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Introdução
Gustav Radbruch foi
um dos
mais
importantes
juristas do
século XX,
não
só pelas magníficas
obras
que
nos legou,
mas,
acima de
tudo,
por
extraordinária
carga de
experiência existencial
que acumulou e
pela
forma
como a recolheu e assimilou
em
suas
idéias.
Apontando
apenas os
dados
mais
importantes de
sua
biografia: nasceu a 21 de
novembro de 1878,
em Lübeck, e faleceu
em Heidelberg, a 23 de
novembro de 1949,
dois
dias
depois de
completar 71
anos de
idade. Na
vida
acadêmica, foi
aluno de
Direito
Penal de Franz v. Liszt e
professor de
Direito
Penal e de
Filosofia do
Direito nas
Universidades de Königsberg, Kiel e Heidelberg.
Em 1922 divulgou
seu
projeto de
Código
Penal
alemão Na
vida
política,
como
membro de
Partido
Social Democrata
Alemão (SPD), foi
Deputado no Reichstag
entre 1920 e 1924,
constituinte de Weimar e
Ministro da
Justiça (de 1921 a 1923) no
gabinete social-democrata.
Em
seus
pronunciamentos
políticos, manifestou-se
sempre
contrário ao
Estado totalitário,
que
até
muitos
membros do
governo de
que participou defendiam. A
chegada do
Partido dos
Trabalhadores
Alemães
Nacional-Socialista ao
Poder deu
início ao
período de
suas
grandes
dificuldades
políticas.
Em
março de 1933, Hitler começou a
editar
medidas
com
força de
lei, assemelhadas ao
que conhecemos
como Decretos-leis
ou
Medidas Provisórias; todas eram sistematicamente
aprovadas
pelo
Parlamento e toleradas,
por
omissão,
pelo
Poder
Judiciário, a
ponto de Hitler
ter dispensado o
Parlamento
sob o
argumento de
ser
caro e
inútil e
com
aplausos da
população. A
medida
com
força de
lei promulgada
em 7 de
abril de 1933
tinha
como
objeto a “reestruturação
do
funcionalismo
público” e,
com
base nela, no
mês
seguinte, Radbruch foi destituído de
sua
cátedra
em Heidelberg
pelos
nazistas “por
não
ser confiável,
em
razão de
sua
personalidade de
suas
atividades
políticas
anteriores”. A
readmissão no
cargo deu-se
apenas
depois da
guerra,
em 1945,
quando retomou as
atividades de
professor, assumindo
também a
condição de
decano da
Faculdade de
Direito,
encarregado de
sua
reestruturação.
Desde a
retomada das
atividades
docentes
até a
morte, viveu o
período
mais
fecundo de
sua
vida no
que diz
respeito à
divulgação de
suas
idéias.
Publicou inúmeras
obras,
dentre as
quais devem
ser destacadas: Einführung in die Rechtswissenschaft (Introdução
à
Ciência do
Direito), de 1910; Grundzüge der
Rechtsphilosophie (Fundamentos de
Filosofia do
Direito), de 1914; Kulturlehre des Sozialismus
(Cultura
Socialista), de 1922; Entwurf eines Allgemeinen
Deutschen Strafgesetzbuchs (Minuta de
um
Código
Penal
Alemão), de1922; P.J. Anselm Feuerbach, ein Juristenleben
(P.J. Alselmo Feuerbach, a
vida de
um
jurista), de 1934; Elegantiae Juris Criminalis
(Direito
Penal da
Elegância), de 1938; Gestalten und Gedanken (Forma
e
Pensamento), de 1945; Theodor Fontane oder
Skepsis und Glaube (Teodoro Fontana,
ou
ceticismo e
fé) de 1945; Der Geist des Englischen Rechts
(O
Espírito do
Direito
Inglês), de 1946; Vorschule der Rechtsphilosophie (Introdução
à
Filosofia do
Direito), de 1947; Geschichte des Verbrechens
(Histórias de
Crimes), publicada
em 1951; Der innere Weg. Aufriss meines Lebens
(O
Caminho
interior. A
trajetória de
minha
vida), publicada
em 1951; Der Mensch im Recht. Ausgewählte
Vorträge und Aufsätze über Grundfragen des Rechts (O
Homem no
Direito.
Obras escolhidas e
Ensaios
sobre
questões
fundamentais do
Direito), publicada
em 1957.
Suas
reflexões foram marcadas
pelos
problemas filosóficos predominantes naquela
época,
principalmente a
questão da
validade do
conhecimento
científico e filosófico; e foram marcadas
também pelas
soluções a
eles
propostas
pelo
grande
gênio filosófico de
seu
país e da
cidade de Königsberg,
onde
ambos lecionaram – Emmanuel Kant.
Aceitou
integralmente, e
com
vivo
interesse, a
proposta kantiana de
justificação do
conhecimento
científico e de
superação do
positivismo empirista,
assim
como a rejeição ao
conhecimento filosófico, a
tal
ponto
que,
mesmo se sentindo liberado
para uma renovação criadora,
principalmente
depois das dramáticas
experiências
políticas,
jamais se libertou das
idéias de Kant.
O
primeiro
legado do
genial filósofo ao
grande
jurista foi o relativismo, ao
qual Radbruch afirma
ter
chegado e no
qual permaneceu,
segundo confessa,
acima de
tudo,
por resignação. A
leitura do
capítulo a
este
respeito,
já na
Filosofia do
Direito,
deixa a
impressão de
que se tratava de
algo
mais
profundo
que resignação,
ou seja, de verdadeira
convicção. É a
aceitação do ignorabimus de Kant.
Como escrevera
este, emparedados
que somos
em
nós
mesmos,
jamais poderemos
chegar ao
objeto do
conhecimento
enquanto
tal – a
coisa
em
si – das Ding an sich.
Por
isso, precisamos
nos
conformar
com o
conhecimento dos
fenômenos, da
aparência das
coisas, o
que
não impede o
conhecimento
científico –
que tem
por
objeto os
fenômenos e compensa esta
limitação
com a
contribuição universalizante da
razão
humana –
mas impossibilita a
Filosofia,
cujo
objeto é
exatamente a
coisa
em
si. Daí a
convicção
ou a
necessária resignação ao relativismo.
Mas a impossibilidade de
fundamentação
objetiva do
conhecer
não conduziu
nem Kant
nem Radbruch ao
ceticismo,
porque
ambos aceitaram,
como
compensação
paralela, a
apreensão dos
valores
como
um
ato de
fé:
embora
ela
não brote do
objeto, emerge da
natureza do
sujeito
que conhece.
O subjetivismo de Kant, ao
qual Radbruch adere, gera necessariamente o
dualismo metodológico.
Para
ambos estão irremediavelmente separados
realidade e
valor,
ser e
dever
ser e,
além disso,
para Radbruch,
por
via de
conseqüência,
também
Direito
Natural e
Direito
Positivo.
São
mundos
diferentes,
que
não se comunicam,
que coexistem
em
órbita separadas
que
não se cruzam. Os
valores,
para
eles,
não
são apreensíveis
pela
razão,
mas precisam
ser aceitos
como pressupostos.
Exatamente nesta
Introdução à
Filosofia do
Direito Radbruch exalta o
Direito
Natural e reconhece nele o
único
caminho
viável
para a
solução dos
grandes
problemas do
Direito, fazendo
até
questão de
encerrar a
obra
com a
expressão
Direito
Natural.
Entretanto,
sua
visão do
Direito
Natural é
também kantiana.
Nada tem de aproximado à
objetividade de Aristóteles,
pensador,
por
sinal,
pouco citado
por
ele – trata-se de
um
Direito
Natural subjetivista, de
um
conjunto de
regras emanadas da
razão
humana e
não apreendidas
por
ela a
partir da
natureza das
coisas. É
verdade
que Radbruch faz
freqüentes
referências à
natureza das
coisas – e escreve
mesmo
um
belo
texto a
respeito do
assunto –
mas dá a esta,
outra
vez,
características
meramente subjetivas (natureza
humana) perdendo a
grande
oportunidade de
encontrar o
conteúdo
justo
objetivo
para as
normas positivas;
conteúdo
que
tanto procurava.
Este seria o
caminho
para
superar o
fato de as
normas positivas poderem
abrigar
injustiças, o
que
ele critica
com veemência,
principalmente
depois da
experiência
nazista.
Se
em
Filosofia esteve
aprisionado a Kant,
em
política é
manifesta
sua
inclinação
pelo
socialismo.
Apesar de
reconhecer a “necessidade do
liberalismo”
como
única
forma de
preservar a
liberdade do
homem, é
radicalmente social-democrata
até o
fim da
vida. De
um
lado, repudia o
totalitarismo do
Estado,
mas, de
outro, reconhece a
este o
direito de
intervir na
sociedade
através dos chamados
direitos e
ações
sociais.
Também
em
nome da
liberdade contesta o
capitalismo, no
qual enxerga
apenas a possibilidade de
desmandos,
risco
que
em
sua apaixonada
miopia
política
não percebe no
socialismo. Esta
manifesta
paixão
socialista
tinha
mesmo
que
conflitar
com os
nazistas,
cujo
projeto
político, ao
menos
em
suas
origens, estava hipnotizado
pela
necessidade de
impedir a
invasão da Europa pelas
idéias
marxistas implantadas no
império
soviético.
Embora tenha sido esta
paixão
socialista a
causa de
sua demissão da
cátedra
universitária,
mesmo
assim,
após o
retorno a
ela, manteve
até o
fim da
vida a
mesma
opção,
como se
lê
também nesta
Introdução.
Adquiriu
fama
em
todo o
mundo
quando, no
alvorecer da
carreira
acadêmica, publicou
sua
Filosofia do
Direito,
então
sob o
pretensioso
título Grundzüge der Rechtsphilosophie (Fundamentos
de
Filosofia do
Direito). Nesta
obra, é
clara a
convicção de estarem sendo oferecidas
respostas
que pretendia fossem definitivas aos
grandes
problemas do
Direito, seguindo o
método recolhido
exclusivamente
em Kant. O relativismo aparece
como confessado
ponto de
partida,
enquanto o subjetivismo e o
racionalismo
são a
pedra de
toque das
soluções.
Não estava
só,
pois o
mesmo
caminho
era trilhado,
entre
outros,
pelos
grandes
pensadores da
época,
como Stammler na Alemanha e Del Vecchio
na Itália,
para
citar
apenas os
mais
destacados. Parece
que o
manto do
prestígio de Kant estendeu-se
sobre
eles no
campo
jurídico e
muito
em
particular
sobre Radbruch.
Sua
primeira
grande
obra ganhou o
mundo e foi traduzida
em
quase todas as
línguas.
Por
isso, pode
parecer
estranho
que,
já no
fim da
vida, tenha
escrito (mais
precisamente: ministrado
um
curso e autorizado a publicação das
notas a
ele relativas)
sobre os
mesmos
temas,
sem
encabeçar a
nova
obra
com alguma
expressão
que sugerisse continuidade, complementação
ou aperfeiçoamento. Ao
contrário, fez
questão de
utilizar o
título de
Introdução.
Lógica e cronologicamente,
este
título caberia na
obra dos trinta
anos e o
título
definitivo (Filosofia
do
Direito) na dos setenta
anos.
Jamais ao
revés.
Este
fato tem,
porém,
grande
significado. Pretendia
ele,
realmente,
recomeçar.
Não acreditava
mais naquilo
em
que acreditara e encontrava
coragem
suficiente (o
que é
raro e elogiável
entre os
homens)
para
rejeitar as
idéias
que dele fizeram
um
jovem
famoso, criticá-las e substituí-las
por outras. Pretendia
até
não
permanecer na
Introdução,
mas
reescrever a
Filosofia do
Direito utilizando, na
revisão, as
idéias adultas plantadas na
nova
obra. A
foice da
morte colheu-o,
todavia,
antes
que iniciasse
este
trabalho.
As duas
obras
principais de Kant (Crítica
da
Razão
Teórica e
Crítica da
Razão
Prática) revelaram-se
sempre contraditórias, ao
menos
quanto a
seus
resultados. A
primeira concluiu
pela impossibilidade do
conhecimento da
essência das
coisas e a
segunda iniciou-se
exatamente
pela
aceitação do
conhecimento
essencial dos
principais
objetos do
conhecimento
humano (a
existência de
Deus, a
liberdade e a
imortalidade da
alma)
como
exigências,
como
postulados,
como
ato de
fé,
indispensáveis à
Moral, ao
Direito e à
Religião. Desta dualidade resultaram,
após
sua
morte, as duas
escolas
também contraditórias,
embora ambas kantianas e a
ele fiéis – a
Escola de Baden e a de Marburg –,
cada uma delas aprisionada a uma de
suas
grandes
Críticas.
Na
fidelidade de Radbruch a Kant percebe-se o
mesmo
conflito.
Sua
Filosofia do
Direito inspirou-se
principalmente na
Crítica da
Razão
Teórica,
com poucas
concessões à
Crítica da
Razão
Prática,
motivo
pelo
qual
parte do relativismo e
nega
tanto a possibilidade do
conhecimento
essencial do
Direito
quanto a
existência de
um
necessário
conteúdo
justo
para
ele.
Algo
bem
semelhante ao
que doutrinava a
Escola de Marburg. Na
última
obra, a
Introdução,
embora
não rejeite as
conclusões da
Crítica da
Razão
Teórica
relativamente ao
conhecimento
humano, preconiza,
como propusera Kant na
Crítica da
Razão
Prática e
como entendia a
Escola da Baden, a
necessária
aceitação de
um
conteúdo no
Direito
ainda
que
sob a
forma de
postulado, de
ato de
fé,
para
que a
regra
positiva possa
ser
efetivamente aceita
como
jurídica.
Não titubeou,
então,
em
optar
pela
condenação dos
guardas
alemães (Mauerschützen)
que, no
estrito
cumprimento do
que
lhes determinava a
lei, atiraram
contra
seus
irmãos
que pretendiam
fugir do “paraíso
socialista”, desrespeitando o
muro
que dividiu o
país
em
dois. Alegou,
para
justificar
este
posicionamento,
que, se a
lei é
extremamente
injusta,
não pode
ser considerada
Direito.
Deixa in albis a
questão da possibilidade de
quantificar esta
injustiça.
Fato é
que,
entre uma e
outra
obra, Radbruch vai da
absoluta incognoscibilidade
essencial do
Direito à
absoluta
fé na
justiça. De uma
visão do
Direito considerado
como “tudo o
que beneficia o
povo”
chega à
convicção de
que “somente o
que é
justo beneficia o
povo”. A
razão de
ser desta
radical transformação é encontrável a
partir de
seu sofrimento existencial. É dele
mesmo o
testemunho
sobre a
origem de
seu
aprendizado, a
partir das monstruosidades do
nazismo, todas
elas praticadas
em
nome da
lei. Uma
lei
sem
conteúdo, uma
lei
que
não precisava de
conteúdo, uma
lei
que
valia
pelo
simples
fato de
ser
lei,
pelo
fato de
representar a
vontade do
poderoso, a
vontade do Führer. “O
terror
sob
forma de
lei”. Uma
lei
que
não se preocupava
em
ser
justa
ou
injusta,
que levou
seu
filho ao
campo de
batalha e
não permitiu
que retornasse
vivo; uma
lei
que
lhe retirou a
cátedra
jurídica
que
tanto amava e na
qual se realizava
com
tanto
êxito.
Assim,
aquilo
que
ele
não percebera
com as extraordinárias
forças de
sua
razão,
com
toda a
sua
genialidade, aprendeu
pelo sofrimento
pessoal e testemunhando o sofrimento de
seus
concidadãos. Foi
assim
que
ele partiu do
positivismo
jurídico
inicial à
moda Hobbes (auctoritas, non veritas facit legem – é a
autoridade,
não a
verdade,
que faz a
lei)
em
direção a
um jusnaturalismo, ao
menos
em
forma larvada,
para o
qual a
injustiça
extrema
não pode
ser considerada
lei (extremes Unrecht ist kein Recht). Teve
coragem e
honestidade
intelectual
para
reconhecer esta
trajetória,
este
caminho
interior (expressão
com a
qual intitulou
sua
autobiografia) e reuniu todas as
suas
forças
para
retomar o
trabalho
intelectual
sob
nova
inspiração.
Infelizmente,
não se livrou da
prisão
intelectual na
qual se envolvera
inicialmente e buscou
exclusivamente
em Kant a
superação dos
problemas herdados de Kant.
Sugestivamente, o
final desta
Introdução é
mais
um
conjunto de
perguntas, de interrogações,
que de
respostas,
fato
que reconhece
em
seu
prefácio e identifica
como
temática
para a anunciada
revisão de
sua
Filosofia do
Direito, propondo aos
leitores
que aproveitem as mesmas
questões
para a
reflexão
individual e
formação de
seu
pensamento.
São,
todavia,
questões
irrespondíveis
dentro dos
estreitos
limites do
sistema kantiano. O
que
ele
procura é
um
Direito supra-legal,
um
Direito situado
acima da
lei, trans-positivo,
fundamentado na
Moral,
semelhante à
Verdade, à
Beleza e ao
Bem;
um
Direito
superior, ao
qual o
Direito
Positivo seja
obrigado a
ceder
quando os
dois entrarem
em
colisão.
Um
Direito
Natural.
Mas
este
Direito
Natural
que Radbruch reconhece
como
indispensável à
solução das
grandes
questões do
Direito
não é
caminho
seguro se e
enquanto pensado,
como
em Kant,
como
meramente
racional, se admitido
apenas
como
um
conjunto de
regras editadas
pela
razão. Radbruch precisaria
sair de Kant,
conflitar
com
seu
mestre,
superar as
antinomias de
sua
obra,
para
só
então
chegar às
respostas
que
tanto buscava. Precisaria,
mas
não fez.
Certamente
porque,
como escreveu
em
carta a
seu
amigo e
colega Erik Wolf,
quatro
anos
antes da
morte, a viragem das
coisas tivesse
chegado
tarde
demais
para
ele,
só
lhe permitindo
fazer alguma
coisa
dentro de
limites
muito
estreitos...
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