REFLEXÕES SOBRE A DEFINIÇÃO DE VALOR1

 

            O notável filósofo J. De Finance, em seu Ensayo Sobre el Obrar Humano, (Madrid: Gredos, 1966, p. 81) afirma: "A noção do valor, tão importante na filosofa contemporânea, é particularmente difícil de ser fixada, desde o momento em que se recuse sua identificação com a noção clássica de bem. Deveremos, então, declarar supérflua a introdução desta idéia? - pergunta o autor, para responder que não, pois, - esta noção possui uma originalidade e utilidades próprias, que devem ser bem examinadas".

            Após, o eminente professor da Universidade de Paris, através de agudas análises metafísicas, éticas e psicológicas sobre as relações do valor com o agir, expõe sua visão pessoal do fenômeno do valor, cujo conceito, no entanto, situar-se-ia, tal como o de bem, como uma prima simplicia. Não seria definível. O valor seria algo que se vivencia em múltiplas formas e situações, mas que é irredutível a uma fixação conceitual numa fórmula definidora.

            Esta é a posição assumida pelo ilustre pensador face ao problema da definibilidade do valor.

Seria supérfluo afirmar, aqui, que nas obras tão opulentas em análise axiológicas de Lotze, de Max Scheler, Nicolai Hartmann, Louis Lavelle e Johannes Hessen, não encontramos uma definição do valor. Ele é descrito. Não é definido.

            É óbvio que o fenômeno do valor foi por esses autores analisado e contemplado em sua irredutível realidade, na imensa riqueza de suas dimensões e aspectos. Essas análises, no entanto, gravitam to­das em torno de uma descritiva fenomenológica , renunciando-se ao esforço de fixação da essência própria do valor.

            Estamos, assim, em Axiologia, após quase um século de investigações, carentes de um vocabulário preciso, possuindo, tão só, uma terminologia ambígua, de uso regional, válida apenas no círculo de uma escola, nos limites das pesquisas de uma equipe de axiólogos.

            Não seria pertinente e oportuno partirmos para uma tentativa, cheia de riscos e de dificuldades, de fixação do conceito do valor? Ou, se não tivermos êxito nessa tentativa, não seria algo urgentemente exigido pela atual situação de Axiologia, buscar, ao menos, a construção de uma hipótese de trabalho que possibilite, na Filosofia do valor, a conquista de um mínimo de homogeneidade doutrinal e de precisão vocabular?

            Ao partir para esta pesquisa, que suponho necessária e legítima, lembremos que a Filosofia, como pensava Sócrates, no depoimento de Xenofonte, "é uma perspectiva do espírito".

O problema axiológico, a busca do conhecimento do valor em sua natureza quase inefável, em sua fenomenologia de tão prodigiosas dimensões, já possui um tempo de presença sob o olhar crítico da consciência filosófica, que está a exigir maior unidade de configuração problemática e, decorrentemente, maior disciplinação terminológica.

            É evidente ser irredutível e insuperável, na atualidade; o espetáculo das correntes filosóficas conflitantes em suas formas diversas, opostas e até contraditórias de ver os fundamentais problemas do espírito. Mas, não obstante esta situação tumultuária, que se reflete na forma confusa como o problema do valor é configurado e analisado, não seria conveniente que, dentro de uma atitude de espírito acolhedora das homogeneidades doutrinárias das escolas e sistemas, diversos e mesmo opostos, procurássemos um mínimo denominador comum das grandes verdades, evidências, certezas e conquistas do pensamento filosófico, para nessa base construirmos uma perspectiva racional unificante da visão adequada do valor?

            Não sugerimos a criação de um ecletismo doutrinário fácil nem de um concordismo relativista para que se construa, em sua base, um modus vivendi das filosofias em conflito e condicionantes da definição do valor. Sugerimos, tão só, que pressupondo, e é legítimo este pressuposto, a existência na área do pensamento filosófico contemporâneo de um mínimo de posições doutrinárias homogêneas ou quase homogêneas, na base dessa pacífica e uniforme unidade de visão dos fundamentais problemas da Filosofia, desse denominador comum doutrinário, se construa se não uma fórmula definidora do valor, ao menos uma perspectiva mental, uma hipótese de trabalho, que propicie maior unidade teórica e maior homogeneidade vocabular na pesquisa axiológica.

            E com a certeza da possibilidade dessa orientação metodológica que partimos para um breve ensaio de construção da fórmula definidora do valor.

Que é o valor?

            Emergindo do ser, neste estando suas fontes geradoras, suas raízes existenciais, o valor pode ser descoberto pela razão, após o termos vivenciado e experimentado de mil formas, como sendo uma situação, ou melhor, uma posição do ser.

            É nessa perspectiva do espírito que ele se dá como objeto de representação conceitual. Só no interior dessa ótica mental que o radica no ser e como uma posição do ser, ele se faz visível à consciência reflexa e à razão, que busca defini-lo.

            Quais as conotações dessa "uma posição do ser"? Na estrutura conceitual do valor estão presentes três idéias intimamente relaciona­das: 1) a idéia universal do ser; 2) a idéia do ser em estado dinâmico; 3) a idéia de um dinamismo finalizado.

            Mas não basta para que a figura do valor se instale na consciência reflexa, como realidade representável, a visão dessas três idéias. A idéia do valor como uma posição do ser só tem seu acabamento e exata configuração, quando o espírito descobre a relação de conformidade entre o dinamismo do ser humano e os seus fins.

            A existência dessa relação de conformidade revela a presença do valor no ser e constitui o elemento formal do conceito do valor. Essa conformidade é obra da liberdade que, iluminada pela visão dos fins humanos, descobertos pela razão, consente em dirigir a ação, modelando-a segundo o apelo dos fins. A presença do fim na estrutura do agir gera o valor na estrutura do ser humano. As idéias de ser, de dinamismo ontológico e de dinamismo finalizado seriam os três ele­mentos materiais integrantes do conteúdo conceitual do valor. A idéia de relação de conformidade seria o seu elemento formal. A força plasmante do valor no ser é, pois, a presença, maior ou menor, dos fins humanos na estrutura do agir. Conformar o dinamismo do ser com os seus fins é tarefa, é operação própria da liberdade polarizada por eles. Estes fins a ela se revelam como bens desejáveis pelo apetite volitivo. A liberdade dirige as pulsões do ser no sentido da concreção dos seus fins relativos e absolutos.

            A análise da figura do valor como uma posição do ser leva­nos, assim, à sua definição: "O valor é o próprio ser, visionado racionalmente, numa perspectiva teleológica, em livre posicionamento de conformidade dos seus dinamismos com seus fins".

            Ou em outra fórmula definidora mais sintética: "O valor é a conformidade dos dinamismos do ser humano com seus fins".

            Na análise do valor trata-se, pois, de fixar-lhe o conceito como algo relativo ao agir do ser humano. Somos uma ontologia contingente, racional e livre. Contingentes, possuímos ser, existimos, mas não somos o ser. Situamo-nos numa totalidade de ser, onde se processa ou se deve processar nossa existência, a realização de nosso ente.

            Essa totalidade é integrada pelos outros seres finitos e pelo Ser Absoluto - do qual tudo emerge pelo ato criador e para o qual tudo converge. Nossa existência, como a dos demais seres contingentes, é a de um esse ad - um ser, para... A natureza humana é uma paisagem complexa de tendências, de linhas de força, uma estrutura de inclinações, de apetites, de pulsões ontológicas voltadas, pré­ordenadas para uma participação nesse Ser Absoluto. Essa participação realiza-se, em nossa ontologia humana, de duas formas: através de uma participação necessária, enquanto independente de nossa liberdade, enquanto somos partes de uma ordem universal regida por inelutáveis determinismos causais - flsico-químicos e biopsíquicos - e através de uma participação livre que é a tarefa própria da razão que, descobrindo os fins humanos, deve, pela liberdade, conformar esse complexo de tendências, apetites e pulsões com os destinos humanos por ela descobertos. Essa visão, radicada na natureza racional do homem, é apresentada à vontade, que é cega, que apetece necessariamente o bem, sob a forma de bens por ela apetecíveis, obscuramente buscados, confusamente desejados.

            Esses bens, que são os fins humanos que a razão descobre, correspondem a um escalonamento de perfeição ontológica, que funda a tábua hierárquica dos valores. À hierarquia dos seres corresponde a hierarquia dos valores. Existem, pois, valores contingentes e existe o Valor Absoluto; bens contingentes e Bem Absoluto. Para a sua posse, pelo homem, a razão que os descobre como fins, abre, pela liberdade, o itinerário de sua busca e de sua conquista. Para o homem existe o primado do Bem Absoluto e do Absoluto Valor entre os de­mais bens e valores.             Nossa abertura, nossa participação nesse Valor Supremo, nesse Supremo Bem, é absolutamente condicionante de nossa realização específica de seres racionais e livres. A experiência ética, fundada na experiência metafísica, dá-nos o itinerário condicionante da comunhão com o Valor Absoluto.

            Todo o reino dos valores encontra, nessa participação com o Supremo Bem, seu fundamento, sua fonte geradora e sua justificação. Foi por assim pensar que afirmamos ser o valor um pseudônimo do Absoluto, uma presença laica de Deus na consciência humana. Experimentar a exigência do valor, em sua transcendentalidade, é experimentar a exigência de Deus.

            Quando se realiza a revelação ao apetite volitivo, dos fins humanos como bens apetecíveis, a liberdade experimenta a exigência de neles participar, de fruí-los, buscando a perfeição do ser contingente. É essa exigência, enquanto a liberdade consente em atendê-la, que vai construir, na ação, a figura do valor, no ser humano, a existência valiosa. O valor não é, assim, a simples exigência do desejo, do apelo da tendência que busca a perfeição do ser. O apelo ouvido pode não ser atendido pela liberdade e não haverá valor. Já o disse Ovídio: "video meliora proboque, deteriora sequor".

            O valor não é, também, apenas a liberdade exercendo-se caprichosamente, fora ou contra os fins descobertos pela razão. Seria isto a liberdade sarneana de construção de projetos arbitrários e ab­surdos da existência humana. A liberdade deve exercer-se no interior do quadro de uma natureza onde ela se situa, onde está pré-ordenada, inclinada, disposta para a fruição do bem, para á realização dos fins. O valor é, pois, a conjugação da liberdade com a exigência, com o desejo da vontade que quer o bem e clama pela sua realização.

            Embora obrigatório, porque condicionante da realização humana, esse apelo pode ser desatendido. A constituição do valor, até aí, é apenas algo possível; essa possibilidade só se faz realidade, pela adesão do agir livre. O valor é, então, a conformidade dos dinamismos do ser racional e livre com os fins relativos e absolutos do ser humano. Ele se transmuta de ser possível em ser real, no momento em que o desejo volitivo repousa na posse do bem apetecido, na perfeição buscada.

            A figura do valor situa-se, conseqüentemente, entre o mundo da necessidade e o mundo da liberdade. Ele coloca o ser na linha de posse de sua perfeição, na ordem divina e humana da existência.

            Conclui-se, assim, que o valor fundado no ser, numa ordem ontológica realizada, é distinto do ser como posição criadora de uma nova ordem, a ordem ontológica valorada, ordem realizável pela razão e pela liberdade. O valor é, pois, uma posição do ser. É distinto do ser embora inelutavelmente nele fundado; a ele não se opõe, ao contrário, o completa, ao criar uma nova ordem de ser - o ser valorado, o ser que é o que deve ser.

            O valor no ser revela um posicionamento perfectivo, traduz uma situação de relacionamento ordenado dos seres que buscam, em sua contingência, sua própria realização na osmose dos contatos com a totalidade ontológica, que é uma ordem - a ordem universal. Essa ordem, enquanto dada, é resultante de um determinado causal e finalístico inexorável. No interior dela deve situar-se uma outra - a "resultante da ação livre do homem polarizada pelos valores". É a ordem realizável, a ordem ética, social e jurídica. Sua constituição é tarefa da razão, que é a faculdade da ordem e das relações, que descobre os fins do ser, e, através da liberdade, encarna-os na existência. A força polarizante da liberdade nessa tarefa de transmutar uma ordem realizada em outra realizável, de transfundir o possível no real, de plasmar o dever-ser no interior do ser, de construir o homem e o convívio, é o valor. Ele é a energia maior que conduz o ser contingente e finito à participação na plenitude do Ser Absoluto, que é também o Absoluto Valor.

            A idéia do valor não se pode vislumbrar fora de uma perspectiva metafísica, que, superando sua realidade fenomenal, nos desvele sua natureza própria. Sob este aspecto ele é "a dimensão fundamental da metafísica" e indica "o pólo do ser", revelando o seu sentido. A idéia do valor só é fixável dentro da representação de uma totalidade ontológica. Sendo o valor uma posição do ser e se desvelando o ser como uma ordem, que é "o relacionamento objetivo e finalístico dos dinamismos dos seres contingentes", então só é compreensível a presença do valor no ser, como uma força de ordenamento do ser humano, uma energia de participação de nossa contingência numa totalidade ontológica.

            É porque o valor é ser e o ser é ordenado, é porque existe uma ordem universal no interior da qual existimos e nos devemos situar, é por tudo isso, que a idéia de ordem é condicionante da idéia do valor. O valor funda-se e parte dessa ordem ontológica realizada, dentro da qual nos posicionamos, para exercer a tarefa específica de criar uma ordem livre, ordem humana, ordem ideal, ordem valorada.

            A teleologia do valor é a realização do indivíduo, da pessoa humana, através da criação da personalidade, pela fruição do valor Bem, objeto da experiência moral. Ele é a força modeladora da ordem humana, onde normativamente realiza a construção do bem comum, através da justiça.

            Romano Guardini afirmou: "Eu sou o modo como Deus me chama, e como eu respondo a esse chamamento". Eis uma aguda definição axiológica da personalidade humana: esta seria a resposta a um apelo, ao apelo do Valor Absoluto. O apelo é de Deus, a resposta é a atitude da liberdade que faz a grandeza ou determina a frustração do ser humano.

            O valor que nesta nossa despretensiosa análise buscamos representar conceitualmente, intencionando defini-lo, não exaure sua complexa e densa realidade na simples apreensão racional de uma posição do ser.

            Contrariamente ao racionalismo axiológico, que dissolve o valor no ser e desconhece seu caráter próprio, aceitando a posição doutrinária que afirma a apreensão intelectual do valor e que o descobre porque o ser é intrinsecamente valioso, estamos convencidos de que o integral conhecimento do valor só é possível através de sucessivas vivências dessa realidade, imanente e transcendente no ser humano. Aperfeiçoando o ser, sendo dele perfectivo, o valor emerge das "profundezas do sentir e dos mistérios do querer" e, por isso, "seu conhecimento racional estará sempre impregnado de elementos emocionais e apetitivos".

            É na área da experiência emocional, que o valor se dá à cons­ciência humana, não como o pensamento e a razão podem defini-lo, "como relação de conformidade do dinamismo do ser humano com seus fins"...

            Vivenciado, experimentado emocionalmente a "exigência própria do valor" oferece aos homens que a ela se abandonam, aos santos, aos sábios, aos artistas, "uma trágica desproporcionalidade" entre o absoluto do apelo e a contingência da resposta. Esses homens guardam, muitas vezes, o angustiante sentimento da desproporção entre o que intencionaram, sonharam e intuíram e o que realmente realizaram.

            A infinitude do apelo, da exigência do valor, fica, no entanto, ressoando na consciência humana tal como o conselho dos Evangelhos: "Sede perfeitos como o vosso Pai celestial é perfeito".

            Só nessa abertura do nosso ser para o Supremo Valor, que é o Ser Supremo, está o itinerário da realização humana - a passagem do nosso ser potencial para o ser atual, de concretização de nossa essência em nossa existência, da concreção de nosso dever-ser, nas estruturas do nosso ser.

            Senhores congressistas: a brevidade desta comunicação, que tive a honra de apresentar aos eminentes membros deste plenário, brevidade decorrente do atendimento do regimento dos trabalhos deste congresso, não me tornou possível dar à análise do tema exposto uma adequada fundamentação crítica, uma maior justificação das posições assumidas. Não pude, assim, e lamentavelmente para mim, sequer esboçar os fundamentos gnoseológicos, epistemológicos, metafísicos e psicológicos dessas posições. Renunciei, também, à caracterização, embora breve, da visão filosófica, resultante do encontro da identidade das posições doutrinárias básicas e comuns, de correntes diversas do pensamento filosófico contemporâneo.

 

             Intervenção do Prof. Enes:

            "Não parece justificável a urgência de definir o valor, se natureza do valor não permite a definição. Mais importante para tão desejada unanimidade dos filósofos seria a possibilidade de definir o ser. A univocidade terminológica na ordem do ser em vez de favorecer pode contrariar o entendimento ontológico. Na ordem do ser, mesmo no contexto da metafísica tradicional aristotélico-escolástica, reina a analogia e não a univocidade. A transcendentalidade do valor, derivada da sua identificação, dele com a ordem do ser aos fins, não exigirá a analogia em vez de univocidade?"

 

            Resposta do Prof. Armando Câmara:

            Relativamente à forma como o Prof. Enes coloca as relações do problema do valor com o problema do ser e o modo como nós vemos estas mesmas relações, creio que as possíveis dificuldades, que o objetante poderia fazer ao nosso modo pessoal de ver o problema, encontram resposta clara e até, talvez, reiteradamente exposta nas primeira e segunda páginas da comunicação. Nelas supomos ter clara­mente fixado as razões da oportunidade da busca de conceitos e de vocabulário mais precisos em Axiologia. Nelas distinguimos, não identificamos os conceitos de ser e de valor. Conseqüentemente, não podíamos aceitar a identificação dos processos e métodos de análise e compreensão da Metafísica com os da Axiologia.

 

            Intervenção do Prof. Enes:

            "Como superar antinomias como estas: 1. - o valor é a ordenação finalística dos dinamismos do ser; - o valor fundamenta-se na ordem do ser em relação aos fins. 2. - o valor é a posição do ser; - o valor é a ordenação do ser em relação aos fins".

 

            Resposta do Prof. Armando Câmara:

            Pergunta o Prof. José Enes como superar antinomias como esta: "- o valor é a ordenação finalística dos dinamismos do ser; - o valor fundamenta-se na ordem do ser em relação aos fins". Resposta: Nenhuma das duas fórmulas que o professor supõe definidoras do valor é de minha autoria.

            Defino o valor como "o próprio ser visionado racionalmente, numa perspectiva teleológica, em livre posicionamento de conformidade dos seus dinamismos com seus fins"; ou uma fórmula definidora mais sintética: "o valor é a conformidade do dinamismo do ser com seus fins".

            Em verdade, dissemos na comunicação, ao definir a ordem, que esta "era o relacionamento objetivo e finalístico dos dinamismos dos seres contingentes", distinguindo, assim, o conceito de ordem, básico para a construção do conceito do valor, da própria definição deste. Afirmamos, pois, que a idéia do valor pressupõe a idéia de ordem. Não confundimos, assim, o conceito do valor com o conceito de ordem, apenas relacionamos a ordem e o valor.

            Dissemos, na comunicação, que há duas espécies de ordem; ­a ordem realidade, independentemente da liberdade humana; - e uma ordem realizável pela liberdade do homem. Sobre o plano de uma ordem realizada é que se vai constituir o desenho de uma ordem realizável, pela liberdade que a constrói, nela colocando o valor. Conseqüentemente, a idéia de valor está relacionada com a idéia de ordem realizada e traduz, simultaneamente, o valor, como força de realização da ordem realizável. Parece, pois, inconcebível que se suponha conceitos idênticos o do valor e o da ordem.

            Examinemos, agora, a segunda antinomia apontada pelo Prof. Enes. Ela está assim formulada: "- o valor é a posição do ser; - o valor é a ordenação do ser em relação aos fins".

Relativamente à afirmação de que o "valor é a ordenação do ser em relação aos fins", quando afirmei que o "valor é uma força ordenadora do ser humano", tive o cuidado de tornar evidente que esta operação ordenadora se processava através do agir livre para a constituição de uma ordem possível e realizável - a ordem descoberta pela razão ao apreender os fins da natureza humana.             Supomos, assim, que há impossibilidade de se confundir ação livre do homem ao constituir a forma valiosa do ser, com a própria ordem ontológica dada, realizada, enquanto resultante não da liberdade, que encarna valores, mas de uma necessidade, de um determinismo causal que constitui a ordem objetiva dos seres - que é a ordem dada, a ordem universal.

            Relativamente à afirmação de que "o valor é a posição do ser", jamais pensei ou escrevi tal proposição. Afirmei, sim, que o valor é uma posição do ser, nunca "a posição do ser".

Acresce, ainda, que esta "uma posição do ser", a que me referia, evidentemente, é uma posição do ser humano e sugere ainda claramente a existência, real ou possível, de uma outra posição do ser - a do desvalor.

Conseqüentemente, só haverá valor quando na posição do ser que, sendo contingente, é um feixe de tendências em busca dos fins que lhe assegurem a perfeição, a liberdade, iluminada pela visão racional dos fins, projetar os dinamismos finalizados da natureza humana em direção aos seus fins.

            Esta diferenciação conceitual entre "posição valiosa e desvaliosa do ser" evidencia onde, na estrutura lógica da definição do valor, se situam o gênero próximo e a diferença específica.                    

            O gênero próximo está presente no conceito geral que envolve duas posições possíveis do ser: a de atendimento ou de não atendimento da polarização dos fins pela liberdade. Ambas - a posição valiosa e a posição desvaliosa - são qualificáveis como humanas, mas "uma só posição" é indicada como sendo a reveladora da presença do valor no ser. É aquela em que, no ser humano, a liberdade estiliza o agir, em conformidade com os fins de nossa natureza.

            Gênero próximo: são as duas posições possíveis do ser face aos fins. Diferença específica: o posicionamento livre, a livre realização dos fins da natureza racional do homem.

            Se me fosse permitida a impertinência de ilustrar mais, a presença, na estrutura lógica da definição do valor, de um gênero próximo e de uma diferença específica, eu diria que a idéia geral de posições do ser - posição valiosa e posição desvaliosa - esta idéia geral de posição corresponde à de gênero próximo, analogamente ao conceito de animalidade, na definição clássica do homem, como "animal racional". Relativamente à diferença específica, ela está presente na estrutura lógica da definição que apresentamos, quando se aponta para a posição de livre conformidade do dinamismo do ser com os fins humanos.

            É essa conformidade que especifica a posição valiosa. É a diferença específica, na definição proposta.

            Suponho, conseqüentemente, que esta fórmula definidora não seja tão só uma mera descritiva do fenômeno do valor. Quero supor que nela está apontada a natureza do valor. Nossa definição atende, assim, às exigências da lógica tradicional.



1 Comunicação apresentada à “Semana Internacional de Filosofia”, realizada em São Paulo, de 16 a 22 de julho de 1972.