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A FILOSOFIA ESPIRITUALISTA E A PSICOLOGIA EXPERIMENTAL[i].

 

Uma exigência filosófica, a necessidade especulativa e prática de conhecer o sentido e o valor do espírito humano, determinou a gênese da Psicologia. Ela surgiu assim, sob o signo metafísico. O "conhece-te a ti mesmo" de Sócrates é a síntese do programa que lhe atribuiu a cultura antiga. Essa exigência filosófica, que gerou a ciência da alma, acompanhou a sua evolução através da história e, ainda em nossos dias, mau grado os vaticínios de Augusto Comte, é o punctum pruriens da atividade dos psicólogos. Se o homem é o animal das primeiras causas, um animal metafísico, como o definiu W. James; se a exigência filosófica é uma fatalidade lógica, uma necessidade resultante da própria estrutura racional do homem, uma imposição da atividade espontânea das leis do espírito, então a vida psíquica será, sempre, entre todas as manifestações da realidade, a mais torturada pelas interrogações dos filósofos. É que em torno do nosso mundo interior gravitam todos os problemas que o pensamento humano pode suscitar e analisar, pois há muita verdade na velha e profunda frase de Anaxágoras: - "O homem é a medida das coisas". O mundo, só o compreendemos, só o podemos representar humanamente. Dentro do erro subjetivista, esconde-se uma verdade: no mistério do eu centralizam-se todos os mistérios e sem um esforço de compreensão do nosso mundo interior, vã é toda a tentativa de explicação total da realidade. A psicologia constitui, assim, o ponto de partida de todo 0 verdadeiro esforço explicativo do homem e do mundo. Acrescentemos, porém, que, inversamente, a compreensão profunda de nós mesmos não é possível sem os dados de uma concepção unitária, de uma interpretação da realidade objetiva. Como disse Max Scheller, a metafísica só é possível, se supusermos que os dados da nossa experiência subjetiva constituem a tradução do que existe fora de nós, na realidade do cosmos. Essas as razões da perenidade da exigência filosófica no campo da cultura psicológica. Só após séculos de psicologia metafísica surgiu a psicologia experimental, analisando problemas menos dramáticos, de menor interesse humano, preocupando-se mais em descrever do que em interpretar profundamente o mundo interior.

Na vida contemporânea, a psicologia atende, inegavelmente, a solicitações bem diversas dos interesses filosóficos. Exigências pedagógicas, industriais, médicas, estéticas, jurídicas e históricas suscitam-lhe numerosos problemas e dela recebem fecundas soluções. Mas dentro do momento cultural que atravessamos, de tecnicismo rígido e de pragmatismo radical, o interesse filosófico ainda tange, com energia incomparável, as investigações psicológicas mais positivas e experimentais. O panorama da atual cultura psicológica é constituído por uma multidão de escolas que se diferenciam pela diversidade de seus pontos de vista filosóficos sobre a natureza e a gênese da realidade subjetiva. A inquietação metafísica, embora, muitas vezes, dissimulada e latente, está sempre real no âmago das grandes escolas. Basta lembrar os pressupostos filosóficos da psicanálise de Freud, do behaviorismo de Watson, da fenomenologia de Husserl, do intuicionismo de Bergson, da psicossociologia de Durkheim, o caráter metafísico das teorias paralelista e dualista... Uma psicologia agnóstica, no sentido tendencioso da expressão, única e exclusivamente empírica e experimental, é ainda um ideal a realizar. O esforço que, nesse sentido, hoje se observa, tem uma significação bem diversa do que se tentou no século passado, sob a influência da filosofia de Augusto Comte.

O agnosticismo que se preconiza, atualmente, tem o valor de um método de trabalho, é um agnosticismo parcial e circunstancial, que ignora, mas que não nega os problemas metafísicos da alma. Como observa Alfredo Binet, "a psicologia experimental quer ser independente da filosofia, mas não exclui nenhuma investigação metafísica". Dentro da atual psicologia, continua o célebre criador das escalas métricas da inteligência, nota-se uma forte tendência dos mais ilustres experimentadores a enfrentar os grandes problemas filosóficos da alma e, diante deles, tomar posição definida. "Quem afeta desprezar a metafísica em psicologia, conclui Binet, e se crê um puro experimentador, é quase sempre um metafísico sem o saber". O interesse filosófico constitui, pois, na cultura psicológica contemporânea, uma fonte de salutar inquietação e de fecunda atividade investigadora. A ciência atual não renunciou a sua mais nobre e última finalidade, a de contribuir, com dados positivos e experimentais, para a solução dos problemas transcendentes da vida espiritual do homem. A exigência metafísica, como advertiu Claude Bernard, mantém, assim, a sede do mistério, alimentando o fogo sagrado da investigação, que nunca se deve apagar no espírito do sábio.

 

1 - Caracteres gerais da psicologia contemporânea

 

A compreensão dos caracteres gerais da psicologia, na atualidade, exige um estudo dos seus rumos filosóficos no século passado. Toda cultura trouxe sempre, no seu bojo, inevitáveis antinomias. Nenhuma, porém, como a do século XIX. O seu tecido ideológico é marcado por fortes incoerências internas, por ilogismos fundamentais. O século do agnosticismo, da renúncia verbal à metafísica foi, na realidade, o período mais prático e clandestinamente filosófico. Decretando o exílio da metafísica, o século de Comte transferiu à ciência a tarefa da explicação profunda e total da realidade. Confundiu, num só, dois tipos de conhecimento, cuja diferenciação era uma conquista secular. Criou o cientificismo, que procurava, na ciência experimental e positiva, a solução de todos os problemas da vida.

Incognoscibilidade do supra-sensível, lei dos três estados, transformismo radical, origem simiesca do homem, (redutibilidade do psíquico ao biológico e deste ao mecânico) foram doutrinas tabus que estruturaram a mentalidade do século passado. Impossibilidade e ilegitimidade da intróspecção, redução da consciência a um epifenômeno cerebral, identificação do psiquismo humano com o psiquismo animal, redução deste a tropismos, determinismo rígido da vida interior pela mecânica da associação, materialidade do eu - eis as idéias metafísicas latentes na psicologia desse período histórico.

Tais diretrizes filosóficas entraram em crise, ao findar a época que Daudet, um pouco dura e injustamente, denominou "o estúpido século XIX". Operou-se uma reação geral e profunda, cujos efeitos caracterizam a psicologia contemporânea. No campo da filosofia natural e da biologia, o evolucionismo materialista e o mecanicismo foram rigorosamente impugnados pela crítica científica e filosófica. O agnosticismo declinou com o reconhecimento da legitimidade e, mesmo, da necessidade absoluta da explicação metafísica. O cientificismo desmorona aos golpes da crítica sobre o valor e os limites da ciência e em face da falência de seus próprios resultados e conclusões. No campo da psicologia, Wundt, Brentano e Lipps, na Alemanha, William James, na América do Norte, Bergson, Fouillée, Pierre

Janet, na França, iniciaram uma vigorosa reação à psicologia materialista.

Como observa um historiador da psicologia contemporânea, esta se caracteriza pelo ecletismo dos seus métodos; por admitir, ao lado da explicação causal, a explicação descritiva; por ser antiassociacionista, renunciando à busca de elementos últimos, cuja combinação explicaria as manifestações complexas da vida psíquica; por ser qualitativa, aceitando apenas a apreciação quantitativa dos fatos subjetivos, indiretamente, nos seus concomitantes físicos e orgânicos; por guardar, enfim, contato com a filosofia, oferecendo a esta as conclusões de suas experiências. Após esse ensaio de caracterização geral da psicologia contemporânea, analisemos o modo como as suas escolas e diversas correntes encaram alguns dos grandes problemas do mundo interior e as ilações filosóficas, que se podem deduzir de seus resultados certos e de suas mais sólidas teorias.

 

2 - Problema do objeto da psicologia

 

Uma ciência só é autônoma quando tem objeto e método próprios.

A psicologia, que nasceu sob o signo do espiritualismo, não poderá existir dentro de uma concepção materialista lógica e coerente. Esta nega-lhe a existência, não lhe reconhecendo um objeto próprio. A história ensina que, no materialismo conseqüente, a psicologia encontrou sempre os maiores obstáculos à sua constituição, autonomia e aperfeiçoamento. Postulando, em nome de uma metafísica em conflito com os dados da experiência e do senso comum, a redutibilidade do fato psíquico a realidades orgânicas e físico-químicas, considerando a consciência uma ilusão e o método introspectivo como ilegítimo e estéril, o materialismo é antipsicológico, tende a fazer do estudo dos fenômenos de consciência um mero capítulo da fisiologia cerebral. O ideal de redução monística da pluralidade do real é, para a psicologia, um leito de Procusto. A concepção espiritualista do mundo, respeitando a complexidade do real, afirma a originalidade do fato subjetivo e concede à psicologia o direito de existência, consagrando-lhe um objeto próprio e oferecendo-lhe um clima ideológico propício à sua expansão e aperfeiçoamento.

É o que acaba de reconhecer, com a autoridade de um puro experimentador, o maior dos psicólogos da Itália contemporânea,

Sante.de Sanctis. "A psicologia, diz ele, é incompatível com o materialismo e o mecanicismo". Atualmente, com exceção da escola objetivista de Watson, todas as outras, reconhecendo o caráter irredutível do fenômeno subjetivo, vêem no seu estudo 0 objeto próprio da psicologia. Essas escolas poderão divergir relativamente aos critérios de caracterização do fato psíquico, no determinar a sua extensão entre os seres vivos, na fixação dos seus limites; todas, porém, reconhecem que o objeto próprio da ciência da alma é o estudo do fato subjetivo, como realidade, sui generis, original. Algumas dentre elas, como a psicanálise de Freud, a fenomenologia de Husserl e a psicologia de Spranger e Dilthey, chegam ao exagero de limitar suas investigações e construir suas teorias sobre um material exclusivamente psíquico, desprezando o estudo dos concomitantes orgânicos e Básicos da vida consciente. William James, registrando os rumos materialistas da psicologia do seu tempo, previu que ela iria mudar de orientação. Sua previsão realizou-se. A orientação atual é nitidamente antimaterialista: as afirmações de um Le Dantec, de um Maudsley, de um Taine ou de um Paulhan, que definiam a consciência como um preconceito, uma imperfeição ou um luxo, pertencem, hoje, à paleontologia das hipóteses psicológicas.

 

3 - Problema do método

 

Contra o positivismo e contra a escola condutista norte-americana, a psicologia contemporânea reconhece a legitimidade, o caráter fecundo e científico do método introspectivo.

A crítica do valor da introspecção, feita por Augusto Comte e repetida pelo behaviorismo, foi já, há meio século, definitivamente superada e toda a história dos últimos 50 anos de investigações psicológicas é uma refutação dos equívocos do fundador do positivismo. Já no século passado, o insuspeito Stuart Mill escrevia contra as idéias de Comte: "Considero um grande erro, em princípio, e gravíssimo, na prática, o preconceito da renúncia à introspecção".

Contra a impossibilidade do método subjetivo, afirmada por Comte, estão as investigações de quase todas as escolas psicológicas. Basta lembrar os estudos da célebre escola de Würzburgo, de Külpe, criadora da introspecção provocada, e os trabalhos da escola de Paris, de Alfredo Binet. A um sofista que negava a possibilidade do movimento, um filósofo grego respondeu, caminhando... Contra Comte, que negava a possibilidade da introspecção, a psicologia moderna responde fazendo introspecção e, com o seu uso, obtendo os mais fecundos resultados científicos... Aliás, a crítica de Augusto Comte se inspirava numa teoria materialista - a frenelogia de Gall, que é hoje uma doutrina fóssil, e num equívoco sobre o verdadeiro sentido do método introspectivo.

Comte não distinguia a introspecção simultânea da retrospectiva. À esta última, a sua crítica não atinge. E, no entanto, esta é a que constitui, propriamente, o método introspectivo. Aliás, mesmo quanto à introspecção simultânea, inúmeras experiências de Ach, Oesterreich e Myers provaram a sua plena possibilidade. Relativamente à suposta esterilidade do método introspectivo, há, nesta afirmação, ignorância da história da psicologia. Foi a psicologia introspectiva, como já observou alguém, e não o objetivismo positivista ou o condutismo de Watson, que inspirou a criação da pedagogia experimental de Neumann, da psicologia, do testemunho de Stern, das escalas métricas da inteligência de Binet e Simon, que orientou os trabalhos de Ebbinghaus sobre a memória, os de Prünn e Michotte sobre o ato livre, as investigações da escola de Messer, Külpe e Marbe sobre a idéia e a imagem, da escola francesa de psicopatologia de Janet, os estudos da psicanálise e tantos outros trabalhos que vieram enriquecer o conhecimento do mundo interior.

Por isto, com muita razão observa o príncipe dos psicólogos italianos - Sante de Sanctis: "O método introspectivo continua sendo o método fundamental da psicologia".

4 - Problema da consciência

 

Du Bois-Reymond classificou entre os problemas insolúveis, para o monismo materialista, o da origem e natureza da consciência. Na realidade, o titânico esforço explicativo do materialismo do século passado fracassou diante do mistério da consciência. A teoria da consciência como epifenômeno cerebral "padecia de todos os vícios epistemológicos e metafísicos da concepção materialista", que os insuspeitos Kretschmer e Hôffding qualificaram de ingênua e primitiva. Como teoria de inspiração evolucionista, ela era, aliás, como observa Viqueira, contraditória, paradoxal. Dentro da hipótese darwiniana, era impossível explicar a gênese e o desenvolvimento progressivo da consciência, uma vez que esta fosse completamente inútil, mero acidente da fisiologia nervosa, pois, segundo o evolucionismo, só o útil, na luta pela existência, surge, conserva-se e evolui. A crítica e a observação provaram, à saciedade, além disso, que a consciência não é simples efeito de processos cerebrais, elemento inerte e impassível em face da realidade interior e exterior. Wundt, William James, Brentano, Janet, Bergson, os modernos trabalhos das escolas alemãs de Koffka, Kõhler, Stern, Spranger e Jaspers, da escola austríaca psicanalítica e da escola de Roma, de Sante de Sanctis, concordam em reconhecer que consciência é realidade, é causa, é energia transformadora, é força geradora de sínteses, fator de influências profundas sobre o curso da nossa vida subjetiva e, indiretamente, sobre o próprio mundo exterior. Pierre Janet, impugnando o epifenomenismo e o atomismo, escreveu, na sua obra Automatismo psicológico, esta página digna de registro: "No momento em que, pela primeira vez, um ser rudimentar teve a sensação vaga da dor, realizou-se no mundo uma verdadeira criação. Esta criação repete-se em cada novo ser dotado de consciência, pois, rigorosamente falando, a consciência de um ser, que desperta para a vida, não existia no mundo. A consciência é, pois, em si mesma, desde o seu surgir, uma atividade sintética, uma força criadora".

E, recentemente, outro eminente experimentador, igualmente avesso às influências metafísicas no campo da psicologia experimental, Sante de Sanctis, criticando, em nome da experiência e dos fatos, o epifenomenismo materializa, escreveu: "O consciente domina o subconsciente, determina-o, limita-o e o ideal do homem é tornar-se sempre mais consciente. Perfeição é consciência. Parte-se da inconsciência e do automatismo do instinto para atingir a autoconsciência e a vontade; a humanidade superior é consciente e voluntária... Repudiamos a doutrina da consciência como epifenômeno e afirmamos a superioridade, a transcendência do fato consciente..."

É dever do psicólogo insistir neste ponto: que o tender para a consciência constitui o alvo de todo o curso evolutivo dos estados biopsíquicos.

Quanto ao associacionismo, que procurava na sensação e na imagem os elementos da vida psíquica e que, com a sua combinação pelas rígidas leis associativas, tentava explicar a vida psíquica, em todas as suas manifestações, a psicologia atual constitui uma formal e peremptória negação de suas teses. Wundt, com a sua doutrina da apercepção, as críticas de Bergson, James e Janet, deram o golpe de morte no atomismo psicológico. A veleidade associacionista de fixar elementos psíquicos e "proceder, por via de síntese, à reconstrução da personalidade e do eu", ao simplismo da representação quantitativa da vida psíquica, à doutrina da consciência como soma, a psicologia contemporânea responde, verificando o caráter qualitativo do fato consciente, reconhecendo, nos chamados elementos - as sensações, verdadeiras abstrações e, na percepção, forma mais simples da vida psíquica, um produto em que entra todo o mundo interior. A psicologia atual "parte da unidade da consciência e dos processos que nela se realizam; não procura elementos-partes, apenas elementos-aspectos". A Gestaltteoria, uma das mais recentes escolas psicológicas, é um índice do repúdio definitivo ao associacionismo pela psicologia atual. Relativamente ao valor, extensão e relações da consciência com a vida psíquica, merece uma breve consideração a doutrina da escola psicanalítica de Freud. Limitar-me-ei a frisar a significação que ela possui dentro da cultura atual. A psicanálise representa o antídoto da doutrina behaviorista de Watson. Ela faz, se me permitis a expressão, uma psicologia psicológica.

Parte da realidade da existência do mundo subjetivo, e, respeitando a natureza deste, aplica ao seu estudo meios de pesquisa e verificação de caráter introspectivo. Há talvez, na psicanálise, excesso de renúncia aos dados fisiológicos na explicação dos fenômenos subjetivos; ela encarna, porém, uma reação salutar contra os abusos e ilusões de uma psicofisiologia materialista. A psicanálise possui, ainda, uma alta significação filosófica, quando estabelece o fato da continuidade da vida psíquica. Na vida interior, tudo obedeceria a um encadeamento rigoroso.

Freud tenta construir uma psicologia positiva como um sistema fechado: as influências físicas e fisiológicas são exigidas, apenas, para pôr em atividade o mundo subjetivo; não figuram entre as peças, entre os elementos constitutivos da vida interior. Os conceitos de censura, recalque e sublimação constituem, igualmente, na escola de Freud, o reconhecimento da consciência como energia e força criadora da consciência como fator causal. Essas idéias fundamentais da psicanálise sofreram ulteriormente uma deturpação de seu verdadeiro sentido, através de uma interpretação filosófica arbitrária. Essa interpretação levou Freud a uma metapsicologia, que, geralmente, está viciada de apriorismos e de generalizações ilegítimas, inaceitáveis. O seu monismo psíquico, que tenta reduzir todas as formas da vida subjetiva a uma tendência fundamental - a libido, a exagerada hegemonia atribuída ao dinamismo inconsciente no curso da vida interior, são teses que viciam a obra do psicólogo austríaco. Mas, dentro dessa visão da vida psíquica, há dados a utilizar e sugestões a recolher. O sistema passará, mas muitos dos seus elementos constitutivos já estão integrados à ciência psicológica. Como observa o ilustre psicólogo, nunca esqueceremos que a psicanálise constitui uma das mais sugestivas verificações do valor da consciência e de sua influência no curso da vida psíquica.

 

5 - Psiquismo animal e psiquismo humano

 

Na zoopsicologia contemporânea encontramos alguns experimentadores que, ainda sob a influência do evolucionismo, reduzem o psiquismo animal a simples expressões mecânicas, a tropismos e não o distinguem do psiquismo humano. Loeb, Bohn e Watson são hoje os principais representantes dessa orientação. Contra ela surgiu uma forte e extensa reação. Fabre, Wassmann, Richet, Claparède e outros negam a redutibilidade do psiquismo animal a meros tropis

A orientação materialista funda-se, aliás, em teorias biológicas que, como é sabido, receberam o protesto veemente dos mais notáveis naturalistas contemporâneos. Acresce que as recentes e já célebres investigações dos psicólogos de Berlim sobre os símios, em Teneriffe e as rigorosas análises da mais afamada escola de zoopsicologia da Europa, a escola de Amsterdam, levaram psicólogos de nome mundial, como Kõhler e Buytendijk a reconhecer, em nome dos fatos e da experiência, a irredutibilidade do psiquismo animal e forças mecânicas e, doutro lado, a proclamar a transcendência da vida psíquica humana. A obra de Kõhler, intitulada A inteligência dos símios superiores - e o profundo trabalho de Buytendijk, denominado A psicologia dos animais - fruto de 15 anos de investigações, constituem uma vigorosa afirmação antimaterialista no campo da zoopsicologia atual. Buytendijk, ao terminar sua notável obra, observa que, só à luz de uma concepção teísta e cristã do mundo, se podem interpretar as maravilhas do psiquismo animal.

 

6 - Transcendência e espiritualidade do psiquismo humano

 

Liberdade volitiva e pensamento sempre foram considerados como manifestações de uma vida espiritual na natureza humana e como enigmas insolúveis diante do monismo materialista. O esforço deste orientou-se no sentido de reduzir a idéia abstrata à imagem material e de estabelecer a ilusão do livre-arbítrio. Quais os resultados das investigações da psicologia atual, relativamente a esses dois vitais problemas? Os estudos experimentais sobre o fenômeno da ideação, feitos por experimentadores das mais diversas escolas e quase todos estranhos, quando não avessos, às preocupações metafísicas, levaram a psicologia contemporânea a estabelecer, experimentalmente, a clássica doutrina da irredutibilidade da idéia à imagem. As inúmeras e rigorosas investigações dos mais célebres psicólogos da atualidade, como W. James, Binet, Külpe, Messer, Dür, Woodworth, Dwelshauvers e Marbe, provaram à saciedade, que arbitrária e falsa era a identificação estabelecida pelo materialismo entre o pensamento e a imagem. A filosofia espiritualista encontra, assim, nos laboratórios da psicologia atual, a confirmação científica de uma das suas teses basilares.

Binet e Simon provaram, de modo experimental, que o pensamento pode existir sem imagens e, mesmo, sem palavras. Na sua obra Estudo experimental da inteligência, Alfredo Binet escreveu estas sugestivas palavras: "Verificamos que o trabalho do pensamento não é suficientemente representado pelo das associações. É um mecanismo mais complexo, que supõe constantemente operações de escolha e de direção. Observamos igualmente que a imagem é muito menos rica que o pensamento; este, ora interpreta a imagem que, freqüentemente, é informe e indefinida, ora manifesta-se em contradição com ela [...] formando-se e se desenvolvendo, muitas vezes sem associar-se a qualquer imagem [...]. Enfim - conclui Binet -, frisando a significação metafísica de suas experiências, este é o fato capital, fecundo em conseqüências para os filósofos; toda a lógica do pensamento escapa à imaginação". Exames de imbecis e de afásicos confirmaram esta conclusão de Binet.

A filosofia espiritualista não podia pedir mais à psicologia positiva: esta, experimentalmente, determinou a verdade de uma das suas clássicas provas da espiritualidade da alma humana.

Relativamente à liberdade da volição, Prünn, Dürr, Ach, Michotte, W. James, Bovet e outros psicólogos chegaram a conclusões que se harmonizam igualmente com a tese da existência, no homem, de "uma força volitiva orientada por fenômenos intelectuais, distinta das reações motoras e sensitivas". Essas experiências estabeleceram que "o ponto de aplicação imediata do esforço voluntário consiste na fixação do juízo que representa o bem visado pela tendência volitiva".

A vontade livre, como diz De la Vaissière, não introduz nenhum conhecimento, nenhuma tendência nova, ao menos diretamente; ela prolonga, apenas, a duração de um influxo que existe independentemente dela.

"Ela não diminui em nada o determinismo exigido pela ciência, deixando intacta a universal aplicação dos princípios fundamentais da energética, a conservação e a degradação da energia. Sua intervenção modificaria, apenas, a rapidez da queda dessa energia". Essas, entre muitas outras, que o caráter sintético deste trabalho não nos permite estudar, as sugestões que apresentam ao filósofo, da psicologia experimental contemporânea, relativamente à espiritualidade do psiquismo humano.

 

7 - A imortalidade da alma e a psicologia experimental

 

Numa frase profundamente humana, disse Pascal que seria um monstro o homem que se mantivesse glacial e indiferente diante desta dramática interrogação: "Sou mortal ou imortal?"

Nesta pergunta, de fato, palpita e freme toda a angústia espiritual da humanidade. Goethe interpretou, genialmente, o panorama histórico, ao afirmar que o motivo supremo, o tema profundo de todas as civilizações e culturas, que nascem e desaparecem, é a luta entre o espiritualismo que afirma, e o materialismo que nega a imortalidade humana.

É na interpretação, na análise e compreensão do nosso mundo interior, que acharemos a resposta humana ao torturante problema da imortalidade. O sentido último de toda essa atividade febril de psicólogos que experimentam nos laboratórios e meditam nos gabinetes é, incontestavelmente, a busca dessa resposta positiva, experimental ou filosófica. Se a psicologia quisesse esgotar sua tarefa com a criação da psicotécnica, se ela pusesse toda a sua finalidade na simples determinação de regras práticas de conduta, então teria traído o seu destino e as suas investigações, experiências, hipóteses e doutrinas não valeriam uma hora de estudo de todo o homem que guardasse, intactas, aquelas exigências que o distinguem dos brutos.

O displicente, o diletante Renan, num momento de sinceridade, confessou: "Que resta da ciência, se lhe impedis a realização de seu fim filosófico? Pormenores microscópicos, capazes de fustigar a curiosidade dos chamados homens práticos e de servir de passatempo para aqueles que nada de melhor têm a fazer, pormenores, porém, sem nenhum interesse para quem vê na vida alguma coisa de sério e de grave e se preocupa com as exigências morais do homem".

Os fatos provam, aliás, que os sábios têm a consciência desta missão última do conhecimento científico. É o que -nos sugerem as apaixonadas discussões sobre a geração espontânea, o darwinismo, as teorias lombrosianas e sobre·os grandes problemas psicológicos que foram expostos nesta palestra.

Embora à pura psicologia experimental não caiba a tarefa de apresentar uma solução definitiva do problema da imortalidade, ela, no entanto, fornece dados e determina fatos cuja significação filosófica os grandes psicólogos procuram pôr em relevo e integrar nas linhas de uma concepção unitária do mundo.

Assim é que, nas obras de experimentadores como Wundt, W. James, Alfredo Binet, Fechner, Bergson, Hoffding, Richet e outros, o problema da imortalidade é, direta ou indiretamente, abordado. Tudo mostra que a psicologia contemporânea tende, cada vez mais, ao re- conhecimento da imortalidade pessoal. O materialismo escabuja, ferido pelas próprias armas com que procurou matar a eterna, a grande esperança do coração humano, a esperança da imortalidade. Na sua recente obra, intitulada - A psicologia contemporânea - Viqueira, ao estudar a influência materialista na atual ciência da alma, escreve: "Apenas se encontram, hoje, restos isolados dessa corrente filosófica [...] estamos em marcha, não para o materialismo, mas para o espiritualismo". Conclui Viqueira, advertindo que, quanto à questão da imortalidade, observam-se hoje tendências favoráveis a uma solução científica, positiva, do problema".

Sante de Sanctis, na sua última e magistral obra, em que resume 25 anos de investigações pessoais e de sua escola de Roma, afirma, como vimos, que a psicologia é incompatível com o materialismo.

Alfredo Binet, concluindo o seu livro sobre A alma e o corpo, depois de dizer que a consciência é, no mínimo, tão real como a matéria, observa que esta conclusão da psicologia positiva "legitima as esperanças de sobrevivência do coração humano".

E, dentro da corrente psicológica que, atualmente, ainda abriga veleidades materialistas, na escola norte-americana de Watson, um dos seus mais autorizados representantes - Howard Warren, escreveu no seu recente Compêndio de Psicologia: "É possível que novas investigações, sejam de psicologia pura, sejam as chamadas experiências de metafísica, venham a fornecer-nos provas decisivas da existência post mortem". Wundt, o criador da psicologia experimental, interpretando os resultados de 40 anos de rigorosos estudos da Escola de Leipzig, assim se exprimiu: "Os resultados de minhas investigações não se conciliam com a hipótese materialista. Unicamente o animismo aristotélico resulta como conclusão metafísica plausível da psicologia experimental".

W. James, outro grande mestre da psicologia atual, afirmou, vigorosamente, a espiritualidade da alma humana. "Quanto mais vivo, disse ele, mais cresce minha convicção da existência da imortalidade pessoal". Bergson é, igualmente, hostil à tese materialista. No seu estudo sobre As relações entre o cérebro e a alma, diz ele que a prova da espiritualidade desta, nós "não a devemos aos materialistas, pois tudo a indica na vida psíquica. Os materialistas é que nos ficam devendo a prova de que a alma não é espiritual". "Se, como ensaiamos provar, continua Bergson, a vida mental ultrapassa a vida cerebral, se o cérebro se limita a traduzir, em movimentos, uma mínima parte do que se passa na consciência, então a imortalidade se torna tão provável que a obrigação da prova caberá a quem a negue, mais do que a quem a afirme, pois a única razão que poderíamos ter para crer na extinção da consciência, após a morte, seria o fato de o corpo se desorganizar e esta razão nenhum valor tem, se a independência ao menos parcial da consciência, em relação ao corpo, for, como é, uma verdade demonstrável pela experiência".

A psicologia neo-escolástica, integrada no sistema da filosofia aristotélica e tomista, sistema equilibrado e amplo, onde se conciliam muitas das antinomias da cultura atual, afirma a existência da imortalidade pessoal. Eminentes psicólogos escolásticos incorporam os dados positivos da moderna ciência da alma às grandes linhas da filosofia perene, que, na definição de Bergson, é "a metafísica natural da inteligência humana".

Pelas informações lacunosas desta singela palestra, de apressada elaboração, vedes que a filosofia espiritualista, longe de se opor às conquistas reais da psicologia experimental, delas é a única conclusão metafísica plausível, na frase do insuspeito Wundt.

Na esfera de cultura moderna ainda há, pois, espaço para o homem cair de joelhos, na atitude da adoração, empolgado pela visão dos mistérios que o cercam, e, principalmente, pela contemplação do mais profundo dos mistérios, que é a consciência humana, que, como a pequena concha onde ressoam as vozes do oceano que a plasmou, traz em si, confusamente, as divinas ressonâncias da Palavra Criadora.

O "conhece-te a ti mesmo", de Sócrates, é a estrada real que nos conduz ao Absoluto, ao Infinito, a Deus.

Disse divinamente Jesus Cristo: "No vosso interior está o reino de Deus".

 



[i] Conferência pronunciada em 1935.