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A internacional do espírito

 

Dito sob a forma de um provérbio, a fragilidade do movimento pela paz, até hoje, está em querer chegar a um processo de solução internacional de conflitos sem que exista, antes, uma consciência comum supranacional. Um Tribunal e uma arbitragem internacionais não são possíveis a partir, exclusivamente, da imparcialidade interestatal. Sobre tal base são admissíveis apenas compromissos, que distribuem as injustiças em partes iguais, nunca verdadeiras sentenças que separem o justo do injusto. Não sendo apenas apartidário, mas suprapartidário, juízes e árbitros não podem apenas medir e comparar os interesses em conflito, mas devem apreciar tais interesses a partir de um supra-interesse superior aos quais estejam elesordenados, ou seja, do ponto de vista de uma consciênciacomum supranacional. Os crescentes relacionamentos interestatais atuais não conseguiram criar ainda uma tal consciência comum internacional, ao contrário, aumentaram as possibilidades de conflitos internacionais, o risco de guerra, enquanto a consciência comum supranacional experimenta crescente enfraquecimento desde a Idade Média.

A política separa as nações umas das outras, enquanto a cultura as une. Na Idade Média existia, acima do relacionamento interestatal, uma organização supranacional – a Igreja Católica. A cristandade formava uma unidade religiosa corporativa e existia em todas as nações uma grande quantidade de organizações religiosas especiais, principalmente monásticas, de dimensões internacionais. A cultura estava protegida sob o manto da Igreja e aproveitava-se do caráter internacional dela. A arte cristã era uniforme na Europa e a evolução de seus estilos estava presente, na mesma medida, em todas nações. A linguagem universal das pessoas cultas, que era o latim, possibilitava a ciência e a literatura européia unificadas. As Universidades, concessões papais privilegiadas, reuniam estudiosos de todas as nações ante as cátedras de mestres que transitavam entre elas sem preocupação com as fronteiras entre as nações e entre as diferentes línguas. Sob a influência destas Universidades, o Direito Romano Canônico entrou em vigor em toda a Europa. Só a partir da Reforma conseguiu o Estado arrancar da Igreja os diversos segmentos culturais e absorvê-los, um após o outro. Representada pela soberania da cátedra pontifícia, que no passado representou a totalidade da cultura perante o Estado, mantém-se ainda hoje um segmento de cultura com presença no Direito Internacional: a religião. A ciência do Direito Internacional considera esta soberania papal uma anomalia explicável apenas por razões históricas: embora somente Estados possam ser autênticos sujeitos de direitos internacionais, a cátedra papal é tratada como se fora um deles. Esta situação não foi alterada pela fundação do Estado do Vaticano, porque a soberania papal continua sendo exercida sobre o mundo dos espíritos e não sobre o liliputiano Estado do Vaticano. Mas esta soberania papal, como mero poder espiritual, em verdade, não é apenas reminiscência histórica, pois serve também como modelo para a futura reorganização do Direito Internacional. O que é válido para a religião, mais exatamente para a igreja católica romana, deveria valer não só para as demais religiões, que formariam algo como a união das igrejas cristãs, mas para todos os segmentos culturais. A república das letras, a literaturauniversal, não deveria permanecer uma idéia ou frase, mas tornar-se uma organização, um sujeito de direitos internacionais, equivalente à cátedra do Papa, tratando com os Estados em igualdade de condições, ou tornar-se uma corporação privada com o mesmo prestígio na opinião pública internacional, de tal forma que sua voz na comunidade das nações não pudesse ser abafada.

Sua tarefa não seria apenas a cooperaçãointelectual voltada para determinados objetivos internacionais, mas algo bem maior: revelar, de forma convincente, em sua pessoa e em seu trabalho, a paixão supranacional no setor cultural que lhes foi confiado. Para aqueles que sintam repugnância ou indignação com o fato de grandes homens serem arrancados do regaço de sua nação para serem lançados no mundo dos valores supranacionais, é preciso deixar claro que estão rejeitando o pressuposto fundamental da evolução do Direito internacional. Uma ordem jurídica só pode perdurar enquanto alguns membros da comunidade jurídica estejam ocupados não apenas com seus interesses específicos, mas com os propósitos jurídicos que a sustentam; ou seja, uma ordem jurídica supranacional  necessita corporificar-se em um conjunto de pessoas supranacionais; para que haja juízes internacionais é necessário que existam, antes, cidadãos internacionais.

Não há dúvida de que, da coexistência entre Estados e corporações culturais como sujeitos de direitos internacionais, podem resultar graves tensões, como tem ocorrido historicamente entre a Igreja e o Estado; aliás, se tais tensões não existissem, não faria sentido pensar nesta dúplice organização. A importância das organizações culturais supranacionais está exatamente em que, pela justificação da autonomia da cultura, podem criar limites à tendência natural dos Estados ao totalitarismo e opor os interesses da comunidade supranacional ao interesse individual de cada Estado ou ao interesse comum e transitório de um grupo de Estados. Até agora foi difícil aguardar que os Estados, voluntariamente, aceitassem tão indesejáveis sócios como sujeitos de direitos internacionais. Somente uma poderosa emoção supranacional com forte eco sobre a opinião pública poderia exigir o reconhecimento jurídico internacional das comunidades culturais. É o que ocorre na patética hora em que vivemos. A terrível experiência da segunda guerra mundial, com seu clímax na explosão da bomba atômica, propõe a alternativa: paz universal ou destruição do globo terrestre; e nós não podemos renunciar à esperança de que as inteligências mundiais percebam rapidamente o perigo que recai sobre a humanidade e o evitem.