VI

As formas do Direito

 

§ 21. Direito subjetivo e Direito objetivo

 

I.                    De acordo com a opinião dominante, o Direito objetivo tem caráter imperativo: é considerado uma revelação de ordens e proibições, de determinações e obrigações. Esta opinião se fundamenta, em especial, na teoria das normas, de Binding. Importante conseqüência prática daí resultante é a exigência de prévio conhecimento da obrigação jurídica para que se possa caracterizar o ilícito penal. Esta concepção do Direito como imperativo não é capaz de esclarecer, porém, dois fenômenos:

 

1.      Não esclarece a natureza jurídica da obrigação de reparar prejuízos decorrentes da prática de certos ilícitos, prevista no Direito Civil, que considera indenizável não apenas o comportamento culposo contrário ao Direito, mas também situações que, sem caracterizarem comportamento culposo ilegal, embora não sendo consideradas delito, decorrem de circunstâncias que podem nem ser classificáveis como comportamento humano; é o que se dá, por exemplo, com a responsabilidade objetiva do dono de animal, de linha férrea, ou do proprietário de veículo automotor. Também o enriquecimento ilícito é considerado indenizável, apesar de que nenhum destes fatos decorra de culpa ou até de comportamento humano. Nenhuma destas situações jurídicas objetivas pode ser considerada infração a normas dispositivas ou imperativas.

 

2.      A teoria das normas enfrenta também dificuldades em relação à qualificação de um comportamento como jurídico, pois ele não necessita ser um ato conscientemente adequado à obrigação prevista em lei, mas é considerado objetivamente jurídico, qualquer que seja o motivo que o determine.

Na verdade, a lei, dispositiva e imperativa, não é senão forma secundária do Direito objetivo. Forma primária, original, é uma norma valiosa que caracteriza determinada situação ou determinado comportamento como anti-social ou como socialmente desejado. Sobre esta norma fundamental apóia-se a lei, como instrumento em busca de um fim, como forma secundária e concomitante. O ilícito não é, assim, criado pela lei, mas pela norma valiosa; não consiste na desobediência à lei, com necessária consciência da ilicitude, bastando que haja consciência de tratar-se de comportamento anti-social.

3.      Em conclusão, é impossível construir um sistema jurídico apenas com leis, pois, a partir delas, surgem as obrigações jurídicas que, por sua vez, servem à proteção dos interesses e, assim, possibilitam o conceito de bem jurídico como interesse juridicamente protegido. A partir apenas de leis, jamais chegaríamos a justificar o conceito de direito subjetivo, mais restrito que o de bem jurídico: direito subjetivo corresponde à possibilidade de pretender a proteção de um bem jurídico em seu favor e de exercer esta pretensão. Neste sentido, direito subjetivo pode justificar-se a partir de norma de outra natureza: uma norma que autorize algo. Ao lado das leis, que criam obrigações e protegem bens jurídicos, são necessárias normas permissivas, que transformam bens jurídicos em direitos subjetivos. A concepção que o legislador tenha sobre a natureza humana (vide §33) é decisiva relativamente a sua opção pela realização de uma norma valiosa ou de mera lei que faculta uma ação. Quando ele entende que o interesse individual coincide com a realização jurídica por ele desejada, cria direitos, através de leis que facultam procedimentos; quando, ao contrário, os objetivos por ele buscados conflitam com egoísmos individuais, utiliza-se de leis que impõem deveres.

 

II.                 O direito subjetivo consiste, em essência, no “poder da vontade protegido pelo Direito” (Windscheid) e, quanto à sua finalidade “no interesse juridicamente protegido” (Jhering). De acordo com a teoria de Jhering, autor da “Luta pelo Direito”, a defesa do direito subjetivo constitui um dever moral porque, através dela, defende-se também o Direito objetivo; ao mesmo tempo, corresponde ela à afirmação moral da própria pessoa, à luta pela possibilidade de cumprir seus deveres morais. Contra a posição de Jhering deve ser dito que a luta pelo direito, muitas vezes, não é senão luta por um direito fictício e, desta forma, não está servindo, necessariamente, ao Direito objetivo; além disso, contra o bom direito, que serve à “paz desejada”, podem ser opostas questiúnculas que buscam vantagens insignificantes. O caráter de dever do direito subjetivo torna-se manifesto no Direito de Família e no Direito Público. O pátrio poder corresponde a um conjunto de direitos confiados aos pais, no pressuposto de que os exerçam corretamente. A expressão: “o direito de votar é o dever de votardeixa claro que, pelo menos no Direito Público, os direitos trazem deveres implícitos. A crescente importância do conteúdo obrigacional de um direito privado, não apenas moral, mas também jurídica, é revelada, finalmente, pelas idéias do Direito Social. Quando a Constituição de Weimar proclamou o princípio segundo o qual “a propriedade gera obrigações”,  transformou o direito social de uma obrigação moral em uma obrigação jurídica.

 

III.                

1.      Diversas são as espécies de direitos subjetivos: direitos sobre coisas, ou reais, e direitos das obrigações, ou pessoais; de forma mais ampla, são direitos absolutos e direito relativos. Os direitos sobre as coisas são oponíveis a todos e a cada um: a todos, enquanto não sejam infringidos e a cada um que os tenha infringido. Os direitos das obrigações são exigíveis, desde o início e sempre, de uma determinada pessoa. Os direitos sobre as coisas são fruídos por seu titular, enquanto as obrigações são exigíveis de outrem. Os primeiros oferecem um gozo duradouro e os últimos desaparecem no momento em que são exercidos. O Direito sobre as coisas tem finalidade em si mesmo e o Direito das obrigações é um meio para chegar-se a ele.

Enquanto um sistema jurídico mantém o caráter finalístico do Direito das Coisas e instrumental do Direito das Obrigações, pode ser considerado estático. Foi o que ocorreu no período anterior ao capitalismo. A legislação do inquilinato e o Direito do Trabalho baseavam-se no Direito das Coisas – na locação e no direito à propriedade; o Direito Econômico do artesão fundava-se na propriedade de suas ferramentas; os direitos do proprietário da terra, sobre a servidão de sua força de trabalho. Os direitos das obrigações serviam, assim, apenas como auxiliares para chegar-se à fruição dos direitos sobre as coisas. O consumidor relacionava-se diretamente com o produtor e não através de longa cadeia de obrigações criada pelo comércio  intermediário. A evolução do direito de crédito e do capitalismo transformou o Direito das Obrigações de simples instrumento intermediário em fim da Economia em si mesmo: como resultado, o investimento não vale mais como direito real, mas como direito pessoal, sob a forma de ações, títulos de crédito, contas bancárias etc. A cadeia de direitos pessoais entre dois direitos reais, em razão do comércio intermediário, tornou-se cada vez maior. Não se mora mais em casa própria, mas em casa alugada; não se trabalha mais com os próprios meios de produção, mas mediante contratos de prestação de serviços. Esta ordem jurídica fundada nos direitos de obrigações deixou de ser estática e fez-se inquieta, variável e dinâmica.

2.      Distinguem-se também os direitos subjetivos em privados e públicos, subdividindo-se estes últimos em cívicos e políticos. Direitos cívicos são, de um lado, os direitos à liberdade do cidadão perante o Estadodireitos do homem e dos cidadãos – e, em parte, as obrigações do Estado para com o cidadão – a proteção jurídica, a assistência social etc. Os direitos políticos asseguram ao cidadão a participação nas decisões estatais, principalmente através do direito de votar e ser votado. Para ser beneficiário ou titular desses direitos e obrigações, deve também o Estado assumir a condição de sujeito de direitos, isto é, colocar-se em nível equivalente ao dos cidadãos, respondendo a processos cíveis e criminais ajuizados pelas partes privadas (vide §22).

 

IV.              O direito subjetivo pressupõe o conceito de pessoa. Considerar alguém como pessoa significa reconhecê-la como titular de uma finalidade em si mesma, a cujo serviço está posta a ordem jurídica. A qualidade jurídica de pessoa lhe é atribuída a partir do reconhecimento de sua capacidade jurídica, sendo negada ao escravo, onde exista escravidão. Neste sentido, os homens não sãopessoas naturais”, maspessoas jurídicas”.

 

A questão relativa à realidade da “pessoa jurídica”, em sentido estrito, consiste em saber se, por trás dela, existe alguma realidade anterior ao Direito, como ocorre com os indivíduos. Esta questão é negada pela chamada teoria da ficção, que , por trás da pessoa jurídica, a pluralidade de seus membros (Savigny) ou um subjetivo patrimônio-fim (Brinz).

Ao contrário, a teoria da “realidade da pessoa jurídica” (Gierke) a considera um organismo supra-individual, como unidade substancial formada por uma pluralidade de pessoas. Acontece que nem todas as pessoas jurídicas têm atrás de si uma associação de pessoas naturais, como se no exemplo das sociedades empresariais anônimas. Em verdade, o problema não consiste em saber se, por trás das pessoas jurídicas, há uma realidade substancial, mas se elas, no fundo, são titulares de finalidade própria. Em correspondência com as três teorias relativas aos fins do Direito encontramos a finalidade individualista, a supra-individualista e a transpessoal, manifestadas sob três formas de pessoas com capacidade jurídica: o indivíduo, as corporações e as fundações e institutos.

 

§ 22. Direito Público e Direito Privado

 

I.                    A distinção entre Direito Público e Privado tem natureza a priori. Este apriorismo não significa, todavia, que os homens a tenham reconhecido sempre. A Idade Média não a conheceu, assim como não reconheceu que, em todos os ordenamentos jurídicos, é necessária a coexistência de direitos públicos e privados. O Estado radicalmente socialista reconhece apenas direitos públicos e uma sociedade anarquista reconhece apenas direitos privados. A natureza apriorística não significa tampouco que a fronteira entre o Direito Público e o Direito Privado tenha sido sempre a mesma, nem que estes dois segmentos possam ser separados com nitidez. O apriorismo significa muito mais que qualquer proposição jurídica permite logicamente ser classificada como de Direito Público ou Privado.

 

II.                 O conceito de Direito Público ou Privado foi deslindado pelos romanos levando em consideração sua finalidade: publicum ius est quod ad statum rei Romanae spectat, privatum quod ad singulorum utilitatem (direito público é aquele que se refere ao Estado romano e privado o relativo à utilidade da pessoas). Atualmente a distinção leva em conta a estrutura do Direito Privado como direito entre pessoas equivalentes (Direito de coordenação) e a do Direito Público como direito entre subordinados e superiores.

 

III.               Conforme prevaleça o Direito Público ou o Direito Privado, resultam diversas modalidades de Direito. Ou o Direito Público é a tênue camada que protege os direitos privados como coração do Direito, ou, ao contrário, os direitos privados são apenas um campo cada vez menor deixado à iniciativa privada dentro do sempre crescente Direito Público. A evolução é mais ou menos a seguinte:

 

1.      No Estado feudal da Idade Média e no recente Estado de classes, Direito Público e Privado não eram separados nem distintos. Alguns setores que hoje consideramos direitos públicos eram regulados como privados; por exemplo, as obrigações militares decorriam das relações de vassalagem, as obrigações tributárias eram conseqüência da solicitação do príncipe às classes sociais. Por outro lado, o Direito Privado era, muitas vezes, reforçado pelo Direito Público, como ocorria com as relações de trabalho, fundadas na escravidão do agricultor à terra.

 

2.      A recepção do Direito Romano trouxe consigo rigorosa distinção e separação entre direitos públicos e privados. No Estado Absoluto, com a afirmação da soberania do príncipe em relação às classes sociais, libertara-se o Direito Público de seus vínculos semi-privados. No Estado de Direito, por sua vez, libertou-se o Direito Privado do envolvimento absolutista sob o qual era mantido pelo Direito Público. Liberalismo significa luta pela supremacia do Direito Privado. A partir da Revolução Francesa, a monarquia passou a exercer mandato popular e a propriedade privada foi elevada à categoria de direito inviolável e eterno; o capital, como senhor absoluto, subiu ao trono que o monarca absoluto fora forçado a abandonar. A prevalência do Direito Privado foi traduzida pela Teoria do Contrato Social, que não é senão a tentativa de fundamentar todo o Direito Público no Direito Privado. Aquilo que o liberalismo tentou fazer de forma fictícia, com a teoria do contrato social, quis o anarquismo transformar em realidade: estruturar o convívio humano, sem o poder da autoridade, exclusivamente sob a forma contratual, ou seja, no âmbito do Direito Privado. Mas o liberalismo soube também, na prática, colocar o Direito Público acima do Direito Privado. O conceito de fisco significa que o Estado deve colocar-se no mesmo nível dos cidadãos, como sujeito de direitos patrimoniais. Da mesma forma, é graças à presença do pensamento privatista no Direito Público que o Estado, em suas funções públicas, passa a ser considerado pessoa jurídica (pública), possibilitando a concepção de direitos subjetivos públicos dos indivíduos contra o Estado e deste contra eles. Como conseqüência ainda deste mesmo ponto de vista, o Estado assume a posição de sujeito, tanto no processo civil quanto no penal, como parte processual, em de igualdade com o cidadão. Finalmente, os contratos públicos correspondem também à utilização de categorias de Direito Privado no Direito Público.

 

3.      Enquanto isso se abre um terceiro período nas relações entre Direito Público e Direito Privado: a época dos direitos sociais. Sem dúvida, mantém-se a distinção entre direitos públicos e privados, mas, em lugar de uma ruptura, surgem agora novas regiões jurídicas, como o Direito do Trabalho e o Direito Econômico que, enquanto tal, não podem ser classificados nem como públicos nem como privados, mas são um misto de ambos (vide §33).

 

§ 23. Direito material e Direito formal

 

Também a distinção entre Direito material e formal tem natureza apriorística. Nenhum ordenamento jurídico pode renunciar à concretização, através de suas normas formais, de normas jurídicas materiais – seja na sua aplicação, seja no processo –, todavia nem sempre a distinção é feita corretamente. O processo e principalmente a execução forçada são as formas mais evidentes de manifestação da força e da realidade dos direitos privados. Principalmente no processo de execução torna-se perceptível o conteúdo coercitivo do Direito e o concurso de credores foi considerado como a “pedra de toque da realidade dos direitos”. Esta é a razão pela qual o Direito Romano concebia o Direito como um sistema de fórmulas de petições iniciais, de fórmulas de ações. O Direito material, neste sentido, corresponderia menos a normas de existência e mais a regras sobre decisões.

O pensamento jurídico moderno efetuou rigorosa separação entre direito material e processo. As normas jurídicas materiais não são mais vistas como decisórias, mas como normas de vida. O processo, no entanto, é conceituado como uma forma especial de relação jurídica, paralela à relação de direito material; não é simples orientação a serviço do direito material, mas um conjunto de normas essencialmente independentes. Por isso a relação jurídica processual depende de pressupostos distintos dos da relação jurídica de direito material: enquanto a relação jurídica material, no processo penal, limita-se à questão da culpa e da pena, a relação jurídica processual situa-se entre a suspeita e o julgamento. Não é a culpa que justifica o processo penal, pois este deve decidir sobre ela, mas basta a suspeita de culpa, ou a suspeita pura e simples, para justificá-lo; de tal forma que permanece ele justificado mesmo quando, em seu curso, a suspeita é afastada e a absolvição revela-se necessária. Por outro lado, se a condenação de um inocente é, sem dúvida, um julgamento errôneo, faz ela, apesar disso, coisa julgada, ou seja, torna-se um julgamento juridicamente válido, porque a segurança jurídica exige que, em toda lide, seja pronunciada a palavra final, mesmo quando ela não foi encontrada. Mais forte se revela a distinção do processo em relação ao direito material na resposta à questão relativa à possibilidade de o defensor pleitear a absolvição de réu que sabe culpado. O advogado continua sendo, neste caso, advogado a serviço do Direito; certamente não do direito material, mas a serviço do Direito processual, quando, convencido de que materialmente o absolvido tem culpa, conclui que ele processualmente não tem. Esta independência do pensamento processual não corresponde a algum tardio resultado de refinada capacidade de distinção. Albert Schweitzer escreveu com grande plasticidade em seu livroEntre a Água e a Florestacomo os aborígenes consideram justa a pena quando estão realmente convencidos, da mesma forma que os realmente culpados não se conformam com a sentença, a menos que reconheçam como preponderantes as provas recolhidas.