VII

As tendências da ciência do Direito

 

§ 24. Os períodos da ciência do Direito  [*]

 

Vista em conjunto a evolução histórica da ciência do Direito, observa-se que ela revela sempre, sob formas e nomes diferentes, o mesmo conflito entre formalismo e finalismo...

A tendência formalista na ciência do Direito parte da formulação de uma proposição jurídica, normalmente uma lei, e pergunta: “como devo interpretar este texto, para que corresponda à vontade de quem o formulou?” A partir desta vontade, descobre entãoaparentemente através de puro processo lógicoum sistema fechado de conceitos e princípios a partir dos quais se obtém necessariamente a solução de todas as questões jurídicas, reais ou hipotéticas.

A tendência finalista parteconsciente ou inconscientementenão do texto, mas do “significado”; parte da realidade dos fins considerados valiosos e das necessidades da vida social, espiritual e moral; pergunta, então: “como devo modelar e aplicar o Direito, de forma a servir aos fins da vida?” De acordo com estes fins, soluciona, as inumeráveis dúvidas do Direito formal e preenche todas as suas lacunas.

A primeira orientação, portanto, procura o significado de uma fórmula dada e a segunda procura atribuir significado à fórmula.

Desta oposição fundamental decorrem inúmeras diferenças. A tendência formalista é mais verbal, teórica, passiva, receptiva e conservadora; a tendência finalista é mais realista, prática, crítica, produtiva e criativa. A tendência formalista olha para o passado e procura mantê-lo vivo no presente; a tendência finalista volta-se para o presente e procura abrir caminho para transformá-lo em um futuro vigoroso. O formalismo utiliza, por isso, a Filologia como instrumento de trabalho, procura aprofundar a pesquisa histórica e encontrar na Teologia seu modelo metodológico. O finalismo precisa apoiar-se na Filosofia como intérprete dos fins e valores superiores, utilizando a Psicologia e a Sociologia, no plano das ciências, como seus mais importantes instrumentos auxiliares.

    “Formalismo” e “finalismo” são apenas rótulos e, portanto, termos facciosos, perigosamente aceitos como contraditórios, carregados de errôneas associações de idéias e, no mínimo, de equívocos. Quem hesitar em utilizá-los, poderá falar em verbalismo e realismo, positivismo e racionalismo, historicismo e modernismo, método filológico e teleológico, ou, se preferir sacrificar a flexibilidade e precisão da expressão em favor da popularidade, falar em tendência conservadora e liberal. De qualquer modo, é o jogo dessas tendências, qualquer que seja o nome que se lhes , que traça o rumo da ciência do Direitoquase um milênio; embora em todos os tempos as duas estejam presentes, uma é sempre predominante. Ainda sob a influência delas, e  graças à mais forte ou mais fraca diferença entre elas, revelam-se as características das escolas que, desde o final do período romano, se sucedem na Europa.

 

I.                    No final do período antigo do Direito Romano surge a grande codificação de Justiniano. Pretendia ele elaborar uma síntese do pensamento jurídico desenvolvido até então e, além disso, uma conclusão definitiva para o desenvolvimento da ciência do Direito. “Uma concórdia, uma conseqüência”, como ele concebia sua obra; contradições e lacunas existiriam apenas em um exame superficial. Depois desta obra, para que serviriam, ainda legum interpretationes, immo magis perversiones (as interpretações legais, que são sempre, ao contrário, grandes perversões)?

 

Com a mesma desconfiança com que o absolutismo trata em todos os tempos a ciência livre, seria punível com as penas ali previstas qualquer falsário que pretendesse trabalhar sobre as fontes jurídicas, principalmente a mais importante delas, que era o Digesto, ultrapassando o esforço meramente mecânico. Nesta atitude bizantina – e não, como normalmente se ensina, na autoritária medieval – está a raiz histórica da posterior concepção da jurisprudência comoescrava do legislador”.

II.                 O período mais antigo da nova jurisprudência que foi o início da Idade Média, do século VI ao XI, revelou devota submissão a esta orientação. Preocupou-se, inicialmente, e com dedicação escolar, com a recuperação das ruínas da cultura antiga pelos povos germânicos e romanos, não desenvolvendo especial relacionamento com as fontes do Direito. Não havia escolas de Direito. Os que se preparavam para serjuristas” adquiriam alguns conhecimentos elementares nas escolas de jovens, relativos principalmente à linguagem jurídica e à habilidade retórica, seguindo-se o aprendizado de formulários usuais dos escritórios de notários. Também, que poderiam ganhar os iletrados jurados daquela época com argumentos científicos? Nem havia capacidade lingüística para penetrar no difícil latim das fontes do Direito, em especial no Digesto. Somente a Igreja, porque adotava o Direito Romano, necessitava tratá-lo tecnicamente, como suporte de suas questões crescentes e mutáveis. Daí surgiu naturalmente a referencia à legum interpretationes, immo magis perversiones. Por seu conteúdo sagaz e erudito, as falsificações eclesiásticas, particularmente as famosas pseudo-isidoras, são o único testemunho que possuímos, não tanto dos objetivos científicos e dos resultados, mas ao menos da capacidade científica daquela época. Os demais trabalhos têm caráter meramente mecânico ou gramatical: são extratos, paráfrases, coleções, formulários e vocabulários. isso. Não nos devemos iludir com os freqüentes títulos de iuris periti ou legis doctores, designações retóricas atribuídas aos jurados, de acordo com o gosto da época; eles merecem a mesma seriedade que merecem os meninos que brincam como caciques de tribos indígenas ou generais de bandos mexicanos. Por certo havia verdadeiros mestres da ciência do Direito, calados, todavia, diante de manuscritos secretos.

 

III.               O Digesto de Justiniano, seleção de trabalhos dos juristas romanos, permaneceu desconhecido durante este período. Jamais foi citado entre os anos 603 e 1076. Algum monge, em algum momento e em algum lugar, pode tê-lo encontrado e folheado, mas apressou-se a deixá-lo de lado. Um único exemplar foi conservado e veio à tona no final do século XI, pelo ano 1070, em algum lugar da Itália. Foi um acaso histórico que, para o bem ou para o mal, influencia até hoje os destinos da ciência do Direito; e um acaso subseqüente quis que uma cópia desse manuscrito, ainda hoje conservada em Florença, caísse nas mãos de um homem genial identificado, no início, como sendo o gramático Guarnerius von Bologna, ao qual mais tarde será dado (não se sabe porque) o nome de Irnerius. Ele estudou aquele livro, inicialmente, sob a ótica do filólogo: comparou o texto com o extrato de outro Digesto da época de Justiniano e, com base nos dois, redigiu seu manuscrito, um novo texto, a vulgata do Digesto, que se manteve em vigor até o século XIX. Deste manuscrito originam-se, sem exceção, todas as versões do Digesto.

 

Ler e entender o Digesto era ser jurista. Por isso, nosso filólogo jurista começou a expor os resultados de seus estudos em inumeráveis glosas que revelam extraordinária competência jurídica. Não permaneceu em apenas um livro jurídico. Com grande espanto, podem ser encontrados em quase todas as passagens de velhos manuscritos do Digesto cruzamentos com outros pontos do mesmo ou de outros livros, cuja letra revela que, em grande parte,  procedem, sem dúvida, dele. Estas glosas comprovam que ele conhecia quase todo o Corpus Iuris. Foi ele também que substituiu um extrato das Novelas de Justiniano por seu original; e foi ainda ele que, com seus discípulos, completou o texto do Código, conhecido até então somente em parte. Sobre esse completo domínio de todas as fontes descansa ainda hoje, indiretamente, o conhecimento sistemático do Direito romano.

É significativo para toda a escola dos glosadores, em especial para os legistas italianos, que formaram seu ramo principal, como é significativo também para toda a evolução da ciência do Direito, que, em seu ponto de partida, esteja um trabalho formal de filologia: a descoberta de inúmeros livros antigos e a correção de seus textos com base em outros livros também antigos inauguraram uma ciência cuja tarefa consiste no ordenamento da vida atual. Basta isto para entender que os glosadores tenham ficado presos à forma geral da ciência daquela época: a escolástica; e de fato, bem ou mal, ficaram. Graças a sua erudição escolástica, dominaram as palavras e o significado do Corpus Iuris até seus mais requintados detalhes; graças a sua sagacidade, exploraram a infinidade de conjecturas, interpretações, hipóteses explicativas e distinções; seu espírito sistemáticosobre o qual tantos comentários negativos foram feitos –, revela-se na preferência por tabelas e classificações, bem como na capacidade de sintetizar gigantesco material procedente de diversas fontes, como comprova, melhor do que qualquer outra coisa, o livro fundamental do Direito Canônico, o Decreto de Graciano (de 1140). Mas não falta também o lado negativo das virtudes escolásticas. Eram formalistas: quem queria escrever um livro não o fazia sobre uma série de problemas jurídicos objetivos e coerentes, mas reunia para a discussão diversos pontos de vista. Por isso, suas obras eram classificadas como distinções (distinctiones), questionamentos (dissensiones), casos jurídicos destinados não ao ensino (quaestiones), processos legais (casus), princípios jurídicos (brocardica), contestações (contrarietates) e, em especial, glosas e comentários sobre trechos de livros jurídicos de natureza legal (apparatus e summae). As obras mais importantes desta última espécie são a Suma de Azo (morto em 1230) sobre o Código  e a análise de Acursio (morto em 1260) sobre todo o Corpus Iuris Civilis. Eram sutis: amavam questionamentos e distinções inúteis. Eram pedantes: aplicavam esquematicamente as formas de pensar acima descritas, mesmo quando inadequadas, acreditando que deviam atirar à fogueira dos prós e contras mesmo as opiniões evidentemente indiscutíveis. Acreditavam cegamente na autoridade: assim como a medicina escolástica limitava-se a comentar as antigas obras dos médicos árabes, sem cotejá-las com a realidade, a jurisprudência escolástica limitava-se a interpretar as palavras de Justiniano e dos juristas por ele referidos, escritasmais de mil anos, interpretá-las e aplicá-las a uma situação totalmente diferente. Ignoravam a realidade da vida: normas jurídicas, necessidades, instituições quase não eram mencionadas. Temos assim – ao lado de outros sinais reveladores de um pensamento infantil – o protótipo do historicismo que vive fora de seu tempo, demonstrando, em conseqüência, quase total carência de sentido histórico. A vida segue seu curso e a ciência o dela.

IV.              Quando lançamos a vista à frente, em direção à metade do século XIV, parece que estamos olhando para outro mundo. Fala-se habitualmente da substituição da escola dos glosadores pelos pós-glosadores; mas, em vez de empregar-se esta designação, tão pouco significativa, eles deveriam ser denominados conselheiros, pois são conselhos e pareceres que passam a ocupar o ponto central e, simultaneamente, o ponto mais destacado da literatura jurídica. Como pareceristas, precisavam ocupar-se permanentemente com novas concepções jurídicas, novos relacionamentos e necessidades, e, acima de tudo, precisavam contribuir com sua sabedoria para adaptar o Direito Romano a estas concepções, relacionamentos e necessidades. Daí resultou uma literatura que às vezes incluía no parecer a exegese fundamental do texto e outras vezes nele desenvolvia os princípios fundamentais do próprio texto.

 

Com justiça, o consultor mais famoso foi Bartolo de Sassoferrato, que viveu na metade do século XIV, considerado o jurista mais influente que existiu. Se foi o melhor de todos, como às vezes se afirma hoje, depois de injuriá-lo por tanto tempo, é outra questão; examinadas de perto suas obras, percebe-se que, nos momentos cruciais, ele cita seu mestre Cino da Pistoia, famoso amigo de Dante e restaurador da lírica italiana, um dos muitos juristas poetas – na verdade, tão bom poeta quanto jurista, o que é raro. Na lírica, criou o “novo estilo suave”, famoso por combinar a lírica amorosa do sul da França com a erudição da escolástica italiana, estilo que teve imorredoura consagração na Divina Comédia de Dante; na jurisprudência, foi o mediador entre a cultura francesa e a italiana. De fato, é evidente em suas obras a decisiva influência dos juristas franceses, os doctores ultramontani ou moderni, como eram chamados. Entre estes, em especial, Pierre de Belperche e, um pouco mais antigo, Jacques de Revigny, que viveu na metade do século XIII, o que não é de estranhar, porque, naquela época, a França era a nação culturalmente mais desenvolvida da Europa; as relações sociais e econômicas encontravam-se muito mais desenvolvidas do que na Itália; além disso, o Direito Romano e a escola dos glosadores tinham exercido menor influência do que na Itália; finalmente, a França foi sempre a terra do bon sens e do sentido prático. De acrescentar que a Filosofia ou, como era denominada, a Dialética florescia na França; por isso Jacques de Revigny é considerado o introdutor na dialética na jurisprudência, na Idade Média.

Naturalmente, o estilo destas obras, como o da comédia gótica, com suas alegorias escolásticas, não é nadasuavepara o paladar atual. Em especial, não se encontra nem uma sílaba sobre a consideração realista dos fins da vida, a partir dos quais aqueles homens conduziram a reformulação e complementação do Direito Romano. Temos que inferi-la a partir dos resultados, reconhecê-la por seus frutos, que, por sinal, não foram poucos. Hoje sabemos que os pareceristas criaram grande parte do Direito atual, arrancando o Direito Privado romano dos auditórios ou salas de aula para a vida e desta forma tornando-o aplicável. Não se limitaram apenas a ajustar a parte geral ou as disposições especiais deste ramo do Direito ao pensamento alemão, eclesiástico ou neo-romano, mas, com audácia, a partir daquele tesouro jurídico, reformularam quase todo o Direito Internacional Privado, a teoria das sociedades, os fundamentos da Teoria do Estado, a Teoria Geral do Direito Penal e do Processo Penal, de tal forma que sua criação é conhecida até os nossos dias.

A precariedade metodológica e a limitação medieval à autoridade da cortaram as asas destes pensadores. Em lugar do formalismo escolástico, conhecemos então o finalismo escolástico. Todas as teorias, apesar de novas e não relativas ao Direito Romano, deviam mostrar-se como resultantes do único texto respeitado – o Corpus Iuris. Isto levava a traduções grosseiras de termos jurídicos, que não recuavam ante os mais ridículos significados, de forma a ser difícil distinguir o que resultava de equívoco daquilo que era fruto de intenção, pois as intenções inconscientes muitas vezes assumem forma de equívocos e o desejo se transforma, então, em pai do pensamento. Tudo isso conduzia a um insuportável abuso da dialética; fundamentos falsos ou proibidos eram substituídos por interminável relação de autoridades, glosas e citações, reunidas de forma apropriada ou não. Tudo era largamente discutido, pois a jurisprudência prática precisa ser casuística e a casuística é interminável. Portanto, o método daquela época era escolástico, mas o conteúdo era haurido do grande movimento naturalista que, desde o século XIII, penetra o setor cultural e está para a escolástica como o gótico para o estilo romanonada além de manifestação daquele movimento. Lembremos – para referir apenas um nome importanteRoger Bacon como fundador da pesquisa empírica nas ciências naturais; Guilherme de Occam, na Filosofia, como restaurador do nominalismo; Ekkehart e Francisco de Assis, na Teologia, com o despertar da mística (a interpretação do dogma como necessidade da religiosidade); na escultura, a superação do esquematismo arcaico pela paixão naturalística (apesar de estilizada pelo gótico) na arte de Giovanni Pisano; na pintura, o estilo de Giotto, cuja apresentação de lendas contemporâneas não suportava mais os fundos dourados de outrora; na poesia, o “novo estilo suave” de Cino e na jurisprudência a arte deste mesmo mestre.

V.                 Passado algum tempo, retorna a mesma disputa. A partir do final do século XV, o finalismo escolástico cedeu lugar à escola humanista do Direito, primeiramente na Itália e depois, cruzando os Alpes com a Renascença, na Alemanha e na França; e prosseguiu, a partir do século XVII, com o finalismo racionalista, sob o título de Direito racional ou Direito Natural. Estas duas crises tiveram lugar em meio a violenta luta, com recíprocas ofensas.

 

Lamentavelmente, nesta exposição, não poderemos nos deter no brilhante desenvolvimento (ainda que não isento de críticas) da escola humanista francesa, que descobriu ou ressuscitou, publicou, divulgou e deu à luz, com Cujacio – uma síntese de erudição jurídica combinada com filologia e história, que não seria mais vista até  Mommsen – quase todo o tesouro do Direito pré-justiniano. Entre esta orientação e a que aparece, na mesma época, na Alemanha, deve-se traçar nítida separação. Nãodúvida de que os juristas da recepção, na Alemanha, com a brilhante exceção de Meltzer-Haloander, não contribuíram com nada assemelhado para esta fase de transformação histórica. Foram predominantemente homens práticos, que não desdenhavam adornos humanistas ou dialéticos, mas permaneciam fiéis ao mos italicus, isto é, ao modelo dos parecerista italianos. Ao aceitarem o Direito Romano modernizado e italianizado, possibilitaram sua recepção pela Alemanha, mas a dependência a ele foi tal que as passagens não glosadas não mereceram vigência; apesar de tudo, estavam convencidos de que possuíam o puro Direito “imperial”, que idolatravam como um fragmento da antiguidade clássica. Estes juristas não honraram, de forma nenhuma, seus antecessores. Utilizaram, tal como era, um Direito sem dúvida moderno, porém estranho; com ele quiseram regular os relacionamentos de seu povo, como a propriedade rural, ignorando que estavam subordinando a conceitos estrangeiros relações peculiares de seu povo, o mesmo que fez a arquitetura, ao construir colunatas italianas na fachada de casas alemãs, acreditando estar dominando a antiga arte de Vitrúvio, apesar de não poder adotar o essencial – as proporções da edificação italiana. Fermentou, assim, profunda irritação contra o Direito Romano, que foi alimentada durante séculos e explodiu na guerra dos camponeses e na elaboração do Código Civil Alemão. A recepção do Direito Romano na Alemanha pode ser concebida, por isso, como processo da “jurisprudência de conceitos”, pensamento jurídico equivocado que consiste em elaborar conceitos sem levar em conta suas conseqüências práticas ou apreendê-los em outro lugar e tentar aplicá-los a seus próprios relacionamentos. Por isso podemos colocar os práticos alemães dos séculos XVI e XVII, sob o ponto de vista que nos interessa, no mesmo nível da escola francesa daquela época, da qual eram tão distintos sob outros aspectos: ambos tomam o material jurídico disponível de forma puramente receptiva o Direito Romano e aqui o mesmo Direito, porém italianizado, sem adaptá-lo ou completá-lo adequadamente. É por isso que esta época é classificada como formalista: porque parte, como no tempo dos glosadores, de um texto formulado em outra época pelo trabalho de estrangeiros, sem preocupação com os objetivos atuais. Naturalmente, o formalismo histórico-humanista distingue-se, entre outras coisas, do formalismo ahistórico-escolástico porque este praticamente não considera o presente, enquanto aquele o despreza, por seu antagonismo, para voltar-se ad fontes.

VI.              A outras fontes dirigiu-se a teoria do Direito Natural, que inicia sua marcha vitoriosa com a obra do holandês Hugo Grócio intitulada De iure belli ac pacis, de 1625. O pensamento jusnaturalista não estava morto, mas aponta-se Grócio como pai do Direito Natural porque foi ele quem o colocou a serviço da aplicação do Direito, a serviço da prática, em primeiro lugar, no setor mais carente do Direito Positivo – o Direito Internacionalrazão pela qual, até hoje, especialmente fora da Alemanha, o Direito Internacional permanece mais estreitamente ligado à Filosofia do Direito do que qualquer outro; colocou-o depois a serviço do Direito Penal e mais tarde aindagraças a seus discípulos – do Direito Civil.

 

Se quisermos apreciar a época do Direito Natural sob o ponto de vista aqui considerado, será necessário distinguir cuidadosamente entre a Filosofia do Direito Natural e o Direito Natural propriamente dito. Aquela parte da hipótese de que o Direito se fundamenta na natureza racional do homem ou, em outras palavras, em sua natureza, fonte incondicional em todos os tempos e lugares. A partir de Kant e Montesquieu, esta Filosofia foi superada e substituída pela crítica da razão e a Filosofia do Direito do século XVIII. A primeira demonstrou que a razão prática contém apenas formas e categorias e não princípios práticos com algum conteúdo. A segunda entende que todo o Direito é criado sob determinadas condições históricas, em determinada época e por determinados homens, não existindo, portanto, o Direito tal como é apresentado pela Filosofia do Direito Natural.

Fica, porém, sem resposta a pergunta sobre o que seja aquilo que inumeráveis tratados equivocadamente designam por ius naturae. O problema foi colocado no século XVIII: estudo divulgado naquela época por um tal Desing, com o significativo título “A larva ínsita no Direito Natural”, sustenta que os princípios jurídicos da razão, considerados eternos, não são senão fragmentos do Direito histórico revestidos por postulados jurídicos modernos. Cem anos mais tarde mostrou Gierke, como era de se esperar, que neste pretenso Direito Natural supranacional estava embutido sólido núcleo de idéias jurídicas germânicas que haviam sobrevivido vitoriosamente na disputa com o Direito Romano. Se esta tese não foi considerada suficiente, deve-se ao fato de que os doutrinadores não estavam familiarizados com a idéia de um conteúdo objetivo para o Direito Natural: acreditavam sinceramente que aquilo que a experiência da vida e o contacto com as necessidades modernas lhes haviam ensinado podia não apenas ser demonstrado, mas também ser fundamentado pela especulação apriorística. Por isso tais considerações praticamente não são encontradas nem nas deduções dos jusnaturalistas nem nos pós-glosadores.

Este foi, portanto, o período do finalismo racionalista, distinto do finalismo escolástico em razão da substituição da autoridade determinante do método: em lugar de um livro, a ratio scripta da lei romana, aparece a lei eterna da razão humana ou aquilo que se entende como tal. Confirma-se outra vez a “força criadora da ilusão”: graças a seu suposto significado metafísico, o conteúdo prático e regional daquelas idéias tornava-se convincente e vigoroso. Sem esse conteúdo regional, o Direito Natural não teria conseguido ser aceito como fundamento ou orientação em legislações atuantes e progressivas como a codificação prussiana, a francesa e especialmente a austríaca. Foi também esse mesmo conteúdo que credenciou o Direito Natural a servir como fonte para o juiz na aplicação e complementação do Direito positivo.

No período do Direito Natural, foi finalmente quebrado o dogma segundo o qual toda a decisão judicial deveria decorrer da aplicação de uma lei ou de um costume: apareceu, pela primeira vez, ao lado dessas duas fontes, uma terceira e nela a idéia de valor no sistema jurídico. A esta fonte devemos o extraordinário progresso da teoria, da prática e do íntimo relacionamento entre ambas; em especial, a ela devemos a elaboração das “partes gerais”, cuja idéia e conteúdo atuais, em boa parte, foram produzidos no século XVIII. O Direito privado, o usus modernus pandectarum, foi modernizado e tratado cientificamente. Graças ao Direito Natural, o Direito do Estado e o Direito Internacional Público existem hoje como ciência. Percebe-se em seu conteúdo como o Direito Natural prestou-lhes extraordinário serviço. Foi ele que mostrou aos homens as cadeias que lhes eram imposta e ensinou-os a sacudi-las; lutou, em nome do inalienável direito do homem à liberdade, contra a servidão à gleba e a vassalagem dos camponeses; contra a submissão da mulher ao egoísmo dos homens; contra o aprisionamento dos citadinos à prisão dourada das corporações. Minou o absolutismo dos governantes e o relacionamento feudal. Lutou, com as armas da seriedade e do escárnio, contra a opressão da liberdade espiritual pela Igreja. Protegeu a pessoa face ao abuso e à arbitrariedade policiais. Proclamou a idéia do Estado de Direito. Aprimorou profundamente o Direito Penal, lutando contra a arbitrariedade judicial. Organizou o rol dos tipos de delitos. Eliminou, por serem incompatíveis com a dignidade humana, as penas corporais de mutilação, a tortura no processo criminal e a perseguição às bruxas.

Em contraposição a estes benefícios, afirmou-se que os defensores do Direito Natural, com fundamento exclusivo nesta fonte, teriam desprezado as demais, especialmente a lei. Esta freqüente afirmação foi feita por toda a Reforma, sem excluir Savigny e Jhering, mas é falsa. Os jusnaturalistas teriam conscientemente desprezado o Direito vigente se infringissem uma regra hoje, aplicando-a novamente amanhã. Mas não o fizeram; e se tivessem feito, não mereceriam mais o nome de juristas. O que fizeram foi, com fundamento no Direito Natural, não considerar válidos princípios jurídicos do passado, contrários à cultura do presente, mesmo que o Estado não os revogasse expressamente. Este fundamento de revogação que hoje não reconhecemos como correta caracterizava um critério extremamente vago. Mas não fazemos outra coisa quando ensinamos hoje que uma lei perde sua vigência não apenas quando é revogada por outra, mas também em razão do Direito consuetudinário, o desuso e a revolução. Devemos ser incondicionalmente gratos à teoria do Direito Natural, entre outras coisas, porque, graças à influência que exerceu sobre a legislação e a prática jurídica, livrou o século XIX  do escândalo da aplicação literal da ordem de penas corporais e tortura de Carlos V.

Quão pouco o Direito Natural era inimigo da lei pode ser inferido a partir do fato de que desta – como filha do Estado Absoluto – esperava ele sua salvação através da codificação, com a qual festejou os melhores triunfos. Em seguida, porém, tornou-se supérfluo e, onde a codificação não prosperou, podia fracassar. A partir dele esperava-se encontrar a lex legum, o sólido princípio para o confuso Direito em geral; ao contrário, gerou-se maior insegurança jurídica.

A falta de análise metodológica, a contradição entre a Filosofia do Direito Natural e o Direito Natural em si mesmo, buscaram vingança. No momento em que a consciência jurídica foi apresentada como tranqüila fonte universal válida para o Direito, prevalecendo sobre o paciente papel da voz da natureza e pondo por terra todas as barreiras da arbitrariedade, tudo passou a vacilar. Os dois sistemas, aparentemente construídos sobre a natureza, evidenciaram sua flagrante contradição por estarem, em verdade, apoiados na opinião subjetiva. A Revolução Francesa encarregou-se de mostrar ao povo e a seus líderes como as exigências da razão podiam, a final, conduzir ao desencadeamento de delírios. Cansou-se de tentar melhorar o mundo; tentou-se encontrar fundamento no que era ou tinha sido (no passado) e, assim como a época da Filosofia do Direito Natural foi substituída pelo Humanismo, este foi substituído pela época da História.

VII.            A escola histórica alemã, cujo programa foi preparado por Savigny, tinha em seu tesouro ideológico contribuições de pensadores e pesquisadores franceses e ingleses do século XVIII, como Montesquieu e Voltaire, Hume e Burke, assim como da Filosofia alemã contemporânea, principalmente de Schelling. Montesquieu, em 1748, no “Espírito das Leis” concluíra que este não pode ser entendido como uma ordem arbitrária originada por uma cabeça criativa, mas – nas palavras com que ele inicia sua obra imortalcomo les rapports nécessaires, qui dérivent de la nature des choses (relações necessárias que derivam da natureza das coisas). Natureza, para ele, correspondia às condições físicas da vida, o clima, a qualidade da terra e às manifestações humanas, sob a forma de regime econômico, densidade demográfica, bem-estar, regime de governo, organização militar, religião, costumes e espírito do povo; a repercussão desses fatores  sobre o Direito foi examinada na obra dele.

 

Savigny (cuja personalidade infundiu em seus inumeráveis discípulos simultaneamente amor e respeito, mas cujo talento de historiador e jurista não conseguiu ocultar por muito tempo a fragilidade de sua concepção filosófica) ignora essas repercussões e, dentre todos os fatores, reconhece apenas o espírito do povo que, sob a forma de Direito consuetudinário, explicaria a gênese do Direito; esse seria o único fator, embora cientificamente inútil porque inapreensível. Assim a teoria de Savigny revela-se romântica; mais precisamente, um formalismo romântico. Trata-se, na verdade, da vulgarização da teoria do desenvolvimento de Schelling – a evolução do Direito corresponde apenas a uma transformação intrínseca, sem objetivo e sem significado. A deficiência desta concepção deve ser atribuída à cega rejeição do Direito Natural, com a qual, sem nenhuma palavra de justificação, foi rechaçada toda a Filosofia do Direito. Isto acarretou a ruptura em relação a qualquer consideração finalista ou valorativa e a recaída no formalismo.

O segmento romanista encontrou no texto do Corpus Iuris a forma que interessava aos pesquisadores; o segmento germanista encontrou-a, predominantemente, no texto das leges barbarorum, nos livros de Direito, no Direito consuetudinário, tal como havia sido formulado, e que, portanto, era acessível pelo método filológico e não pelo sociológico, a partir do qual era tratado como se fosse uma lei. Estas formas eram apreciadas menos com os olhos de jurista e mais com os de historiador, o que era também fruto do romantismo, que considerava todas as ciências como históricas.

A influência de Montesquieu foi também importante porque dele foi recolhida a teoria da separação dos poderes, de acordo com a qual o juiz deveria aplicar somente normas jurídicas elaboradas por outro poder.

Todas essas influências contribuíram para que a atividade jurídica fosse considerada puramente cognitiva excluindo-se qualquer valoração ou volição e, relativamente à legislação, levaram a considerar “arbitrárias” leis que não se limitassem a relacionar direitos; foram considerados “não científicos” a doutrina e o trabalho acadêmico que não se limitassem às codificações trazidas ao mundo. Estes foram os pontos que se tornaram fundamentais no programa e, ao mesmo tempo, os únicos que nunca foram rejeitados. Na Dogmática, o formalismo histórico romântico conduziu, de um lado, ao purismo, ou seja, à exitosa tentativa de restituir ao Direito Romano, na medida do possível, sua forma antiga e ao Direito germânico sua forma medieval; de outra parte, chegou-se à interpretação puramente lógica da “jurisprudência de conceitos”, indiferente às condições sociais do momento, que Puchta, discípulo de Savigny, desenvolveu. Também na História do Direito imperou o puro formalismo, que rompeu com o relacionamento entre Direito e Cultura e, de forma anárquica, brecou a evolução, contrariando até a romântica teoria do espírito do povo; daí resultou, na Alemanha, a separação que existe ainda hoje entre a escola germanista e a romanista. De um modo geral, a conseqüência foi o completo divórcio entre teoria e prática, de tal forma que a teoria rejeitou a prática e esta se tornou anticientífica. A meticulosa crítica das fontes do Direito, bem como a sutil elaboração de conceitos, devem ser lembradas como dados positivos, como compensações ao tratamento governamental anterior a 1848, orientado rumo ao poder quase ilimitado.

Felizmente o futuro da ciência jurídica alemã foi confiado a outros homens, menos aclamados pelas honrarias da posteridade, mas que, por isso mesmo, merecem, ainda mais, toda a nossa simpatia. Referimo-nos ao círculo de Leipzig, aos antiquários da história do Direito, como Haubold, Biener, Wenck, Hänel e Heimbach, que não pesquisavam em busca da vitória dogmática, mas por exclusiva disposição de conhecer; ao lado deles, o grupo dos pioneiros da verdadeira interpretação histórica no Direito comparado, como Gans e Mittermaier; os teóricos do Direito Mercantil, como Einert, Liebe e Thöl, que souberam abeberar-se nas fontes da vida econômica; os homens do Direito regional vigente, por isso mesmo os melhores juristas daquela época, como Koch e Wächter; também os herdeiros da cultura jurídica do século XVIII, Thibaut e Gönner, com sua inteligente pregação sobre a necessidade de renovar a legislação; finalmente, e acima de tudo, os criminalistas e civilistas apoiados na filosofia de Kant e Hegel – os orgulhosos Feuerbach, Grolmann e Kierulff. Nenhum destes grupos – o que infelizmente não podemos demonstrar aqui de forma convincente – deixou de considerar a escola histórica como um erro e, por isso, de combatê-la, muitas vezes em exposições confidenciais ou em estudos que permaneceram compulsoriamente inéditos, como o magnífico discurso de Wenck sob o títulode misticismo iurisconsultorum”. Todas estas tendências representam, em um ou outro sentido, uma contra-corrente finalista na maré alta historicista.

VIII.         Quando, na metade do século XIX, a atmosfera romântica fez uma pausa realista, estas correntes foram lentamente chegando à superfície; a nova escola histórica, ainda hoje dominante, pode ser entendida como um misto de elementos formalistas e finalistas, o que confirma a construção histórica aqui exposta. Toma dos inimigos dos antigos historicistas a concepção da ciência do Direito como disciplinaprodutiva” e prática, enquanto busca, com os historicistas, meios para chegar a estes fins, exclusivamente através da construção conceitual. A decadência da Filosofia e da Teoria do Conhecimento daquela época não permitiu que se percebesse a contradição que se ocultava; ao contrário, continuou-se a ver na pesquisa histórica o único instrumento adequado e suficiente para a formação dos juristas, ignorando as importantes perspectivas psicosociais. Com todas estas tendências, o programa da escola encontra-se nas obras da segunda fase de Rudolf Jhering, principalmente em seu famoso estudo programático de 1856/57, intitulado “Nossa Missão”. O mais impressionante jurista alemãomuito maior que seus contendores Gerber, Wächter, Bekker, Brinz; e muito maior do que Dernburg, Windscheid, Baer e Unger – deixou sua marca no pensamento jurídico alemão daquela época, da mesma forma que Bismarck marcou o pensamento alemão em geral, incluído o pensamento do próprio Ihering. Exatamente porque hoje, por inúmeras e boas razões, o nome de Ihering empalidece na Alemanha, enquanto os países latinos e eslavos admiram-no como figura central da nova ciência do Direito, queremos reivindicar para ele o lugar de honra no coração dos juristas alemães ainda ocupado por Savigny. Certamente seu coração turbulento não lhe permitiu deixar nenhuma de suas grandes obras amadurecer até o fim –  movido por um impulso fáustico, lutava sempre por superar-se; as flechas daquele frísio quase nunca atingiam o alvo, pois ele pensava na noite para a caça e a aventura. Foi imensa, todavia, sua influência, como grande orador, sobre os poucos juristas famosos reconhecidos como escritores. Ele não atacou com decisivo êxito a antiga tendência historicista (que inicialmente seguira e defendera em um texto publicado sob forma anônima e que por isso permaneceu desconhecido), como também, em sua terceira fase, em Scherz und Ernst (De Brinquedo e a Sério), combateu a nova escola histórica, obra sua, com a mesma paixão inexorável. Aqui, separou os elementos históricos e os conceitos jurídicos em realistas e finalistas, incluindo o “interesse” no direito subjetivo e o “fim” no direito objetivo. Com este trabalho, de penetrante auto-revisão, preparou a terceira forma de finalismo – o finalismo metodológico.

 

O movimento do Direito livre significa – não menos no estrangeiro do que na Alemanha – completo e sistemático desenvolvimento de seu pensamento que a todos arrebata – sem excluir aqueles que o combatem. O conteúdo metodológico há de proteger esta nova forma de finalismo do destino de seus predecessores escolásticos e racionalistas, porque permite reconhecer as fronteiras e os perigos do finalismo, e, desta forma, ensina a proteger seu fecundo conteúdo como duradoura realização.

 

§ 25. O positivismo jurídico

 

Merecem especial tratamento as duas últimas épocas do desenvolvimento da ciência do Direito: o positivismo jurídico e o movimento do Direito livre.

I.                    O positivismo jurídico é a corrente da ciência jurídica que acredita ser possível encontrar resposta para todas as questões do Direito a partir do Direito positivo, utilizando-se exclusivamente de instrumentos intelectuais, sem recorrer aos valores.

 

II.                 Este positivismo jurídico não se orienta somente por princípios lógicos, mas principalmente por princípios jurídicos.

 

1.      É proibido ao juiz criar o Direito. De acordo com a teoria da divisão dos poderes, esta missão é exclusiva dos representantes do povo. Montesquieu não cansa de repetir que a tarefa do juiz não é em nada criadora, mas exclusivamente reprodutora; a sentença não deve conter nada além do exato texto da lei; o juiz deve ser tão-só aquele que pronuncia as palavras que ela contém, um ser inanimado que não pode atenuar nem sua validade nem seu rigor. Deve apenas declarar a sanção que a lei prevê para o fato e para isso não necessita mais do que de seus olhos. Curiosamente, esta forma de autômato jurídico foi por ele construída exatamente na Inglaterra, o país da judge-made-law.

 

2.      É também defeso ao juiz negar-se a declarar o Direito, como está expresso no art. 4º do Código Civil francês: “O juiz que se recuse a proferir a sentença sob o argumento de que a lei é omissa, obscura ou insuficiente, pode ser processado por denegação de justiça”. A ciência do Direito é uma ciência prática que não pode, diante de exigências práticas, alegar que ainda não encontrou solução para o problema proposto; em relação a questões jurídicas, é vedado o non liquet

 

3.      A proibição de criar o Direito e de denegar justiça são conciliáveis somente a partir de um terceiro pressuposto: a lei não tem lacunas ou contradições e é suficientemente clara; ou, mesmo partindo de uma lei lacunosa, contraditória ou não clara, é possível, por meios absolutamente racionais, chegar à decisão unívoca da questão jurídica proposta. É o postulado ou a ficção da completude, senão da lei, pelo menos do ordenamento jurídico.

 

III.               Para lograr uma decisão unívoca apesar da incompletude da lei, a ciência jurídica utiliza a hermenêutica. Estranhamente, vale-se esta de inúmeros pares à sua disposição no processo de interpretação, sem  indicar qual dos elementos que o integram deve ser empregado: o gramatical ou lógico, a interpretação extensiva ou a restritiva, a analogia ou o argumento a contrario. O juiz precisa escolher entre eles, auxiliado pela ratio legis (método construtivo) ou pela ratio iuris (método sistemático). É inegável, por outro lado, que o jurista pode extrair da lei mais do que o legislador conscientemente nela quis colocar; neste sentido, “a lei é mais inteligente que o legislador”. Por isso, a interpretação jurídica não consiste em apenas repensar o que foi pensado – como faz a filologiamas consiste em levar às últimas conseqüências aquilo que foi pensado. Assim a teoria positivista da interpretação sai de seus próprios limites: porque nenhum sistema jurídico é construído com fundamento em um único fim comum, a interpretação da ratio iuris oculta necessariamente uma valoração pessoal do juiz.

 

IV.              A ciência jurídica positivista não está isolada, no mundo das ciências, ao utilizar este método: a teologia tem a mesma pretensão quando se limita ao estreito campo do biblicismo, pretendendo resolver todas as questões religiosas pela simples interpretação dos livros sagrados.

 

BIBLIOGRAFIA: Radbruch em Archiv für Sozialwissenschaft und Sozialpolitik (Arquivo de ciência social e ciência política), tomo IV, 1905.

 

§ 26. O movimento do Direito livre

 

I.                    Baseava-se a teoria positivista da interpretação no princípio jurídico da completude do ordenamento jurídico elevado à categoria de postulado, de onde decorria, para o juiz, a proibição de denegar justiça e criar o Direito. Esta fundamentação levou o movimento do Direito livre a demonstrar, com argumentos lógicos e psicológicos, que a completude da lei não passa de um postulado ou ficção. Por certo, a interpretação pode entender a lei melhor que o legislador a entendeu, mas é uma ficção imaginar que a lei seja não mais inteligente que o legislador, mas também onisciente, apta a responder a qualquer questão jurídica possível, apesar do surgimento de novas descobertas tecnológicas, antes inimagináveis. Utópico e desagradável é conceber o juiz simplesmente como um sujeito cognitivo, mero autômato jurídico, simples servidor do Direito positivo, sem reservar-lhe qualquer possibilidade de valorar, de manejar a justiça e a equidade, vendo-o, portanto, não como um servidor da justiça, mas apenas como um escravo da segurança jurídica. Essa concepção, que pretende corresponder exclusivamente à lei e sua lógica, é contraditada pela própria lei, uma vez que o legislador, dentro de determinados limites, atribui ao juiz competência para a descoberta criadora do Direito, mediante a adoção de cláusulas gerais como a equidade, a boa e os bons costumes. Continua protegida a auto-suficiência formal da lei; apenas, respeitadas determinadas limitações, a servidão do juiz à letra fria da lei é compensada pela possibilidade de apreciá-la sob a perspectiva do valor. Não se pode desconhecer que a ficção da unidade fechada do ordenamento jurídico e a negação da possibilidade de o juiz criar o Direito pretendiam conseguir segurança contra a possível alegação prematura de lacunas da lei e contra a prematura ação criadora do Direito pelo juiz. Inegável, no entanto, é que o conceito de unidade fechada da lei não passa de ficção e dá margem ao surgimento do movimento do Direito livre.

 

II.                 Ao reconhecer as lacunas do Direito, o movimento do Direito livre reconhece também a competência do juiz para preenchê-las. Ao contrário do que seus opositores costumam afirmar, não autoriza o juiz a sobrepor-se à lei; exige a conformidade da sentença à lei, negando apenas que a decisão seja mera dedução da lei. Não pretende criar novo Direito para o juiz, mas apenas conscientizá-lo da necessidade de algo que ele sempre fez inconfessadamente, talvez sem dar-se conta: colocar suas forças a serviço da complementação da lei.

 

III.               As diversas correntes do movimento do Direito livre coincidem quanto ao pressuposto da existência de lacunas na lei e à negativa da liberdade de apreciação valorativa pelo julgador. Discrepam, todavia, em relação ao método de preenchimento das lacunas, para o qual apresentam diversas alternativas.

A luta contra a jurisprudência de conceitos iniciou-se com Jhering em sua obra “O fim no Direito”. O título Movimento pelo Direito Livre e a unificação, sob ele, de diversos posicionamentos até então isolados, resultou de um folheto publicado em 1906 sob o pseudônimo de Gnaueus Flavius com o título “A luta pela ciência do Direito”, cujo autor, mais tarde, foi reconhecido como sendo Hermann Kantorowicz. Pouco antes, Rudolf Stammler havia publicado sua Teoria do Direito Justo, mais uma teoria do conhecimento que um método, mais uma análise que uma síntese, mais relativa à forma do que ao conteúdo natural do Direito. Antes, desenvolvera-se a idéia de uma jurisprudência do interesse (Heck), sem que nada decisivo fosse dito sobre a forma de ponderar os diversos interesses conflitantes. Eduard Fuchs e Hugo Sinzheimer, um pouco mais tarde, preconizaram o método sociológico para a ciência do Direito. Com eles, sob a mensagem de um Direito vivo (Eugen Ehrlich) e, mais recentemente, com a terminologia mais ou menos equivalente relativa a um pensamento ordenador concreto, voltou-se a enfatizar, com outras palavras, a criação do Direito a partir da natureza das coisas. Muitos escreveram sobre a capacidade criadora do juiz mediante a elaboração teleológica ou finalística (como prefere Kantorowicz) de conceitos. Para estes, o Direito é descoberto a partir de seus fins, ou a partir da própria idéia de Direito.

Uma sintética profissão de de todos os defensores do Direito livre encontra-se no texto introduzido por Eugen Huber no § 1º do Código Civil suíço: “A lei, em sua letra ou em sua interpretação, contém a regra aplicável a todas as questões. Caso não seja ela encontrada no texto, deve o juiz decidir de acordo com o Direito consuetudinário e, se isso for impossível, de acordo com a regra que ele, como legislador, teria prescrito, seguindo a doutrina e a tradição”.

O movimento do Direito livre influenciou gradativamente a legislação e a jurisprudência. A valoração pelo juiz, mediante necessárias fórmulas de avaliação, penetrou de tal forma a legislação que, no interesse da segurança jurídica, tornou-se necessário levantar um grito de advertência contra a fuga das cláusulas gerais (W. J. Hedemann). Exemplo importante da criatividade do juiz no sistema alemão foi a concepção do estado de necessidade supralegal ao aplicar a cláusula rebus sic stantibus no período da hiperinflação. Finalmente, o movimento nacional-socialista terminou por aplicar as idéias do movimento do Direito livre não apenas para preencher lacunas da lei (intra legem e praeter legem), mas até contra legem, adoção que o movimento livre do Direito considerou sempre ilícita.

Certamente o juiz está limitado, fundamentalmente, pela lei, mas sua missão e dignidade não lhe permitem aplicar uma lei que contrarie manifesta e grosseiramente a idéia de Direito, uma norma que agrida os sentimentos do povo a respeito do justo e do injusto, que atinja diretamente a moralidade pública” (Georg Dahm, Deutsches Recht – Direito alemão – 1944). Esta assertiva pode ser mantida de ainda hoje, embora os resultados de sua adoção possam conduzir a direção diferente daquela por ela pretendida. Em suma, não devemos insistir na defesa dos resultados a que o movimento do Direito livre chegou, mas na limitação por ele traçada, decorrente da necessidade  da segurança jurídica.

 

BIBLIOGRAFIA: Stintzing e Landsberg – Geschichte der deutsche Rechtswissenschaft (História da Ciência do Direito alemã); Erick Wolf – Grosse Rechtsdenker (Grandes Juristas) e Schweizer Juristen der letzten 100 Jahre (Juristas suíços dos últimos 100 anos), ed. Schulthess, Zürich, 1945.


 


[*] Este capítulo foi publicado, sob o mesmo título, por Hermann Kantorowicz, na revista “Die Tat”, em julho de 1941. (vide Radbruch, necrológio para H.K., na Revista Suíça de Direito Penal, vol. 60, 1946).