A GÊNESE DO PENSAMENTO FILOSÓFICO[i]

Síntese de um diálogo com seus discípulos nas silenciosas alamedas do Ginásio de Apolo é, talvez, esta página de Aristóteles, que se lê, no livro I, de sua Metafísica: "Qu'elle (la Philosophie) ne soit pas une science poétique c'est ce que montre l'histoire des plus anciens philosophes. Ce fut, en effet, l'étonnement qui poussa, comme aujourd'hui, les premiers penseurs aux spéculations philosophiques. Au début, ce furent les difficultés les plus apparentes qui les frappèrent, puis, s'avançant ainsi peu à peu, ils cherchèrent à résoudre des roblémes plus importants, tels, que les phénómenes de la Lune, ceux du Soleil et des Étoiles, enfin la genese de l'Univers. Apercevoir uine difficulté et s'étonner, c'est reconnaïtre sa propre ignorance (et c'est porquoi aimer les mythes est, en quelque manière, se montrer philosophe car le mythe est composé de merveilleux). Ainsi donc, si ce fut pour échapper à l'ignorance que les premiers philosophes se livrérent à la Philosophie, il est clair qu'ils poursuivaient la science en vue de cannaitre et non pour une fin utilitaire. Ce qui s'est passé en réalité en fournit la preuve: presque tous les arts qui s'appliquent aux nécessités, et ceux qui s'intéressent du bien-être et à l'agrément de la vie, étaient déjà conus, quand on commença à l'agrément de la vie, étaient déjà conus, quand on commença à rechercher une discipline de ce genre. Il est donc évident que nous n'avons en vue, dans la Philosophie, aucun intérêt étranger. Mais, de même que nous appelons homme libre celui qui est à lui même sa fin et n'est pas la fin d'autrui, ainsi cette science est aussi la seule de toutes les sciences qui soit libre, car seule elle est sa propre fin".

Em outra passagem da mesma obra, o Stagirita observa: "C'est donc à bon droit que celui qui, le premier, inventa un art quelconque, dégagé des sensations communes, excita l'admiration des hommes; ce ne fut pas seulement à raison de l'utilité de ses découvertes, mais pour sa sagesse et pour sa supériorité sur les autres. Puis les arts se multiplièrent, ayant pour objet, les uns, les nécessités, les autres, l'agrément, toujours les inventeurs de ces derniers furent considérés comme plus sages que ceux des autres, parce que leurs sciences n'étaient pas dírigées vers l'utile. Aussi tous les différents arts étaient déjà constitués, quand on découvrit enfin ces sciences qui ne s'apliquent ni aux plaisirs, ni aux nécessités, et elles prirent naissance dans les pays où régnait le loisir. C'est ainsi que l'Egypte fut le berceau des Mathématiques, car on y laissait de grands loisirs à la caste sacerdotale.

Nous avons marqué, dans l'Éthique quelle différence existe entre l'art, la science, et les autres disciplines du même. genre. Sur ce point maintenant, il nous reste à dire ceci: la science nommée Philosophie est généralement conçue comme ayant pour objet les premières causes et les principes des êtres. Aussi, comme nous l'avons dit plus haut, l'homme d'expérience parait être supérieur au possesseur de connaissances sensibles, quelles qu'elles soient, l'homme d'art, à l'homme d'expérience, l'architecte, au manoeuvre, et les sciences théorétiques, aux sciences pratiques. Que donc la Philosophie soit la science de certaines causes et de certains princips, c'est maintenant une chose évidente".

Nesta página célebre, o genial grego apresenta sua solução, hoje clássica, do problema da gênese do pensamento filosófico.

Caracterizemo-la, antes de lhe discutir o valor. Nela Aristóteles tenta esboçar o itinerário do pensamento que, empolgado, inicialmente, pelo mundo cascateante das sensações múltiplas e desordenadas, ensaia um esforço de domínio sobre elas, nas invenções primitivas da arte; procura, após, fiel à sua vocação para o universal e o abstrato, atingir o plano das ciências práticas: busca, ulteriormente, uma depuração maior de suas representações do real, através da pura explicação científica, formulada sem nenhum outro objetivo que o de compreender, sem outro fim, como escreve o filósofo, que o de "conhecer e saber para conhecer e saber".

Entre essas formas desinteressadas de explicação, situa-se, num dado momento evolutivo do pensamento, o modo filosófico de contemplação da realidade: "ciência do supremo cognoscível". A Filosofia seria, pois, indiferente a todo o bem estranho ao seu próprio bem - que é o saber para saber.

Não se poderia dizer, com mais força e convicção, que o pensamento filosófico é fruto, apenas, efeito exclusivo de uma simples exigência racional de compreensão, de uma necessidade, exclusivamente mental. O espanto, que gera esse conhecimento desinteressado, não seria, assim, um estado psíquico, em cuja trama entrasse qualquer fator emocional, qualquer exigência prática, moral ou existencial do espírito. Ele seria, apenas, o sinal de uma pura curiosidade, uma fome intelectual, um desejo de ver, uma recusa da razão em face da ignorância, uma necessidade da inteligência de espelhar o real, uma exigência do pensamento de refletir o seu objeto, de devassar-lhe a opacidade, de iluminá-lo, de torná-lo transparente ao espírito. A razão quer ver: a Filosofia seria essa visão do ser.

Aristóteles descreve o processo histórico das formas de comportamento do espírito diante do real: Arte - Ciência - Filosofia, são três momentos desse processo. Dele se deduz a prioridade histórica da ciência, vindo a Filosofia a representar uma ulterior fase na evolução do pensamento; fase de supremo esforço generalizador, de máximo exercício abstrativo, apreensão das primeiras causas e princípios do ser.

Se assim é, percebe-se logo que, durante milênios, o homem não conheceu a explicação metafísica do mundo. Só quando as condições de sua vida lhe permitiram o ócio, teria surgido a explicação filosófica!

Qual o mérito desta hipótese? Qual o seu valor psicológico e histórico?

 

1 - Crítica psicológica e histórica

 

A tese aristotélica será, talvez, logicamente sedutora, mas é, na verdade, psicologicamente falsa. A análise da curiosidade, o estudo da atenção e do seu amplo embasamento afetivo, as investigações sobre o condicionamento de seu exercício pelo sistema, rico e complexo, dos interesses humanos revelam, claramente, o caráter antipsicológico e artificioso da teoria do filósofo grego.

Acresce observar que as modernas investigações experimentais de eminentes psicólogos alemães sobre a percepção e seu caráter trifásico não se harmonizam com a concepção aristotélica da anterioridade do momento analítico - fase evolutiva correspondente à explicação científica, - em face do momento sintético - período próprio da visão filosófica da realidade.

Do ponto de vista do seu valor histórico, a hipótese está contra os fatos. Não se observa, como pensou Aristóteles, a prioridade da ciência, em face da Filosofia. É um lugar-comum da história da cultura, a afirmação de que a ciência emergiu da Filosofa, de que séculos de meditação metafísica prepararam e disciplinaram o espírito humano para o seu esforço de constituição da Ciência. A própria história do pensamento grego corrobora esse asserto. Os cientistas gregos saíram das escolas filosóficas nas quais se exercitará o seu gênio. O espírito humano estava já, há séculos, tangido pela curiosidade metafísica, o homem, há muito; se havia inclinado na visão profunda do seu próprio e de alheios mistérios, quando surgiram as primeiras pesquisas e interrogações de tipo científico.

A tese aristotélica padece, como muitas de suas concepções, de um racionalismo extremo, inspira-a um logicismo pouco humano, um cerebralismo rígido que a distancia, largamente, da vida real do homem, tal como no-lo apresenta a história. Segundo Aristóteles, a Filosofia teria feito seu surto, apenas quando o espírito humano, após as conquistas da arte e as primeiras tentativas de abstração e generalização científicas, conseguiu pairar nas frias alturas das supremas generalizações e das abstrações puras. Passaríamos da Ciência para a Filosofia, apenas, abstraindo mais vigorosamente e generalizando mais amplamente. Entre a posição científica e a filosófica do pensamento, a diferença seria, enfim, relativa ao grau, menor ou maior, de generalidade do saber. A curiosidade filosófica e a científica seriam da mesma natureza. No espanto que teria desencadeado o movimento inicial da explicação filosófica, não se expressariam exigências outras que as da pura razão que quer ver!

Essa consciência do mistério inserido nas entranhas da realidade não possuiria nenhuma dramaticidade, nela não se refletiriam angústias existenciais de um ser que interroga o mistério, que tenta devassar a escuridão das coisas para viver, para agir como ser pensante, para conformar sua ação com seu destino.

O ócio teria, na opinião de Aristóteles, possibilitado a Filosofia. O exercício do pensamento metafísico seria, assim, uma atividade de luxo, nele haveria alguma coisa de lúdico, de esporte intelectual, de satisfação de exigências higiênicas ou estéticas do espírito. Os homens que, tangidos pelo espanto, filosofaram pela primeira vez, não pareciam, assim, seres mortais, finitos, homens que morrem, que sofrem, espiritual e fisicamente, homens que experimentam duramente a consciência de sua contingência.

Segundo a concepção aristotélica, ao formular, sem angústias espirituais, as primeiras perguntas filosóficas, o homem não suplicaria certezas, verdades e explicações, sem as quais a ação se perturba e inibe, o espírito não compreende e estarrece, a vida perde o seu sentido, esvazia-se de todo o valor. Ao assumir uma postura filosófica diante do mundo, o homem fá-lo-ia mais como ser estético, ser lógico, do que como ser moral, ser ativo, que busca, freneticamente, tateando na escuridão inicial, certezas e verdades, explicações e idéias, que lhe atendam essa inextirpável exigência de conservação e aperfeiçoamento do seu próprio ser.

 

2 - O interesse moral como fator genético da Filosofia

 

A crítica que formulamos à concepção de Aristóteles, já vos sugeriu, talvez, nossa posição em face do problema, complexo e vital, da gênese do pensamento filosófico.

Pensamos que á gênese da Filosofia foi determinada pelo interesse, moral. O interesse, que é um atributo do ser contingente, subjetivamente considerado, é uma consciência de limitação, associada a uma tendência para superação desses limites ontológicos; é a tendência fundamental do ser finito que procura, fora de si mesmo, seu complemento, algo de que carece, um apoio para se conservar no ser, para aperfeiçoar sua vida.

Todo ser contingente move-se dentro de um sistema de interesses, trabalha na supressão dos seus limites, busca uma evasão no sentido da posse de uma plenitude ontológica. O homem, ser biopsíquico, tem interesses complexos: orgânicos e espirituais.

Quais os mais profundos e fortes? Quais os mais especificamente humanos?

A exigência de conservação, a tendência de todo o ser de se estabilizar na existência é de aperfeiçoá-la, manifesta-se no homem como apetite consciente de imortalidade, como desejo incoercível de segurança no existir. Suas primeiras experiências revelam-no mortal, finito, biológica e moralmente imperfeito; ele se sente um ser ameaçado e desamparado, experimenta uma angústia espiritual de base ontológica; tem a consciência viva e dramática do risco que corre, vivendo e agindo em face e no interior de um mundo onde pululam os mistérios, e onde desfilam, interminavelmente, vitais interrogações sem respostas; problematiza-se, sente-se  o mais agudo e dilacerante dos problemas.

Na base de toda essa inquietação, tão dolorosa, mas tão especificamente humana, está a sua consciência de ser temporal, sua percepção do escoamento de sua vida no tempo, do fluir do seu ser para um termo que ele ignora. "Nous sommes embarqués!" disse Pascal.

O maior interesse desse ser, assim torturado por sua solidão existencial, foi, certamente, o de buscar uma resposta que fosse a sua própria definição, que lhe dissesse o que era, quais suas relações com o Cosmos em cujo turbilhão fora lançado qual o sentido de sua vida, qual sua origem e finalidade, qual sua exata missão!

Foi, provavelmente, um tal estado psicológico, no qual se resumia todo o ser humano, com suas exigências complexas e vitais, que determinou as primeiras escaladas do pensamento para as explicações de tipo filosófico. Esta é a explicação mais humana, mais psicológica e mais histórica, do problema que abordamos. Ela se harmoniza com o que ensina a Psicologia sobre a curiosidade e sobre a atenção; ela é confirmada pela História da Filosofia; concorda com os dados mais certos e recentes da Etnografia e da Sociologia do Saber; concilia-se igualmente com os dados da Psicologia Social, relativos aos fatores que determinam surtos generalizados da curiosidade pelos temas filosóficos e religiosos, nos períodos de desajustamentos e crises de estabilidade dos quadros da vida social e da realidade psicológica da pessoa.

Dada a inexistência, dentro do limitado tempo de uma aula, das dimensões suficientes para um trabalho exaustivo de prova de nossa hipótese, faremos, apenas, em grandes traços, sua fundamentação psicológica e histórica.

 

3 - Fundamentação psicológica

 

A Psicologia ensina-nos que o estado intelectual denominado curiosidade é complexo; na sua constituição descobrem-se três momentos: o da surpresa, o do espanto e da interrogação. O primeiro é, essencialmente, sensorial; o segundo afetivo; o último propriamente intelectual. A surpresa é caracterizada por um desajustamento da consciência, por uma perturbação do curso dos estados subjetivos em face de um estímulo sensorial. O espanto é um estado fortemente emocional, dominado por uma reação afetiva agradável ou desagradável.

Na interrogação, o espírito se pergunta, diante de um objeto ou situação que o surpreende ou espanta: que "é" isto? que "vale" isto? É o momento propriamente intelectual da curiosidade. Só neste~ momento, é que se exerce, propriamente, a atenção voluntária ou reflexa.

Ora, a psicologia da atenção, os pacientes e profundos trabalhos de um Ebbinghaus, de um Ribot e outros, revelam-nos que ela possui uma larga base afetiva e está condicionada, no seu exercício, e nas suas duas formas - espontânea e reflexa - pelo interesse. Quanto maior for o esforço da atenção, quanto mais abstrata for a situação interrogada, maior deve ser o interesse que a alimente, apóie e estimule.

Utilizemos essas conclusões e ensinamentos da Psicologia na elucidação do problema que analisamos.

Quando Aristóteles afirma que a Filosofia resulta de uma curiosidade desinteressada, contradiz verdades conquistadas pela Psicologia experimental. Acreditamos que, uma vez constituída a Filosofia, uma vez dadas ao espírito as grandes respostas sobre os problemas que o interessavam, possa o pensamento filosófico exercer-se, levado por uma curiosidade cuja força dinamizadora seja, apenas, o interesse de conhecer mais e melhor a realidade. Mas, não seria psicológico que, quando se constituía e se configurava a forma filosófica do pensamento, o espírito humano fosse arrancado de sua indolência primitiva, para grandes escaladas metafísicas, tão só, por uma curiosidade desinteressada. Como se elevaria o pensamento à investigação da Causa Primeira, à reflexão sobre a natureza da alma, sobre as regras da ação humana, sobre a gênese do universo; como se exerceria o esforço lógico, a tensão dialética do espírito sobre esses problemas abstratos e transcendentais, se o homem, para realizá-lo, não estivesse dominado por um forte e fundamental interesse? E quais as exigências mais vivas e absorventes que as que se centralizam e encontram seu núcleo de irradiação no interesse moral acima descrito?

Mas, se este nosso modo de encarar o problema apóia-se em sólidos dados da Psicologia científica, terá ele a justificação histórica? Se é exata a solução que propomos, (ao problema da gênese do pensamento filosófico), deverão apresentar-se, como primeiros a serem formulados, os problemas éticos, problemas relativos à ação e ao destino humanos. Pois, se o pensamento filosófico entrou em exercício para satisfazer o interesse moral, então, a atenção dos primeiros filósofos deveria ter gravitado em torno dessas questões.

 

4 - Fundamentação histórica

 

Preliminarmente, afirmemos nossa discordância da generalizada opinião, que situa na Grécia o berço da Filosofia. Já, há muito, discutia-se a autonomia, a total originalidade do pensamento grego: autoridades na matéria, como Gladisch e Roeth negaram-na, afirmando a existência de um visível processo de infiltração, na Filosofia helênica, de influências provindas da Índia, do Egito, da China e da Judéia. Mas, nas primeiras décadas deste século, as magistrais investigações do orientalista francês Masson Oursell tornaram evidente a existência, na Índia, de uma forma de pensamento filosófico perfeitamente caracterizado e anterior às grandes sistematizações da metafísica dos gregos.

Como se apresentam, em que ordem de distribuição histórica, na evolução da Filosofia hindu, os problemas filosóficos? Segundo Masson Oursell, a mais antiga escola filosófica da Índia é a Escola Jaina. Ora o jainismo, primeira manifestação caracterizada do pensamento filosófico na História,. é marcado pela sua absorvente preocupação com os problemas éticos e pela sua quase total despreocupação com os temas abstratos da lógica e da cosmologia. A Escola Jaina, afirma Masson Oursell, "não filosofa", senão na medida em que o problema "moral" requer o exercício do pensamento abstrato. Não se poderia desejar uma mais sugestiva confirmação de nosso modo de ver o problema da origem da Filosofia!

Não constitui uma refutação de nossa tese o fato de ter sido 0 primeiro período da Filosofia, na Grécia, dominado pela preocupação com os problemas cosmológicos. Para resolver essa dificuldade observe-se que esse período cosmológico, na realidade, não foi o primeiro, pois, se ele representa uma fase de formação, foi antecipado por um outro momento - a fase de incubação ou preparação do pensamento filosófico grego, como reconhece Zeller. Nesse período, que envolve a doutrina pré-filosófica dos sete sábios da Grécia, os mistérios de Orfeu, as concepções cosmogônicas de Hesíodo, todo o espírito grego está empolgado pelos problemas éticos, relativos à ação e ao destino humanos. Esta é a razão por que Sócrates foi denominado o restaurador da Filosofia. Ele teria feito o espírito filosófico voltar-se para os grandes problemas que, inicialmente, o haviam suscitado. E toda a doutrina de Sócrates estava centralizada no problema ético.

A tese que defendemos encontra, ainda, na Filosofia Chinesa mais uma confirmação histórica. Toda essa Filosofia é uma grande Ética; este é o depoimento do mais atento e informado historiador da Filosofia na China: Zenker (Histoire de la Philosophie Chinoise).

Embora o exame do pensamento filosófico em Roma não apresente, para o nosso estudo, grande importância, dada a sua falta de originalidade, registremos que, como na China, e em grande parte na Índia, a Filosofia, na pátria de Marco Aurélio e de Sêneca, é uma vasta e rica Filosofia Moral.

Encerrando esse rápido exame dos fundamentos históricos de nossa tese, lembremos que ela encontra, nas condições de evolução, nos episódios do processo evolutivo do pensamento filosófico, após a cultura greco-romana, sugestivas confirmações.

A análise dos fatores que determinaram o surto das diversas expressões e correntes da Filosofia moderna e contemporânea, das grandes idéias que elas procuram definir e afirmar, dar-nos-ia oportunidade de surpreender, ao vivo, a ação dinamizadora, a força estimulante do interesse moral se exercendo nas construções do pensamento filosófico, não apenas na sua gênese, mas até mesmo na sua evolução posterior. Basta lembrar, na Filosofia moderna, as preocupações éticas de Kant, a quase obsessão do prático, do vital, do útil, na doutrina pragmática, e a índole essencialmente ética e humana do Blondelismo e do Existencialismo.

Para encerrar esta análise histórica, observamos, sem tentar qualquer fundamentação, que a Etnografia oferece-nos o registro de sugestivas formas de comportamento da inteligência do chamado primitivo atual, confirmadoras da concepção que formulamos nesta aula.

Resta-nos, agora, em grandes pinceladas, traçar o quadro das conclusões que se irradiam da solução que propomos ao problema da gênese da Filosofia.

 

5 - Conclusões

 

Frisemos que nela não se encerra nenhum pragmatismo: não afirmamos que o pensamento filosófico, inicialmente, despertado e tangido pelo interesse moral, se agite e entre em ação para chegar a uma solução "desejada", tranqüilizadora e estimulante da vida. Ele desperta para a análise de determinados problemas, sem predeterminar as soluções que dará aos mesmos. Não se filosofa, inicialmente, para afirmar a Causa Primeira e a imortalidade do espírito. O pensamento, apenas, se agita em busca da verdade sobre esses problemas.

Observamos ainda que, se impugnamos a tese de Aristóteles, é porque, como dissemos, com ela só procura explicar a constituição, a gênese da Filosofia. Se o genial grego, com sua doutrina tentasse expor como, uma vez constituída a posição filosófica do pensamento, este se exerce, nenhuma objeção teríamos contra sua lição.

Assim, concordamos que, após o seu surto, o espírito filosófico se possa exercer, tangido por exigências lógicas, por necessidades de sistematização, de unificação da experiência, de depuração abstrativa, de esforço generalizador, atendendo a apelos exclusivamente racionais, a fim de conhecer para conhecer. Negamos, apenas, o influxo exclusivo de tais exigências puramente racionais, na gênese da Filosofia. Nosso ponto de vista, assim, não somente se distingue, mas até mesmo se opõe à conhecida concepção de Schopenhauer, sobre os fatores determinantes da forma metafísica de explicação.

Se nossa tese é exata, falsa se apresenta, igualmente, a afamada lei dos três estados de Comte: a forma filosófica de explicação do mundo não representa um simples episódio, um período transitório na evolução do pensamento. O homem foi sempre um animal metafísico, um animal das primeiras causas. Da lei dos três estados, uma sugestão confirmadora de nossa tese e digna de ser acolhida é a que indica a preocupação teológica, como constitutiva do primeiro estado de evolução do pensamento. Comte, nesta afirmação, está mais próximo da realidade histórica e psicológica, que o genial mestre grego. Mas essa prioridade histórica do estado teológico, longe de anunciar sua imperfeição, denuncia sua importância, indica a primeira, a vital exigência que o espírito humano experimentou: a exigência do Absoluto.

Dizia Vico que a natureza das coisas está na sua origem. Analisando o problema da origem do pensamento filosófico, indiretamente, abordamos o de sua natureza. A solução do problema da origem ilumina ainda outras questões vitais de epistemologia filosófica, como as relativas à função, ao valor e à perenidade da Filosofia. Dessa solução irradiam-se, igualmente, fortes sugestões sobre a função da inteligência no ser humano, sobre as relações íntimas do Cristianismo com a Filosofia, e desta com a vida total do homem.

Limito-me, concluindo esta aula - que é um feixe de sugestões - a acenar para o que há de humano na Filosofia, uma vez explicada sua gênese dentro da perspectiva de nossa tese.

Filosofar, dentro desse ângulo de visão, é sempre ensaiar, bem ou mal, a salvação do espírito, é abandonar-se à vida, é dispor-se a inesperados enriquecimentos ontológicos e morais, é consentir em . ser, com a inteligência e com amor. Filosofar será, então, um processo vital do espírito que busca a Vida, buscando a Verdade.

E os primeiros homens que filosofaram eram desmemoriados da Palavra Criadora, que ensaiavam reconstituir, soletrando, penosamente, com os olhos da razão, no livro dos fenômenos e essências, a esquecida e primitiva lição sobre o sentido da vida, sobre o mistério do ser, sobre o destino do homem.

Filosofar é experimentar a nostalgia do Verbo, - Filosofia é súplica da Inteligência; é, como disse Blondel, a inteligência orante. O problema central da Filosofia, o que a gerou, o que sutilmente lhe alimenta a vida, é o mesmo problema central da Teologia Cristã: o problema da salvação da alma. Toda Filosofia fiel à sua natureza e à sua humana função será uma Epifania! E sua derradeira e suprema lição pode-se resumir nesta passagem evangélica:

"Uma só coisa é necessária..." "De que serve possuíres o universo todo, se vens a perder tua alma?"


[i] Aula inaugural publicada em Anais das faculdades Católicas de Porto Alegre, 1944.