SERÁ O HOMEM O MESTRE DO HOMEM?1

 

                            Meus eminentes colegas: Receber, com plenitude de gratidão, a oferenda que, imerecidamente, me fazeis, sem ensaiar uma interpretação limitadora do compromisso que assumo e que vós assumis nesta outorga de título, é, para mim, uma autêntica impossibilidade, quando considero a transcendência da tarefa docente, sobremodo quando ela versa sobre o Direito e a Justiça, cuja realização histórica e concreta, na vida pessoal e comunitária, é uma perene obsessão do homem, e que, hoje, como nunca, inspira o clamor de milhões de seres que sofrem as tensões de uma civilização em crise.

Urge, pois, que esta alocução de reconhecimento ao vosso gesto, tão honroso para mim, seja uma singela interpretação da ambigüidade que possa apresentar esta homenagem aos olhos ingênuos ou críticos.

Meus ilustres colegas, será o homem mestre do homem? Lacordaire, numa conceituação que fixa um atributo essencial nosso - que é a exigência de aprendizagem - definiu o homem como um "ser ensinado". Em verdade, os homens ensinam aos homens. Mas esta perene tarefa do animal racional encerra tal variedade de formas, que só recorrendo às virtudes unificantes da analogia, pode­mos integrar a imensa diversidade de expressões da função docente, dentro de uma mesma predicação.

Realmente, ensina-se ou se busca ensinar, tudo e sobre todas as coisas. Vivemos em permanente estado inflacionário de atividades docentes. Tudo é escola e tudo é docência (...)

Se a vida é convívio, e convívio é diálogo, então, conviver é ensinar, pois, em todo diálogo se oculta a pretensão de uma aula, traveste-se a intenção, consciente ou subconsciente, de afirmar uma tese, de fundamentar uma opinião, de comunicar um ponto de vista. Eu quase diria que todos os homens ensinam, na medida que possuem e usam uma linguagem, e assim, falando, transmitem uma cultura estratificada nas palavras, que interpretam realidades, valoram situações e projetam significação na ambigüidade expressiva dos fatos.

Mas, ao lado dessa situação de omnímoda e universal escolaridade, imposta por nossa natureza racional e social, situa-se a ação do mestre, como atividade eleita, atitude vocacional, forma escolhida de uma vida profissional.

Ainda aqui, o panorama da ação docente é imenso: mede-se sua amplitude pelo número das matérias ou objetos cognoscíveis e, portanto, ensináveis, pelos diferentes graus dos conhecimentos que se quer transmitir, pelos inúmeros objetos formais, pontos de enfoca­mento ou centros de perspectiva, através dos quais se pode contemplar a realidade. E para designar o agente destas múltiplas e díspares operações pedagógicas, o homem usa a palavra mestre.

Mas o gênio criador da linguagem - presente na subconsciência das comunidades que geram os vocabulários - depositou, para sempre, nesta palavra um conteúdo significativo que tem resistido a todas as revoluções semânticas, incapazes de destruí-lo. Quer-se designar, com a palavra mestre, o agente de um tipo de operação criadora, não apenas duma visão intelectual das coisas - o que seria instrução ­mas, ainda, de uma forma de vida, de uma determinada modelagem de ser, de uma estilização integral da personalidade humana - o que seria educação.

Intenciona, assim, o gênio das línguas, significar, no professar, a presença do sábio, do visionário do artista, do asceta, enfim, do demiurgo do mundo interior da pessoa, do universo moral do homem. Confia-se-lhe a função de terminar a obra criadora de Deus. O mestre seria, nesse mundo imenso de possibilidades de ser, realizáveis ou frustráveis, que se oculta em cada homem, um transmutador de potências em atos, de virtualidades em realidades efetivas, de possibilidades em existências concretas.

Dominado por essa visão plasmante da vida, deveria o mestre autêntico lançar-se à terrível tarefa de construir um homem, de estruturar uma personalidade. Ao apelo de Miguel Ângelo, face à estátua de Moisés, o mestre deveria acrescentar, concluindo sua tarefa taumatúrgica: "Vive, pensa, age, com liberdade e responsabilidade. Sê homem. Canta o poema da existência autêntica - adora teu Deus, serve e ama ao teu irmão, vive as bem-aventuranças do homem liberto do acaso".

Será uma tal tarefa obra humana? Há um paradoxo, inexoravelmente incluso, na missão atribuída ao mestre. Exige-se dele, que obviamente é homem, que seja agente de uma tarefa sobre-humana.

Não se objete que o mestre poder-se-ia resignar a uma pedagogia centrada num humanismo realista, da inspiração antropocêntrica, renunciando à tarefa de transcender a medida humana, resignando­se a formar o homem para a existência tal como ela é, não como deve­ria ser. A objeção esquece algo que é uma constante da consciência moral universal, algo que, na experiência do mundo clássico, no regime pagão da História, era uma evidência, registrada pelo gênio de Aristóteles: "Não é bom propor ao homem, apenas, o humano".

Ser homem é querer ser mais do que humano. Aliás, todo humanismo, se não parte, chega, sempre, a esse voto supremo, a essa aspiração última: a de evasão, pelo homem, dos limites, que parecem intransponíveis, de sua natureza; a superação de sua imanência, através de uma abertura para a existência transcendente. Todos os autênticos pedagogos o foram, porque padeceram dessa tortura de traduzir, na vida real, esse anseio, ideal do sobre-humano.

Aqui desponta - meus eminentes colegas - a visão de uma curiosa similitude, senão de uma quase identidade de objetivos, entre a tarefa do mestre e a do jurista. Ambas intencionam retificar e dirigir a vida; ambas fazem do homem, mestre do homem;. ambas originam-se da mesma recusa de aceitar o homem como ele é, para fazê-lo como deve ser; ambas buscam plasmar, no real, o possível.

O jurista é um professor que leciona às comunidades, nos parlamentos; o mestre é um legislador que impera normas de conduta pessoal nas escolas. Jurista e mestre só legitimam suas funções e justificam suas tarefas, no pressuposto de que o homem que aí está, existencialmente dado, pode e deve ser superado. Ambos parecem dominados pela evidência de que se deve transcender o homem para ser humano.

Política legislativa e política educacional parecem inspirar-se na posse da visão dos autênticos itinerários de realização do homo vi­ator, ambas querem projetar o agir humano em direção aos fins ab­solutos da vida. Em ambas, parte-se de uma existência dada, como matéria de elaboração de uma existência valorizada; emerge-se de uma área de ser, para o mundo do valor.

A construção da comunidade justa é a tarefa do jurista; a criação da personalidade perfeita é a missão do professor. Serão visionários, juristas e mestres? Será utópica sua tarefa? Será, o homem, mestre do homem?

Seu irredutível anseio de infinito, sua necessidade incoercível de transcendência, de abertura para os cumes do sobre-humano, é algo que marca a tarefa do mestre e do jurista; é algo que faz a sua grandeza e, simultaneamente, revela a sua impotência... A figura de Prometeu é, em verdade, a tradução, plástica e dramática, da impotência do homem ser mestre do homem, mas é, também, símbolo eterno de sua aspiração de ser Deus.

Mas só se transcende o humano, de joelhos, na atitude da adoração.

O sobre-humano não é algo que se conquiste, é dom que se aceita; não é um direito que se reivindica, é uma revelação que se recebe; é graça que se suplica; é esmola feita à nossa finitude. Não sendo o homem mestre do homem, só poderá sê-lo aquele cujas mãos onipotentes lhe plasmaram o barro, e cujo Espírito lhe acendeu, na alma, a misteriosa luz da consciência e do pensamento.

Existe um Deus pedagogo? - Esse mestre existe, malgrado a cegueira dos que buscam ignorá-lo, malgrado a responsabilidade dos que recusam a recebê-lo. Ele veio concluir sua obra criadora, fazendo-se mestre e educador do homem. "Não vos chameis mestres, pois um só é vosso Mestre - o Cristo". Seu prodigioso gênio moral revelou-nos o "único necessário" para a realização humana: "De que serve conquistares o universo se vens a perder teu espírito?"

E desde que este Verbo, que o IV Evangelho diz que "estava no princípio dos mundos", habitou entre nós, todo homem que não se quer suicidar, fechando-se na sua "diferença específica", enclausurando-se na imanência de sua trágica finitude, busca e adora esse Mestre, pois ele é mais que um profeta, é mais que um taumaturgo, é mais que demiurgo, é mais que um santo: Ele é Homem-Deus.

As palavras humanas, na boca desse Mestre, transformaram­se em forças criadoras, em energias de transmutação do mundo da natureza e do mundo histórico. Só ele é capaz de concretizar aquele anseio supremo, cuja realização confiava-se aos mestres mortais - o da construção de um homem que transcendesse sua natureza.

Só ele, que devassa o âmago do mistério do ser humano, que criou, é apto para transfigurá-lo, em formas superiores de humanidade exemplar, como revela essa galeria de super-homens, dos heróis da conquista de Deus, que são os santos.

Ele se definiu como sendo a Luz do mundo, a Vida, o Caminho, a Verdade. E desde que essa Luz iluminou a história, só não usurpam o título de Mestre aqueles homens que prolongam sua ação salvadora e irradiam sua mensagem de bem-aventuranças. Desde então, só seus apóstolos são mestres aptos para a tarefa da construção do homem.

Eis porque, nesta cerimônia em que me outorgais o título, tão honroso, de Mestre Insigne de Direito, oferenda que cordialmente agradeço, para não usurpar o que não me é devido, quero transferir o título que me ofertais, tão imerecidamente, ao único Mestre dos homens, que é Mestre do meu pensamento, que é Legislador de minha ação, que será Juiz de minha existência, que já declina no horizonte do tempo, e de cuja infinita piedade eu espero a imortalização do meu ser.



1 Discurso de agradecimento ao receber o título de “Professor Insigne” por parte do Instituto, da Ordem, da Associação dos Advogados e da Associação dos Consultores Jurídicos e Advogados de Ofício do Rio  Grande do Sul, em 14.08.1968