IX

A estética do Direito

 

§ 29. Direito e linguagem

 

A linguagem do Direito e a linguagem dos juristas são muitas vezes criticadas por diversas razões: acusa-se a linguagem da lei de aridez e pobreza e a dos juristas de pompa e falsidade.

I.                    De fato, a linguagem da lei é caracterizada mais pelo que rejeita do que pelo que é.

 

1.      A linguagem da lei, em primeiro lugar, não emprega o estilo da persuasão, mas exige ausência de afetividade e de sentimentos. Exige a frieza das fórmulas matemáticas, embora legisladores de épocas não muito distantes, e também os legisladores nacional-socialistas em seus preâmbulos, tenham empregado todos os recursos superemocionais da oratória. Indignavam-se, com adjetivos candentes, em particular,  com a monstruosidade dos crimes contra a autoridade, a religião e a moral, procurando conquistar respeito a partir da pompa da linguagem majestática; na verdade, a única coisa que conseguiam era suscitar dúvidas, deixando a impressão de que  confiavam mais em sua eloqüência do que no poder de sua autoridade. o legislador moderno está consciente de que não lhe cabe convencer, mas ordenar.

 

2.      A linguagem da lei evita também o estilo do convencimento. Na época do absolutismo esclarecido, todavia, e, da mesma forma, no recente nacional-socialismo, agradava aos legisladores mostrar benevolência, real ou aparente, revelando a ratio legis, as finalidades da lei, para, através de sua compreensão, conquistar a obediência dos destinatários,  abrindo mão, implicitamente, da obediência dos destinatários que não conseguisse convencer. É característica essencial da lei jurídica, ainda que promulgada em vista de determinado fim, não ser exigível apenas para buscá-lo ou enquanto o sirva, mas exigir obediência incondicional. O moderno legislador jamais utiliza a palavraporque”. A linguagem moderna da lei emprega a brutalidade da ordem militar, que dispensa toda e qualquer fundamentação.

 

3.      Finalmente, a linguagem da lei evita também o estilo didático. Em longa experiência, os legisladores aprenderam que sua missão não é expor ou ensinar o que seja o Direito, mas decidir, em consciência, sobre o que deve ser feito e comunicá-lo sob forma legal. Na Idade Média, não se fazia distinção entre livros que relacionavam normas jurídicas vigentes pela força dos costumes e livros que eram, em si mesmos, fonte de regras jurídicas vigentes. O Espelho da Saxônia, compilação privada de normas elaborada por Eike von Repgow (1225), era obedecido de forma quase incondicional, com a autoridade de um livro jurídico, enquanto a Carolina (Código Penal do antigo império alemão), embora livro de Direito, era obedecida de forma meramente voluntária. No começo da época moderna, entendia-se que os códigos apenas relacionavam regras jurídicas vigentes em razão de outras fontes, como o Direito consuetudinário e o Direito Natural; eram considerados tratados de Direito Natural, embora revestidos de autoridade. lentamente foram perdendo o tom catedrático, à medida que prevaleceu o reconhecimento de que o legislador não encontra o Direito pronto, mas deve produzi-lo com suas normas. Um código moderno, ao contrário, contém apenas normas que correspondem a ordens ou a elas se refiram e não emprega partículas, sublinhados ou repetições tentando superar a preguiça, o esquecimento, a desatenção de seus destinatários. Despreza até o fluxo estético das frases, que são separadas umas das outras sob a forma de artigos e parágrafos. A lei é dirigida a ouvintes com ouvidos acurados para lograr o entendimento generalizado (ius vigilantibus scriptum).

 

II.                 Os grandes discursos forenses revestem-se de características de luta pelo Direito. Lembram estanha mistura de frio e calor; frio, em relação à exposição dos conceitos e calor que os reveste, como sói ocorrer apenas na vida apaixonada dos indivíduos.

 

A arte de falar com eloqüência não é valorizada na Alemanha como deveria ser: “a razão e o bom senso devem ser revestidos de pouca arte”. O alemão suspeita da oratória, fundamentalmente por sua provável inautenticidade; e a arte da eloqüência é, de fato, “inautêntica”, na mesma medida em que toda arte conscientemente também o é. Tal inautenticidade decorre do fato de que o orador não se exibe como o faz na vida diária. A questão está em saber se devemos tomar o cotidiano como padrão de autenticidade da vida, quando nos parece que, exatamente em situações especiais, que transcendem ao cotidiano, o homem está mais próximo da realidade de seu ser do que na larga estrada do dia-a-dia. É o que experimentam os grandes oradores nos momentos culminantes de sua eloqüência apaixonada: sobem à vizinhança de Deus ou da idéia, exatamente onde o homem deveria sempre viver e tão excepcionalmente vive. Mas não se deve também subestimar o perigo da grandiloqüência, tanto para o orador quanto para os que o escutam, bem como o perigo dos patéticos discursos jurídicos, principalmente porque os alemães carecem do dom dos povos latinos, que sabem compensar a força da eloqüência com equivalente dose de ceticismo. É necessário, todavia, acautelar-se contra uma espécie de crítica típica de filisteus, que consiste em suspeitar de toda oratória, simplesmente por tratar-se de uma espécie de arte.

III.               O conhecimento jurídico é apreciado também, muitas vezes, por seu valor estético. Fala-se de “elegantesolução de um problema jurídico, tomando-se a beleza como critério de verdade. Valores estéticos, como as medidas simétricas na elaboração de sistemas, números preferidos ou rejeitados na divisão, aversão a linhas quebradas e preferência por curvas sem fraturas na exposição histórica e no desenvolvimento lógico, influenciam as pessoas com sensibilidade artística na avaliação do conhecimento jurídico. Esta avaliação estética pode representar um perigo, como demonstram as contradições entre o pensamento alemão e inglês. O inglês repudia, no Direito como na Política, planejamentos de longo prazo: espera que os fatos ocorram para aprender com a própria situação; seu ponto forte consiste em fazer o que for necessário, sem pudor ante a necessidade de mover o timão em retorno ou ante a imagem do ziguezague. O alemão, ao contrário, quando abotoa o primeiro botão do paletó de forma errada, abotoa também o segundo, o terceiro, até o último, na forma escolhida, não apenas para ser conseqüente, mas também pela necessidade estética de preferir a linha traçada e repudiar a linha quebrada. Mas elegância na solução, com freqüência, é sintoma enganador de correção.

    

§ 30. Direito e imagem

 

I.                    Na época em que a arte de ler não era tão desenvolvida, imagens e alegorias eram mais compreensíveis do que hoje. Na medida em que se deu o progressivo afastamento da contemplação e o maior interesse pelos conceitos, as alegorias foram perdendo seu significado. Dificilmente nos damos conta de que existiu uma arte alegórica pela qual interessou-se durante séculos a humanidade – a emblemática criada exatamente por um grande jurista, Andréas Alciatus (1492-1550). A emblemática baseava-se na combinação de figuras com palavras, pois as alegorias dificilmente podiam ser compreendidas se não estivessem acompanhadas de versos. A partir de Laocoonte de Lessing a arte da palavra separou-se da arte da imagem, o que determinou o fim da emblemática. Desapareceu totalmente o interesse pela alegoria. Ela foi “congelada”.

 

II.                 Sobre a alegoria da Justiça, transmitiu-nos Aulus Gellius (130-?) uma descrição feita pelo filósofo Crísipo: forma atque filo virginali, aspectu vehementi et formidabili, luminibus oculorum acribus, neque humilis neque atrocis, sed reverendae cuiusdam tristitiae dignitate (beleza e forma virginais; olhar austero e terrível; olhar penetrante, nem humilde nem atroz, mas com a dignidade de respeitosa tristeza). Conta Aulus Gellius que alguns leitores mais sensíveis de Crísipo encontravam nesta descritiva mais a imagem da severidade do que da justiça. Deve-se destacar que esta imagem da justiça, que prescinde de qualquer atributo convencional, revela apenas, sob forma e expressão alegórica, o puro significado que o povo lhe reconhecia. A espada era então reconhecida como atributo de Themis e Dike e, mais tarde, os romanos deram a balança como atributo à aequitas. No início da Idade Média, a balança e a espada foram unidas na figura da justiça.

 

Como em toda boa alegoria, a espada e a balança proporcionam várias possibilidades de interpretação: podem significar, juntas, o processo e sua execução, o Direito e a força, o Direito Civil e o Penal ou as duas partes fundamentais do Direito Penal – apuração da culpa e aplicação da pena – e ainda, finalmente, os atributos da justiça distributiva e da comutativa. Mas na medida em que atentamos para estes atributos, vai esvaecendo-se a imagem da justiça, que tanto dizia ao povo grego. Interessante representação viva da justiça encontra-se, também, na fonte romana de Frankfurt: com a balança ao alto e a espada para baixo, porém pronta para ser utilizada, caminha ela em frente, a passos firmes, sem se deter, tal como aparece em outras estátuas, para que admiremos e interpretemos sua alegoria.

Albrecht Dürer deixou-nos um enigma na sua gravura em madeira relativa à Reforma em Nürnberg. Sobre as armas da cidade e do reino, sustentadas por um anjo, duas figuras estão sentadas sobre as nuvens e, entre elas, desenhada sobre uma mesinha, lê-se “Sancta Justicia”. Pode-se imaginar que se trate da dupla forma de justiça – de um lado a comutativa, de outro a distributiva –  mas os detalhes não suportam esta interpretação. Uma delas se distingue pela coroa, a espada e a balança; a outra, por uma coroa de flores e uma sacola da qual derrama dinheiro enquanto, da outra mão, ergue-se uma labareda. A bolsa de dinheiro derramado representa evidentemente o suborno recusado e a labareda, conforme ensinam as alegorias, a aspiração por um ideal.

Parece também que um conceito tão viril como o de justiça não deveria ser corporificado por uma mulher e sim por um homem, algo como o arcanjo São Miguel, que aparece pintado nas imagens do Juízo Final com espada e balança. A imagem da justiça de Hans Burgkmair veste estranhas roupas masculinas, com bota e bombacha. Além da espada, porta um globo terrestre, do qual desponta a balança, como símbolo do domínio do Direito em todo o planeta.

É considerada não alegórica e até anti-astrológica a apresentação da justiça feita por Albrecht Dürer sob forma masculinaum jovem com espada e balançasobre o qual está um leão comodamente sentado, como se fora uma estrela, de cuja cabeça saem os raios como os do sol, simbolizando o halo da divindade: “sol iustitiae”.

A venda que cobre os olhos da justiça é posterior e está até em conflito com a espada e a balança, pois deixa os olhos fechados, quando eles deveriam observar a balança e orientar a espada. Surgiu como um escárnio; na primeira edição de uma gravação em madeira de Sebastian Brants, entitulada “a nave dos loucos” (1495), um deles, por trás,  coloca nela uma venda; e Schwarzenberg, nos “bambergenses”, representa todos os membros do tribunal com capas de loucos e olhos vendados, afirmando que: “estes cegos malucos, em sua vida, costumam apenas proferir sentenças contrárias ao Direito”. no desenho de Peter Vischer, o Jovem, que se encontra na casa de Goethe, em Weimar, é a justiça que coloca a venda nos olhos do imperador sentado em seu trono, o que parece sugerir que, entrementes, a venda, que começara como um blefe, transformara-se em atributo da justiça, na qualidade do juiz que decide “sem consideração para com as pessoas”.

o livro surgiu a partir da época da recepção do Direito romano; não como atributo da justiça, mas também como objeto de sátira. O original de uma gravação em madeira mostra, um ao lado do outro: um jurista com seu livro, um usurário com sua bolsa e uma prostituta com seu xale; e Hans Burgkmair, a quem nos referimos, representou um grupo de juristas brigando em torno de um livro aberto sobre a mesa. Ao contrário, na Ponte Velha de Heidelberg, uma escultura representa a justiça apoiada sobre cinco livros, uma alegoria relativa à erudição dos juristas.

III.               Durante a Reforma, foram mais freqüentes as sátiras do que as representações sérias a respeito da justiça. Nas famosas gravações em madeira conhecidas como tapetes Michelfelder, um juiz é apresentado sob a legenda “a fraude” e, ao lado dele, abraçadas, três virtudes, entre as quais a justiça. No “bambergenses”, diante do “juiz tributário”, há um ladrão a cavalo e atrás dele o demônio. Da legenda consta: “muito se rouba na terra e no mar, mas os juizes de tributos roubam ainda mais”. Terrível quadro de advertência aos juizes na edição oficial de um código.

 

IV.              Quadros de advertência como estes abundam nas salas de tribunais. O Museu Alemão guarda um entalhado em madeira, Leinenberg: um juiz, sentado entre um homem rico e um pobre, inclinado, no entanto, para o rico. O Código da Saxônia dispunha que sempre, sobre a cadeira do juiz, deveria estar representado o juízo final, como advertência ao juiz de que um dia ele será também julgado. Outros quadros sobre a justiça, com repetição do mesmo tema, aparecem na maioria das salas de tribunais: o julgamento de Salomão, a calúnia de Apeles, o processo de Cambises, a justiça de Trajano e outros estímulos ao juiz justo e advertências ao injusto. Dificilmente se encontra, no entanto, nas salas de audiências dos juízes da Alemanha, a figura do patrono dos juristas e das Faculdades de DireitoSão Ivo Helorique aparece apenas no selo de algumas Faculdades de Direito, por exemplo, na Universidade de Freiburg.

 

V.                 Nas apresentações da Dança da Morte nunca falta a figura do juiz e do advogado. Sobre ela, Hans Holbein mostra, em uma gravura em madeira, um juiz de quem a morte quebra a vara da justiça, entre um tutor fraudulento e seu pupilo lesado, e um advogado, pago pelo rico cliente, enquanto, no fundo o acusado pobre assiste angustiado. No quadro sobre as crianças dos planetas, a figura de um juiz aparece sempre entre os filhos de Júpiter. Nos almanaques antigos é comum apresentar-se algum jurista: no almanaque Jost Ammans é um homem arrogante, elegantemente trajado, sob depreciativos versos  de Hans Sachs; no almanaque de Weigel, o jurista responde ao cliente que o consulta: “Cala-te, pois esterco não merece processo”.

 

VI.              Quando atentamos para a série inumerável de representações da justiça e dos juristas, notamos que determinados motivos de crítica são nelas repetidos: a corrupção dos juízes, a avidez dos advogados, a argúcia e o distanciamento do povo da parte de ambos. Dá-se com elas algo semelhante ao que ocorre mais tarde com as figuras humorísticas do professor distraído e do aluno vagabundo: são meramente convencionais, não se preocupam com nenhuma forma de comprovação e são utilizadas apenas como ponto de partida para caçoadas de toda a ordem ou para advertências graves. a partir do século XIX encontra-se uma crítica profunda e pormenorizada, utilizando a caricatura na crítica à justiça, principalmente na arte do maior caricaturista da justiça, que foi Honoré Daumier.

 

 

BIBLIOGRAFIA: G. Frommhold – Die Idee der Gerechtigkeit in der bildenden Kunst (A idéia de justiça na arte plástica); U. Lederle – Gerechtigkeitsdarstellungen in deutschen und niederländischen Rathäusern (Representações da justiça nas prefeituras alemãs e holandesas), Heidelberg, 1937. Material gráfico: Franz Heinemann – Richter und Rechtsweg in der deutschen Vergangenheit (Juizes e processos judiciários no passado alemão); Hans Fehr – Das Recht im Bild (O Direito em Imagens); Cornelius Veth – Der Advokat in der Karikatur (O advogado na caricatura); Heinert – Die Heiligen und das Rechts (O sagrado e o Direito); Radbruch – Das Buch als weltliches Symbol (O livro como símbolo mundial) em Reallexikon der deutschen Kunstgeschichte (Léxico da história da arte alemã), tomo II; Radbruch – Karikaturen der Justiz von Honoré Daumier (Caricatura da Justiça em Honoré Daumier), 1947.

 

§ 31. Direito e poesia

 

Goethe escreveu certa vez a um amigo que era ao mesmo tempo jurista e poeta, que ele servia a dois deuses tão inimigos quanto Mamon e Cristo. Outros poetas, recusados no curso de Direito, sentindo-se por isso enojados, estamparam maldiçoes em álbuns de jurisprudência: “quando tive que estudar Direito, contra os desejos de meu coração...” assim começa uma poesia de Uhland. Famoso é, também, o divertido suspiro de Scheffel: “Direito Romano, quando penso em ti, é como se meu coração estivesse em um pesadelo, como se tivesse engolido a de um moinho, como se uma seta atravessasse meu crânio”. Estas citações poderiam continuar por muito tempo. Mas outros poetas deram-se bem com a jurisprudência e sentiram-se até felizes com ela: E. T. A. Hoffmann experimentou uma vida dupla entre o mundo da fantasia poética e a insípida jurisprudência e, como membro de tribunal, enfrentou com firmeza de caráter difíceis situações políticas.

Se nos perguntarmos sobre o que explica a freqüente aversão dos artistas pela ciência do Direito chegaremos à “objetividade” dos juristas, ou seja, à tendência a desconsiderar os aspectos especificamente humanos. O Direito trata, por exemplo, do casamento, mas ignora o amor; trata das dívidas, mas não das amizades. Apesar disso, as afirmações dos poetas sobre o Direito, com freqüência, têm mais peso e maior força probatória do que as dos filósofos do Direito, porque têm raízes existenciais mais profundas, não dizem respeito apenas a idéias, mas a toda a personalidade; ou, para falar como Tönnies, não ao acidental, mas ao essencial.

I.                     

1.      O Direito é tema freqüente na literatura. Contos sobre o juiz sábio abundam na literatura universaldesde o juiz de Cádiz até o japonês Ooka Tadaske, passando por Paulis comVergonha e Seriedade”, Wickrams com “Livreto do Caminhão” e Hebels com “O pequeno castelo do tesouro”. Um destes contos é atribuído a Santo Ivo: um homem rico teria demandado na justiça contra um pobre para obter indenização pelo fato de este ter diariamente se beneficiado, aspirando o delicioso ar de sua extraordinária cozinha. Santo Ivo teria acolhido como justificada a pretensão do ricaço e condenado o pobre a sacar do bolso uma moeda de ouro e colocá-la sobre a mesa: o tilintar da moeda seria suficiente para indenizar o perfume dos assados. A maioria destes contos, todavia, não são interessantes tanto pelo surpreendente final, quanto pela forma astuciosa de diagnosticar o tipo de ilicitude. Exemplar, também, a história do juízo de Salomão. Estes contos, nos quais sábios juízes chegam a sentenças sensacionais, tiveram refinada continuidade nas novelas criminais atuais, que apenas substituíram a sabedoria dos juízes pela argúcia dos detetives.

 

2.      Com freqüência, contos populares tomam como objeto finórios ludíbrios do Direito. O “Zorro” de Reineke Fuchs é imortal. Da mesma forma, o mestre dos ladrões nas fábulas dos irmãos Grimm, as histórias de “Zundelfrieder e Zundelheiner”de Johann Peter Hebels e “A Pele do Castor” de Gerhart Hauptmann. Estes contos, como seus análogos de Eulenspiegel, representam a vingança do homem insignificante, pobre, oprimido, contra o rico e poderoso; a vingança dos astutos filhos de Saturno contra os deselegantes filhos de Marte; as raposas contra os lobos e os ursos. O Direito violado não é o aspecto mais importante da história.

 

3.      Da mesma forma, as análises psicológicas dos grandes criminosos, como “O Criminoso com a Honra Quebrada” de Schiller, “O Anfitrião do Sol” no romance de Hermann Kurz (que analisa o mesmo herói da novela de Schiller) e o famoso livro de FeuerbachDocumentário sobre Criminosos Famosos” preocupam-se mais em descrever as potencialidades criminosas e os perigos da alma humana do que analisar as questões jurídicas mencionadas.

 

II.                 O Direito como motivo poético aparece principalmente no drama. A essência da tragédia é uma antinomia insolúvel e o Direito é construído exatamente sobre antinomias e antíteses, por exemplo, ser e dever ser, positivo e natural, legítimo e revolucionário, liberdade e ordem, justiça e equidade, direito e graça, etc.

 

Georg Jellinek chamou a atenção para uma diferença essencial entre o drama antigo e o moderno. No antigo, o Direito se impõe ao indivíduo como um destino incondicional e superior, contra o qual nada pode a insurreição individual. Onde parece, como em Antígone, que o indivíduo levanta-se contra a lei, trata-se, em verdade, da disputa entre ordens jurídicas diversas, por exemplo, do Direito divino contra o humano. Ao contrário, no drama moderno, depois que o cristianismo descobriu o valor individual de cada alma humana, dá-se o conflito entre o Direito e a pessoa individual.

Extraordinário drama jurídico é “Medida por Medida” de Shakespeare, uma comédia sobre tema realmente trágico, não completamente superado. Os deslizes judiciais do governador Ângelo parecem excessivamente graves para que possam ser perdoados pela simples concessão da graça. Esta, por natureza, não tem razão de ser e adquire sentido em vista de seus resultados: como uma espécie de mistério no mundo moral, produz efeitos na alma do agraciado exatamente por se tratar de impunidade imerecida. EmMedida por Medida”, Ângelo permanece absolutamente mudo ante a declaração de graça e sente-se a falta daquelas três linhas que revelariam a transformação pela graça.

Soa de forma maravilhosa a canção da graça no “Mercador de Veneza” de Shakespeare, porém, como surda admoestação. Novamente, o cômico brotando do trágico: a tragédia de Shyloch. Jhering  protestou contra o fato de Shylock merecer acusação de ilicitude por abuso de direito quando se tratava apenas da interpretação literal de um contrato. Kohler objetou que, na História do Direito, o Direito antigo assume novas formas por caminhos tortuosos, mas sem conseguir consertar a objeção anterior – Shylock continuou sendo considerado culpado, não em razão do resultado, mas em razão do motivo. Na história aproveitada por Shakespeare, o importante não era a ilicitude, mas uma desconsideração por parte de um judeu de atitudes desagradáveis e pouco qualificadas. A capacidade de Shakespeare, no entanto, fez com que, em suas mãos, Shylock deixasse de ser uma figura secundária, ridícula e irritante para transformar-se em uma figura trágica, em dimensão tal que obscurecia o ambiente sereno que existia em torno dele. Foi assim que o grande ator Schildkraut o interpretou e representou, prestando serviço mais à humanidade que à arte, pois esta exigia, de acordo com o espírito da comédia, que o ilícito de Shylock tivesse pouco destaque e fosse reduzido a um episódio de fácil esquecimento, em segundo plano.

Goethe – em “Götz” – e Schiller – em “Os Bandidos” – começaram sua carreira dramática glorificando a rebeldia contra o Direito e evoluíram para uma visão positiva em relação a ele. A posição de Goethe ficou caracterizada em sua afirmação famosa, ou mal-afamada, em “O Sítio de Mainz”: “é da minha natureza – prefiro cometer uma injustiça a suportar a desordem”. Não se trata da defesa da ordem sob o ponto de vista filisteu, mas sob o ponto de vista da segurança burguesa; é muito mais um fragmento na concepção global do mundo – o “cosmosgrego interpretado, de forma cômica, como ordem do mundo. Goethe rechaça a justiça revolucionária, junto com a teoria da revolução da terra, preferindo interpretar as transformações geológicas mais à Netuno, como trabalho das águas, do que a Vulcano, com resultado de poderosas erupções ardentes das entranhas da terra. Sua observação da metamorfose das plantas tem por mote palavras do livro de Jó: “passa por mim antes que eu me conta e transforma-se antes que eu perceba”. Da mesma forma, sua Ética é construída sobre o conceito de “continuidade”, de conseqüência, de tenacidade, de paciência criadora. Depois de uma existência atribulada, fundamentou o Direito sobre a vida que prossegue depois do túmulo, ou seja, sobre a imortalidade da alma: “a constância nos dias terrenos assegura-nos a vida eterna”. O fato de sua idéia de Direito não pressupor tensão entre ordem e justiça, de esta tensão recair exclusivamente sobre a ordem, demonstra que sua vocação prioritária não era para o drama. Ele mesmo afirmou que era excessivamente conciliador para fazer poesia a partir da tragédia e que a irredutibilidade das contradições trágicas não se compatibilizavam com sua pessoa, de tal forma que, se tentasse escrever uma tragédia, sucumbiria imediatamente.

Ao contrário, a idéia de Direito, com toda as suas tensões, encontra-se no centro da dramaturgia de Schiller, especialmente a antinomia entre a ordem jurídica e a liberdade moral. no grande discurso do “Marquês de Posa” destaca-se a defesa da liberdade da pessoa frente ao Estado e em “Guilherme Tell” lê-se a magnífica afirmação segundo a qual é necessário elevar as mãos aos céus para alcançar os direitos que ali pendem, inalienáveis e imorredouros como as estrelas.

O maior poeta do Direito entre os alemães é Heinrich v. Kleist. Em seuCântaro quebrado” e em seu “Michael Kohlhaas” não foram superados os excessos e as violências de seu ser, mas, no “Príncipe de Hamburgo”, consegue ele o equilíbrio harmônico das contradições antinômicas do Direito. O Grande Eleitor e o Príncipe de Hamburgo conciliam finalmente seus pontos de vista: o Príncipe acata a pena de morte que lhe foi imposta como castigo pela desobediência e o Grande Eleitor luta consigo mesmo, até chegar ao belo milagre da graça, como prêmio por ter conseguido a vitória contra a quebra da disciplina. Direito e graça, objetividade e humanidade, Prússia e Alemanha do Sul encontram, no final, um belo acordo.

III.               No drama está o conflito entre valores, entre a personalidade e a ordem, mas pode também ocorrer, em vez do equilíbrio antinômico, a superação de um ou outro. O ceticismo mundano ou a paixão religiosa podem colocar em dúvida ou até negar o valor do Direito em relação às pessoas, a objetividade em relação à humanidade. Em nenhuma obra literária a corrosão cética do Direito é mais impressionante do que na novela “Crainquebille” de Anatole France, que nenhum jurista deveria deixar de ler. A negação do Direito pela paixão religiosa, como radical interpretação do Sermão da Montanha, domina a novelaRessurreição” de Tolstoi. Todos os juristas deveriam debater-se interiormente com estas radicais negações do Direito. É necessário, para as funções jurídicas, ter consciência simultânea da grandeza e do caráter problemático do Direito.

 

 

BIBLIOGRAFIA: H. Fehr, Das Recht in der Dichtung (O Direito na Poesia); G. Muller, Recht und Staat in unserer Dichtung (Direito e Estado em nossa Poesia), 1924; Dietlinde v. Künssberg, Das Recht in Paulis Schwanksammlung (O Direito na Coleção Jocosa de Paulo), Heildeberg, 1939; Th. Würtenberger, Die deutsche Kriminalerzählung (Narrativas criminais alemãs), 1941; Radbruch, Getalten und Gedanken – darin über Mass für Mass und über Goethe und das Recht (Figuras e pensamentos, especialmente sobre Medida por Medida e sobre Goethe e o Direito); vários trabalhos de Erik Wolf e Eugen Wohlhaupter sobre alguns poetas; Ingeborg Becker, Die Todesstrafe in der Dichtung H. v. Kleist (A Pena de Morte na poesia de H. v. Kleist), Friburgo.