que o princípio de causalidade, e com ele toda a ciência esteja periclitando,
fosse o ato da vontade um ato livre, i. é, um ato não totalmente e
necessariamente determinado pelos antecedentes que influem na vontade. Já respondemos a este
ataque. Oponhamos, presentemente, o argumento metafísico livre-arbitrista, que
se baseia na natureza da inteligência e que pode ser resumido assim: os
objetos, percebidos pela inteligência não podem determinar a vontade. Logo a
vontade não é determinada. Esta consideração
mostrará que a arma que o adversário está brandindo é uma verdadeira espada
de Golias, capaz de tornar-se fatal para seu próprio dono. insuficiência da inteligência
para determinar Os motivos que impelem
para uma ação são todos apresentados pela inteligência. Dinheiro, honra,
satisfações de todas as espécies, atuam sobre uma pessoa, enquanto esta
pessoa as reconhece como bons, nem mais, nem menos. Logo é na inteligência que
devemos primeiro procurar a força que seja capaz de determinar; é dela que
devia partir a determinação. Os motivos, só enquanto retratados nela atuam
sobre a pessoa, sobre a vontade. Ora, a inteligência
limita-se a propor o objeto bom, a aconselhá-lo, a aliciar a vontade para o
objeto, mas daí não passa, como vamos provar. Qual é o juízo que a
inteligência faz sobre grande número dos objetos que diariamente são
propostos à nossa escolha: uma leitura, uma palestra, um passeio p. ex.? A
inteligência diz: o objeto é bom, mas de pouca importância, talvez de importância
nenhuma. Mas como pode ser possível — neste caso — que uma pessoa fique forçada,
inelutavelmente forçada e determinada por um objeto cuja futilidade é
evidente? Voltando do passeio deveria dizer: vi claramente que não precisava
passear, mas precisava, porque fui determinado. Concedamo-nos a liberdade de
indiferença ao menos diante dos objetos de reconhecida indiferença! Em outros casos estamos
escolhendo entre objetos importantes, mas cujas vantagens não oferecem diferença
muito sensível, este ou aquele trabalho, esta ou aquela carreira, este ou
aquele negócio. Nestes casos, a força determinante de uma das duas
possibilidades não poderia ser maior do que a diferença entre as duas. Ora,
seria um contra-senso dizer que uma diferença, reconhecida como pequena, tenha
força de ligar a vontade da criatura racional. Outras vezes, os objetos
propostos à escolha, são opostos entre si cada um com seus espinhos, cada um
com suas rosas. Perdão da injúria ou vingança, satisfação do egoísmo ou
sacrifício por outrem. A inteligência descobre em cada um dos dois o lado bom
ou agradável (fosse apenas satisfação inferior, contraria à lei moral) e o
lado mau. Neste caso o juízo só pode ser: os dois objetos são bons, nenhum é
necessário. Ainda uma vez: como seria possível que a vontade fosse ligada com
necessidade, por um objeto que reconhece como desnecessário? De mais a mais, onde está
neste mundo o objeto, o bem que não tenha seus quês, seus senões? Não é
tudo, nesta vida, frágil, pequeno, passageiro? Qual o bem cuja aquisição não
custe, cuja conservação não traga cuidados? Qual o bem que de tal modo
satisfizesse, que seu dono não procurasse outros maiores? Qual o bem que possa
satisfazer a um coração que sofre, e qual o coração que não tenha suas
horas de tristeza? Ah! Não é preciso ser santo, nem sábio, nem velho para
entender que até os maiores bens desta terra são bona mixta malis, e
muitas vezes pauca bona mixta multis malis. E se os bens dos mais
favorecidos da fortuna são limitados, que diremos dos outros, dos
reconhecidamente pequenos, dos que encontramos na vida da maior parte dos filhos
de Adão? Ora, se todo o bem é
imperfeito, limitado, mixtum malis, se a inteligência, descobre estas
imperfeições, se ela vê espinhos em todas as rosas, gotas de amargura em todo
o cálice, sombras no brilho de todo o ouro, qual pode ser a razão que obrigue
o homem a abraçar estes bens com necessidade? Se o exercício da vontade
depende da inteligência e esta reconhece que o bem não é absoluto, absoluta não
pode ser a determinação para o bem. Se estou persuadido de que um objeto, por
bom que seja, não é necessário, não pode haver necessidade de o querer. Se
vejo que um bem traz inconvenientes, sua atração não pode ser irresistível.
Não pode ser ilimitada a força que impele para um bem limitado. É este o porque metafísico
da nossa liberdade. A resolução do homem depende do conhecimento que a
precede. Este conhecimento não determina em frente dos bens desta vida. Logo não
somos determinados. Podíamos ainda
perguntar, porque todo o bem terrestre é sempre pelo homem apreendido
como limitado, enquanto o animal não o percebe assim. A razão disto está no
caráter abstrato das nossas idéias. Nós possuímos do bem uma noção
abstrata, universal, maior do que todo o bem que concretamente existe, e sobre
este fundo de quadro projetamos os bens particulares que enchem a cena da nossa
vida. Esta comparação com o bem absoluto reduz o bem particular a suas
verdadeiras proporções, quebra-lhes o encanto, e proporciona a nós a
liberdade. E' verdade que o
ato livre tom ainda outros antecedentes: o costume que não quer sair do caminho
trilhado, a paixão que quer arrastar para seus ídolos, a educação que nos
formou assim como somos, as inclinações da vontade que gravitam em certa,
determinada linha, mas estes antecedentes, qualquer que seja o ponto de onde
partem, passam sempre pela inteligência, como as linhas ópticas pelo centro da
pupila. E lá, na inteligência, são corrigidos os erros e exageros na apreciação
do objeto. Podíamos acrescentar
ainda outras considerações que tornam patente a liberdade da nossa vontade,
mas parece que estas, tiradas da experiência, da ordem ética e metafísica,
chegam para tornar também teoricamente indiscutível uma verdade da qual
praticamente ninguém duvida. imputabilidade Resta ainda considerar a
conseqüência mais imediata do livre-arbítrio para a vida particular, social,
religiosa: a imputabilidade das nossas ações. Podemos definir a
imputabilidade: a possibilidade de atribuir uma ação com suas boas ou más
qualidades a uma pessoa como causa. Esta definição é aceita com só pequenas
modificações, aquém e além da tinha que separa deterministas e
livre-arbitristas. A imputabilidade é um
conceito fundamental. Sem imputabilidade — o Sr. Franz v. Lizt o concede — não
há nem crime nem culpa. Mas em que se baseia? Na doutrina do livre-arbítrio
a explicação é simples, satisfatória, coerente. A imputabilidade e a
responsabilidade — conceitos afins mas não idênticos — são conseqüências
da liberdade. Esta é a raiz donde saem todas as ações imputáveis. A
pessoa tem a consciência de proceder livremente, de poder deixar de proceder
assim, consciência tem de que é ela que se determina para esta ação, por
isto considera a ação como sua, ufana-se dela como de sua própria, quando
boa, envergonha-se quando má, sente que a ação corre por sua conta,
considera-se como causa dela: i. é, reconhece sua imputabilidade, compreende
que em boa justiça deve aceitar as conseqüências da mesma: i. é,
reconhece-se como responsável. Do outro lado, proclamamo-nos como irresponsáveis,
rejeitamos toda a imputação, quando a ação não foi praticada com advertência,
quando efeito de uma coação patológica, ou enfim quando praticada em
quaisquer circunstâncias que tolheram o livre-arbítrio. O seu gênio não é
imputável a Napoleão, mas são-lhe imputáveis as grandes guerras que
empreendeu. O crime não é imputável ao louco, é imputável só ao homem de
razão sã. Por que fazemos esta
diferença entre o louco e o homem normal quando ambos são causa da mesma ação? Porque não são causa do
mesmo modo! O louco não é responsável
porque não sabe o que faz, não conhece o crime que pratica, pois não se pode
chamar “conhecer” aquela impressão mais sensitiva do que racional,
perturbada, louca enfim, que o louco tinha da ação criminosa e das suas
qualidades. A inteligência
consciente é o primeiro requisito da responsabilidade. Todos os homens
reconhecem esta verdade e os códigos penais admitem-na como fundamental. Só um
Xerxes era capaz de mandar fustigar o Helesponte ( Estreito de Dardanelos ) por
lhe ter destruído os navios. A inteligência só, porém,
não basta para tornar a ação Imputável. A inteligência é uma faculdade
perceptiva, ela não produz o seu objeto. Por perceber um objeto, por percebê-lo
conscientemente, em estado normal, em plena posse das minhas faculdades, este
objeto, coisa ou ação, ainda não é meu. Alem do elemento puramente
perceptivo, a imputabilidade supõe ainda um elemento ativo. Para ser meu, é
preciso que eu, por determinação própria, produza a ação, ou que eu me
aproprie do objeto. Para ser uma ação imputável será, conseqüentemente,
ainda necessária a determinação própria, o livre-arbítrio. Um médico observa o
desenvolvimento de uma doença no seu organismo, doença sem remédio, que lhe
vai trazer a morte dentro em poucos dias. É ele, e só ele, a causa de sua doença,
porque ela nasceu no seu organismo, ele é a causa inteligente e consciente,
observa todas as fases do mal que o está devorando. Mas quem lhe poderia
imputar a doença, responsabilizá-lo por sua vida, acoimá-lo de suicida? E por
que não? Porque não faz a doença sua por sua vontade, porque não a quer,
porque a doença não está sob a ação do livre-arbítrio. Causa moral, causa no
sentido jurídico só podemos ser por auto-determinação inteligente. Com estas
duas asas, inteligência e vontade, é que uma ação se eleva acima das ações
mecânicas e puramente fisiológicas, e sensitivas, para as alturas dos atos
humanos. Destarte, a doutrina do
livre-arbítrio é perfeitamente coerente em todas as suas partes, liga-se com
as idéias de imputabilidade, de mérito etc., reflete as idéias de justiça de
todos os homens e condiz com a consciência individual, numa palavra: ela traz o
cunho da verdade. imputabilidade determinista A explicação
determinista da imputabilidade, porém, traz dificuldades insuperáveis. Para o
determinista (seguimos nesta exposição, ainda uma vez, o distinto autor da
Filosofia do Direito) a volição é uma resultante de todos os fatores
particulares que concorreram para a formação do ethos peculiar ao indivíduo;
e conseqüentemente podemos vincular o ato praticado por uma pessoa — como
efeito — a essa pessoa — como causa. Há uma conexão necessária entre o
ato voluntário, o efeito, e a atividade psíquica, a causa.
Afirmar em tal caso que A é o autor de um certo delito, é afirmar a relação
de causalidade. Dizer que o indivíduo A é o autor de um delito é apontar a
verdadeira causa do delito. Eis o que o egrégio Sr. Ministro do Supremo
Tribunal chama a “explicação fácil” da imputabilidade pelo determinismo.
(pág. 257) O que fica provado por
esta dedução é que o indivíduo A é a causa do delito, mas não fica provado
que ele seja a causa responsável. Causa, como o criminoso A no sistema
determinista, qualquer fator mecânico pode ser. Perguntamos: para ser
causa responsável basta ser qualquer causa, basta ser causa não inteligente? Se basta, porque não se
estende a ação jurídica dos magistrados às feras, aos raios, aos incêndios
que fazem tantos mortos? Se, para ser responsável,
é preciso ser inteligente, perguntamos: por quê? Há só duas respostas possíveis
a este por que: ou a inteligência é necessária só para
perceber o que se passa em nós, para tornar os processos psíquicos
conscientes; ou então ainda para dirigir um principio ativo, para dirigir a
vontade. A segunda resposta é a
do livre-arbitrismo. A primeira é a do
determinismo e é inadmissível. Com efeito, se a
inteligência só toma os processos psíquicos conscientes, se só registra, por
que, então não é responsabilizado por sua doença e morte o médico do qual
acima falamos? Por que, em casos análogos, não são imputadas a cegueira, a
surdez, a mudez e quantos males físicos há neste mundo, às pessoas que foram
bem a seu pesar e contra sua vontade a causa inteligente e consciente dos
mesmos, pois estas misérias são o efeito da complexão física de um ser
consciente e inteligente, como os crimes, na suposição determinista o são da
complexão psíquica do mesmo. E não se nos responda: a
inteligência traz a imputabilidade, porque, conforme ela vê as coisas, o homem
é determinado. No sistema determinista, o ver as coisas assim ou assim também
não depende da pessoa. Considerar o lado moral de uma ação, dirigir os
pensamentos, o indivíduo não o pode se não está determinado para isto. Tudo
depende da determinação, nada do homem, por conseguinte, de nada o homem pode
ser responsabilizado. Notai, meus Senhores, que
o paralelismo entre a ação voluntária, assim como a concebe o determinismo, e
a doença que se desenvolve num indivíduo consciente dela, é, em todos os
pontos, perfeito. Num e no outro caso atuam causas estranhas à vontade do indivíduo,
num e no outro caso não há vontade capaz de intervir, num e no outro caso a ação
das causas internas ou externas é consciente e percebida pela inteligência,
num e no outro caso a inteligência é testemunha passiva do fato que acontece,
num e no outro caso, o indivíduo é apenas o terreno no qual as causas opostas
lutam pela vitória, por conseguinte num e no outro caso o indivíduo é da
mesma forma responsável, a ação da mesma forma imputável. Não diga o determinismo
que imputável pode ser apenas o efeito da complexão psíquica, porque logo
perguntaremos qual a razão desta diferença, e se o determinista não quiser
recorrer à intervenção auto-determinante da vontade, i. é, admitir o
livre-arbítrio, há de forçosamente deixar a pergunta sem resposta. A explicação da
imputabilidade pela só causalidade mecânica ou biológica está também em
oposição à pratica dos tribunais. Se um louco mata uma
pessoa, ele será internado para proteger a sociedade, mas ninguém considera
este internamento como castigo, mas só como medida de previdência. O louco é
internado, não é preso; vai ao hospício, não à cadeia; desperta compaixão,
não ódio. E' que o tribunal entende que o crime não foi imputável a esta
causa. Uma telha, arrancada pelo
vento cai e fere gravemente uma pessoa. Vento e telha são a causa próxima
completa do desastre, — ao menos tanto como no sistema determinista a complexão
psíquica é causa dos atos — ninguém, entretanto, imputa-lhes o ocorrido,
todos recorremos à causa remota, ao dono da casa que devidamente avisado de que
o telhado reclamava conserto, não se importou. Por que? Uma provisão de pólvora,
conservada no paiol de um navio, entra, em conseqüência do tempo prolongado
que a conservam, em novas combinações químicas, faz explosão, destrói o
couraçado e faz numerosas vítimas entre os tripulantes. A própria pólvora
foi a causa completa do desastre — tanto como Judas o foi da sua traição —
por que não a responsabilizam, pois, por que recorrem ao oficial de marinha
que, não inutilizou a pólvora no prazo marcado ? E ainda: por que
responsabilizam o oficial e não seus pais, educadores e todo o meio social que
o determinou para semelhante desleixo, causa de tamanho desastre ? Não, a imputabilidade não
tem explicação satisfatória no sistema determinista, enquanto ela se adapta
ao livre-arbítrio, como o gesso ao molde em que foi fundido, porque livre-arbítrio
e imputabilidade são apenas dois aspectos de uma mesma forma. conclusão Com sua liberdade e
imputabilidade a criatura humana entra no plano de Deus. Este plano de Deus
abrange desde toda a eternidade, não só aqueles seres cujo conjunto chamamos
“o mundo”, mas também as regras, as leis que devem governar o mundo. O
plano do mundo é a lei do mundo. Nas criaturas desprovidas
de razão, este plano chama-se lei natural, sua fórmula é esta: realizadas
certas condições, realizar-se-ão certas conseqüências. A pedra, quando lhe
vem a faltar o suporte, cai no chão, conforme as leis que Galileu descobriu. Os
elementos químicos ligam-se em determinadas combinações quantitativas e
produzem aqueles fenômenos que a essência da sua natureza traz. O desenvolvimento das
plantas é o produto necessário da sua constituição interior e das circunstâncias
exteriores de terra, ar e umidade. Mais complicada do que a
das plantas, é a vida dos animais, onde os processos fisiológicos se complicam
com a sensação e a apetência. Mas também os animais são sujeitos à
necessidade inelutável da lei natural. O animal é determinado em todos seus
movimentos, nasce, vive, morre escravo absoluto e incondicional de seu instinto.
Levado pelo instinto, percorre o caminho da sua existência sem poder dar um
passo por própria vontade. Bem diferente é a sorte
do homem. Para o homem, existe também uma lei que corresponde a sua natureza,
mas o homem percebe esta lei com a razão. Esta lei não é uma necessidade, ela
é uma norma; ela não impele mecanicamente, ela obriga. O homem sente o dever
de a observar, mas ao mesmo tempo também a possibilidade de a transgredir;
quando a cumpre, cumpre-a porque quer cumpri-la, por um ato autônomo, por um
ato pessoal. E porque este ato livre de obediência à lei de Deus contém os
elementos mais íntimos da sua pessoa, sua vontade e sua inteligência, por isso
significa perante Deus a entrega da própria pessoa. Esta obediência é o
reconhecimento em ação da soberania do Criador, por isso Deus a recompensa,
como castiga a desobediência e faz depender desta obediência ou desobediência
a nossa sorte eterna, ponto final para onde converge todo o plano de Deus. A lei moral é a lei do
mundo, adaptada aos seres racionais e livres. O valor da liberdade não
consiste, entretanto, precisamente na possibilidade de transgredir a lei, mas na
possibilidade de praticar o bem livremente. Pela vontade livre, as nossas ações
são nossas no sentido mais sublime da palavra, pela vontade livre somos
senhores de nós mesmos, por ela nós determinamos nossa vida e nossa sorte. Deus quis que o homem
trabalhasse seu próprio destino, por isso deu-lhe a liberdade de escolher entre
o bem e o mal, apesar de que esta liberdade traga a possibilidade de transgredir
a lei. A palavra liberdade tem
encantos que nenhuma outra tem. Por causa da sua liberdade, cada homem não é
apenas um ser gregário, um simples exemplar de um tipo comum, uma unidade entre
milhares de outras iguais. Cada homem é, em conseqüência da sua liberdade, um
indivíduo, tem suas feições próprias, é uma expressão personalizada, uma
edição em separado, o irreprodutível da idéia divina do homem, é um caráter. Esta sua personalidade, o
homem a mantém, desenvolve-a, eleva-a até a mais esmerada perfeição, pelo
exercício da sua vontade, ou então a rejeita, deixa-a perecer, pela mesma
vontade. O valor moral do homem, e com este sua sorte na eternidade, depende do
exercício da sua livre vontade. Cada homem é o autor da sua sorte.
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