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O homem no Direito(1)

 

Propondo-me a falar sobre o homem no Direito, meu tema não versará sobre a forma como o Direito valora o homem ou sobre a forma como ele atua ou deve atuar sobre o homem, mas sobre o modo como o Direito imagina o homem sobre o qual pretende atuar, sobre o tipo humano para o qual ele está predisposto. Meu tema não é, portanto, relativo ao homem real, mas à imagem de homem para o qual o Direito está constituído e para o qual suas disposições estão organizadas.

Tal imagem mudou, de acordo com a evolução do Direito. Pode-se mesmo afirmar que a mudança de imagem do homem proposta ao Direito “constitui cada uma de suas época”. Nada é mais decisivo para o estilo de cada período jurídico do que a concepção de homem à qual ele se destina.

Os diversos ordenamentos jurídicos históricos não podem ser definidos em função de um homem real que se desloca sobre a terra com seus caprichos, maus humores e melancolias, no imenso herbário de plantes raras chamado humanidade. A partir deste homem empírico concreto não se chega a nenhum ordenamento jurídico, mas somente à negação de toda ordem jurídica. Quem, como Max Stirner, parte do homem isolado, só pode chegar ao anarquismo. A norma jurídica, em sua generalidade, só pode ordenar-se a um tipo humano geral – por isso, múltiplas e distintas peculiaridades humanas aparecem nas diversas épocas do Direito como típicas, essenciais, como decisivos pontos de ataque para a normatividade jurídica.

A concepção do homem em determinada ordem jurídica pode ser facilmente perceptível quando se atenta para o que ela entende por direito subjetivo ou dever jurídico. É preciso, mesmo, partir do fato de que a ordem jurídica não está menos preocupada com a definição dos direitos do que com o cumprimento dos deveres. Jhering mostrou com profundidade que uma ordem jurídica se destrói não apenas quando os deveres por ela estabelecidos não são mais cumpridos, mas também quando os direitos por ela assegurados não são mais buscados. A vontade da ordem jurídica expressa-se tanto em direitos reconhecidos quanto em deveres estabelecidos. Quando é que essa vontade se expressa sob a forma de direito ou sob a forma de dever? Direitos são outorgados quando se admite poder contar com a motivação das pessoas voltada na mesma direção da ordem jurídica e deveres são impostos quando é necessário admitir que esta motivação é contrária a seus desejos. Por isso, através dos direitos e deveres por ela instituídos pode-se claramente conhecer a motivação que ela considera predominante entre os homens.

A respeito do Direito alemão medieval e da imagem de homem que ele pressupunha só posso falar sobre os condicionamentos do profano e sobre a necessidade de controles. Para mim, aquela época, no Direito, caracteriza-se pela abundância de direitos penetrados por deveres, de direitos disciplinados por deveres, de direitos concedidos no pressuposto de serem exercidos na medida dos deveres. Para que tais direitos pudessem funcionar sem risco deveriam apoiar-se sobre uma Moral e uma Religião vinculadas ao dever e à solidariedade entre os homens; e, de fato, a Economia e a ordem estatal da Idade Média estruturavam-se sobre tal concepção do homem. A ordem baseada em classes pressupunha a outorga de privilégios, na certeza de que a honra da classe seria garantia suficiente do rendimento de um trabalho de qualidade – certeza que, de fato, foi confirmada durante séculos. A ordem classista concedeu amplos direitos sob o pressuposto quase incontrolável e incoercível de que eles seriam exercidos com espírito de lealdade – pressuposto que, a final, fracassou: o império acabou quando os senhores de classe se transformaram em senhores de territórios; fracassou, portanto, em virtude de uma concepção cada vez mais inadequada do homem no Direito.

O Renascimento, a Reforma e a recepção do Direito Romano desligaram o homem, enquanto indivíduo, da comunidade e fizeram dele, assim isolado, assim motivado não mais pelo dever, mas pelo interesse, o fundamento do Direito. Um novo tipo humano foi modelado no Direito na figura do comerciante, voltado totalmente para o lucro e o cálculo (não há cordialidade nosnegócios). As necessidades do comerciante foram uma das causas essenciais para a recepção do Direito Romano e, em conseqüência, para a adaptação do Direito ao novo tipo humano. Com certo exagero pode-se dizer que, a partir de então, o Direito considera todos os homens comerciantes, até mesmo o trabalhador, que passa a ser considerado um vendedor da mercadoria trabalho.

A época do Direito na qual o homem é concebido como personificação do egoísmo é dividida em dois períodos: a do Estado policial e a do iluminismo. O Estado policial não confia na imatura razão dos destinatários do Direito, assumindo por isso a proteção deles, mesmo contra seus próprios erros, e dedicando-se a torná-los felizes, mesmo contra sua vontade. Ele é (nas palavras de uma Câmara da Corte da Bavária, em 1766) o tutor natural de seus súditos, os quais devem ser educados ainda que contra a própria vontade, assim como se organiza a economia doméstica. Não apenas direitos, mas também obrigações fundamentam-se, com freqüência, no mesmo egoísmo. O que não está proibido está determinado – não apenas permitido. A ordem jurídica imagina seu destinatário como um homem muito egoísta, a ponto de deixar-se conduzir exclusivamente por seus interesses, mas não suficientemente inteligente para reconhecer por si mesmo estes interesses.

O iluminismo e o Direito Natural orientaram a ordem jurídica para o mesmo  tipo humano do qual partira o Direito Romano: um indivíduo não só egoísta, mas também capaz de perseguir o que entendia como de seu interesse; um indivíduo liberado, por isso, de todos os laços sociológicos e sujeito apenas a vinculações jurídicas que assentam no que entende serem seus interesses individuais. Aí reside, ao mesmo tempo, uma inalienável visão metodológica e uma concepção historicamente condicionada. De fato, o legislador deve formalizar a lei considerando os homens egoístas a ponto de buscarem seus interesses sem nenhum escrúpulo, como se inexistissem limitações legais, e inteligentes a ponto de reconhecerem imediatamente as lacunas das limitações existentes; a lei (repetindo Kant) deve adaptar-se também a uma população de demônios, desde que possuam ao menos a razão. Como disse Maquiavel, ninguém pode outorgar uma Constituiçãoou uma lei a uma República se nãopartir do pressuposto de quetodos os homenssãomaus. É o mesmo que consta de velho provérbio jurídico: mauscostumes fazem boas leis. Todas as leis devem orientar-se pela figura fictícia de um homem profundamente egoísta e inteligente. Naquele período jurídico, no entanto, esse tipo humano era mais do que uma construção fictícia, pois ele correspondia realmente do tipo empírico médio: não só a Economia nacional clássica, também a teoria do Direito Natural admitia que os homens, em sua maioria, correspondem realmente ao homo oeconomicus.  Essa época de brilho e vivacidade não percebeu que o homem não é, em sua maioria, egoísta, inteligente e ativo; ao contrário, é bom, imbecil e acomodado.

Só a crença ingênua na veracidade de sua concepção humanista habilitou essa época a estruturar a ordem jurídica sobre um novo tipo de homem com admirável coerência. Desapareceram as demais configurações medievais e patriarcais: todos os direitos atribuídos sob o falso pressuposto de serem exercíveis na medida dos deveres foram puramente divididos em direitos e deveres separados. Mesmo os deveres do Estado policial foram eliminados, no interesse dos próprios obrigados, ainda que não reconhecido por estes; onde tais deveres coincidiam com o interesse egoísta, não foram impostos como deveres, mas outorgados como direitos: beneficia non obtrunduntur (benefícios não são impostos): mesmo quem não quer, recebe-os; a vontade do homem é seu reino celestial. Pressupõem-se inteligência e ação que reconhecem os interesses e os meios para obtê-los, inclusive os meios jurídicos: ignorantia juris nocet, jus vigilantibus scriptum – o Direito não se preocupa com os que dormem! São ignorados todos os vínculos sociais e econômicos que poderiam impedir a busca dos interesses adequadamente entendidos, exceto os instituídos pelo Direito; a possibilidade jurídica é transformada em possibilidade de fato; a liberdade contratual, de caráter jurídico formal, por exemplo, passa a ser entendida como liberdade real de contratar. Todos os homens, vistos como egoístas, racionais, ativos e livres, são considerados iguais, uns aos outros. As partes de um contrato são tratadas como iguais, como se fossem pessoas diante de sua própria imagem no espelho; na vida do Direito entra sempre o mesmo homem diante de si mesmo, como fantásticos sósias, na multiplicidade de papéis repetidos milhares de vezes.

O pensamento jurídico foi dominado por esta concepção do homem até época muito mais recente do que imaginamos e queremos. Partiu do Direito Privado para chegar, de forma conseqüente, ao Direito Processual Civil: a máxima de relacionamento supunha que, no processo, estavam frente a frente, em igualdade de condições, algo como dois experimentados jogadores de xadrez, dois peritos muito conscientes dos interesses que os moviam, sem necessitar da ajuda do juiz. O Direito Penal, sob inspiração de Feuerbach, estava também sob esta orientação: sua teoria da coerção psíquica supõe homens que buscam interesses pessoais de maneira puramente egoísta e racional, sem nenhuma pressão instintiva ou consciente resultante do cálculo das vantagens e desvantagens decorrentes de seu crime. Até o Direito Público foi fundamentado e desenvolvido com base na teoria do contrato social, nos interesses individuais de homens livres e iguais. No mesmo sentido, aparece o exercício do direito de voto como pura manifestação de interesses individuais; a maioria e a minoria resultantes de uma eleição aparecem como o resultado ocasional das manifestações de interesses assemelhados. Os fundamentos sociológicos do voto individual, no entanto, assim como o Partido e a Classe, ficam longe da perspectiva do Direito. Se Rousseau combateu as formações partidárias porque falseavam a manifestação dos interesses individuais, da mesma forma o Direito estatal e a ciência do Direito estatal, em um passado não tão distante, no mínimo ignoraram os Partidos Políticos, apesar de sua importância. Eles representariam puras formações sociológicas, sem dignidade jurídica; para o Direito existiriam somente eleitores individuais. Esta era a orientação do Direito, em todos os seus setores, voltado para um tipo humano individualista e intelectualista. Apenas em um fragmento da ordem jurídica era ainda vigente o pensamento patriarcal como limitação do indivíduo, através de direitos impostos e penetrados por obrigações – no Direito de Família. Confiavam-se, como antes, ao marido e pai, direitos relativamente à esposa e aos filhos, na esperança de que eles seriam exercidos na medida dos deveres. Mas também no Direito de Família foram incluídas, cada vez mais, garantias, visando a assegurar o exercício dos direitos, de acordo com os deveres de maridos e pais; lembre-se, a este propósito, a criação dos Juizados de Menores e dos Códigos de Menores. Também aqui teve lugar a substituição dos direitos empapados de deveres por direitos relativos a interesses individuais e a deveres relacionados aos interesses de terceiros.

Entrementes ficou cada vez mais evidente quão fictício era o tipo médio empírico de homem aceito no período jurídico liberal. Nem sempre ele se encontra em condições de reconhecer seu próprio interesse ou de agir em conformidade com o interesse reconhecido, embora seja sempre motivado exclusivamente por seu interesse. Em todos aqueles casos de desconhecimento da necessidade, ou de descuido, o direito, constituído exclusivamente no pressuposto de um homem inteligente, livre e motivado por interesses conduzia à destruição do próprio homem. Através da lei da usura, renovou-se a proteção jurídica do sujeito de direito, apesar de sua manifestação de vontade em sentido contrário. Progrediram as limitações contratuais, como na proteção jurídica ao trabalhador. No processo civil – a começar pelo processo civil austríaco –, quebrando cada vez mais a máxima da livre negociação, imiscuiu-se o juiz no jogo livre das partes, auxiliando e orientando, certamente no interesse destas mesmas partes. No Direito Penal, naufragou a intimidação física proposta por Feuerbach; evidenciou-se que o criminoso é quem se encontra na pior situação para avaliar friamente as vantagens e desvantagens de seu comportamento e para decidir-se pelo caminho mais vantajoso – por isso é necessário melhorá-lo, isso é, elevá-lo, para que possa apreender seu próprio interesse e agir de acordo com o interesse assim apreendido. Dizendo melhor (como demonstra a nova idéia de homem), por trás do tipo único de agente é descoberta, mesmo no Direito, considerável variedade de tipos psicológicos – o criminoso de ocasião, o habitual, o corrigível e o incorrigível. A nova doutrina do Direito Penal pode ser qualificada como sociológica, pois eleva ao plano jurídico uma série de fatos até então tidos como puramente sociais. Estamos diante de nova concepção de homem no Direito; prepara-se nova transformação temporal do Direito; irrompe nova época jurídica.

Em comparação com o esquema da época liberal, da liberdade abstrata, do egoísmo e da racionalidade, a nova imagem do homem é muito mais próxima da vida, nela incluindo-se também a capacidade intelectual, econômica e social do sujeito de direito. O homem, para o Direito, a partir de então, não é mais Robinson ou Adão, não é mais um individuo isolado, mas é o homem em sociedade, o homem coletivo. Com esta aproximação do tipo humano jurídico à realidade social, subdivide-se também o sujeito de direito em uma multiplicidade de tipos sociais relevantes, agora também jurídicos. Tudo isso pode ser percebido especialmente na predominância do Direito do Trabalho na época social do Direito, da mesma forma como o Direito Comercial predominara na época liberal.

O Direito Privado, ou burguês, conhecia apenas sujeitos de direito que, de forma bilateral, celebravam contratos a partir de manifestações livres da vontade; não o trabalhador com sua inferioridade na relação com o empresário. Desconhecia também a solidariedade entre os trabalhadores, que procura compensar a inferioridade das forças do trabalhador individual diante do empresário; desconhecia ainda as organizações sindicais que, através dos acordos coletivos passam a ser as verdadeiras partes contratantes do trabalho; reconhecia somente as partes individualmente e os contratos individuais de trabalho. Nada conhecia sobre as associações empresariais. O Direito burguês só via a multiplicidade de contratos de trabalho de cada empresário com seus trabalhadores, sem qualquer vinculação jurídica entre estes. Não via o pessoal da empresa como unidade sociológica fechada – não via o bosque, oculto pelas árvores. Esta é, no entanto, a essência do Direito do Trabalho: sua proximidade à vida. Ele não vê apenas pessoas, como ocorre com o Direito burguês, mas vê a empresa, o operário, o funcionário; não vê apenas pessoas isoladas, mas associações e empresas; não vê somente contratos livremente negociados, mas também duras lutas pelo poder econômico, que determinam fundamentalmente as pretensas contratações livres. Vê os indivíduos como membros de suas associações, de suas empresas e, em última análise, do todo econômico e da sociedade, com as motivações que daí emergem, provenientes de um sentimento coletivo ou, pelo menos, do egoísmo ampliado, que denominamos solidariedade.

O Direito Público foi também afetado por esta nova concepção do homem. Encontramo-nos em meio a uma transformação do conceito de democracia: esta idéia, construída sobre o homem individualizado, está sendo repensada a partir do conceito de homem coletivo. Já não significa mais, para nós, igualdade de todosaquelesque têm face de homem, mas, quase ao contrário disso, corresponde agora ao melhor método de escolha da autoridade. Em conexão com isto, não mais considera a soma dos indivíduos, mas grupos sociologicamente muito complexos, classes e Partidos. Isto não vale apenas para o conceito sociológico e político de democracia, senão também para seu conceito jurídico: estes grupos, com sua participação eleitoral proporcional, adquirem relevância jurídica. Os Partidos, até pouco tempo atrás das cortinas, passam a ser vistos como importantes órgãos do Estado e participam da cena do Estado de Direito e da ciência do Direito Público.

Pensar o homem no Direito como ser coletivo significa, finalmente, introduzir nele uma parcela do ethos coletivo. Concretiza-se desta forma nova etização do Direito; nova introdução, nele, do conteúdo ético do dever: afirma-se que a propriedade obriga e que o direito de votar é também o dever de votar; como Jhering já tinha elevado, de forma impressionante, a luta pelo direito à condição de dever moral. Com tal injeção de dever no direito, a era social do Direito retoma as idéias da era patriarcal: todo direito assemelha-se, agora, a uma simples concessão da coletividade. Mas esta injeção de dever impõe ao Direito, diferentemente da época do Direito patriarcal, um condicionamento pelo dever. A Economia de guerra ensinou-nos a ver todos os direitos como transitórios, confiados ao indivíduo somente no pressuposto de serem exercidos em conformidade com o dever e o legislador está sempre pronto a eliminar os direitos mal exercidos, a eliminar dos grupos sociais os direitos que eles não exercem em conformidade com seus deveres. Todos os direitos se transformaram, desta forma, em direitos revogáveis.

Nossa tarefa não se esgota com este esboço das diversas concepções do homem como objeto da ordem jurídica. Faz-se necessário, ainda que em breves traços, esboçar como o Direito concebe o homem como seu sujeito, como seu criador. Mais ainda: verificar se ele admite o legislador humano como seu criador, pois o homem como legislador não é uma idéia pacífica, mas uma conquista tardia da História.

Na pré-história germânica, direitos, costumes, moralidade, religião, eram produtos da sabedoria dos antepassados, eram ditames da consciência popular, da vontade dos deuses e, portanto, não decorriam da legislação humana. O aperfeiçoamento do Direito, mediante sua formulação escrita, consumou-se quando o que era considerado novo passou a ser considerado velho. Na introdução ao Espelho da Saxônia (famoso livro de Direito de 1220) consta: eunão inventei estedireito, maselenos foi legadopornossosbonsantepassados.

Os primeiros legisladores devem, por isso, ter sido considerados homens que, com mãos sacrílegas, imiscuíam-se nas prerrogativas dos deuses. Na Alemanha, a caminhada rumo à legislação humana ocorreu de forma especialmente tardia e lenta. Neste processo, as legislações merovíngias e carolíngias representaram decisiva transformação. O rei não podia legislar diretamente para o povo, mas seus funcionários podiam fazê-lo. A lei jurídica era apenas administrativa e obrigava somente os juízes do rei, enquanto o povo e os juízes do povo regiam-se pelo Direito consuetudinário. Muito tempo durou a luta pelo predomínio, entre Direito Administrativo e Direito costumeiro, sob a decisiva forma, sempre reiterada, de um eternoprocessoentre o Direito e o Estado.

Vamos dar agora um longo salto até os tempos modernos! Mesmo muito avançadas na modernidade, a ciência e a prática jurídicas não costumavam se ocupar da lei, mas afirmavam-se a partir de outras autoridades como a Bíblia e os clássicos da antiguidade. Parece que ainda não reconheciam a força hoje incondicionalmente obrigatória da lei estatal. É a época do Direito Natural, na qual não se reconhecia a validade do Direito Positivo como decorrente do simples fato de ser editado pela autoridade estatal, mas apenas na medida da justiça de seu conteúdo. Mesmo Hobbes precisou repetir muitas vezes, diante de tal concepção: a leinão é umconselho e simumcomando.

A recepção do Direito Romano, escrito por aquele que foi considerado predecessor do Imperador romano, preparou a aceitação da validade da vontade do Estado como lei, mas só o Estado absoluto conseguiu impô-la. No Estado dos funcionários predominou somente o Direito da administração. Só o iluminismo conseguiu substituir o querer instintivo do espírito do povo pelo querer teleológico do legislador estatal. A linguagem é, também aqui, o melhor testemunho da transformação ocorrida nas consciências. Quase de um só golpe surge a linguagem jurídica moderna, a linguagem que se torna consciente do poder jurídico do Estado, a maravilhosa e conseqüente linguagem do imperativo categórico, que se distingue cada vez mais intensamente da linguagem da persuasão, do convencimento, da doutrinação. Finalmente, entra na cena da História a figura do homem como dominador absoluto, como legislador.

A evolução que vai do Estado absoluto ao Estado constitucional significa que a vontade do Estado transformou-se em vontade do povo, que o novo Direito despersonalizou-se e socializou-se. Atualmente, a legislação apóia-se não apenas na representação popular, mas no próprio povo. Especialistas e interessados são convocados para prepará-la, cada vez mais, às vezes informalmente e outras vezes até com respaldo constitucional – como no Conselho Econômico do Reich. A lei transformou-se em nova espécie de direito do povo – não mais o desorganizado impulso do espírito do povo, mas o querer finalístico de uma vontade popular absolutamente organizada.

O curso da História vai assim, a partir de um querer coletivo inconsciente que se impõe ao querer individual consciente, ao querer coletivo consciente do legislador, em exata correspondência a nossa consideração sobre o homem como sujeito e como objeto do Direito. Todo Direito é, em primeiro lugar, tanto em sentido subjetivo quanto objetivo, Direito da comunidade, da consciência coletiva, Direito para a comunidade humana; em seguida, o direito individual e o legislador de direitos individuais estão voltados para indivíduos imaginados como isolados; finalmente, outra vez em seu duplo significado, temos o Direito da comunidade – não mais Direito da comunidade patriarcal e sim da comunidade organizada.

Retornamos uma vez mais ao homem como objeto do Direito. As considerações anteriores não são sem precedentes. De alguma outra forma foram sempre cultivadas sob o véu transparente das construções históricas, na doutrina do estado de natureza. Por este não se entende essencialmente outra coisa senão o estado original da alma humana, no qual o Direito encontra-se já constituído e no qual encontra seu ponto de partida. As diversas épocas do Direito renderam diferentes homenagens a contraditórias concepções deste estado de alma, designadas, nas doutrinas do estado de natureza como appetitus societatis (Grotius) ou homo homini lupus (Hobbes). Georg Jellinek mostrou, numa conferência tão cheia de espirituosidade quanto de conteúdo, como o tipo humano que a velha teoria do Estado tomou como ponto de partida estava ajustado à figura do pai da estirpe humana: o velho Adão, em suas cambiantes formas históricas de manifestação – o homem no Direito.

Com o nome que acabo de referir, desperto a lembrança de uma época gloriosa de nossa gloriosa Universidade, a Heidelberg de Georg Jellinek, Wilhelm Windelband, Emil Lask, Ernest Tröltsch, Eberhard Gothein e Max Weber. A esta Heidelberg agradeço minha formação espiritual e, como me é permitido agora retornar ao velho lar de meu espírito, desconheço melhor forma de gratidão do que a invocação destes grandes mestres. Mas estranho destino quis que dois homens tivessem aqui seu círculo de influência e sua última morada; homens que, nos dois setores de trabalho de minha vida, foram profundamente professores, mestres e amigos fraternais: Franz Von Liszt e Friedrich Ebert. Permitam-me, por isso, que, nesta hora, para mim tão solene, mencione também seus nomes, com imorredoura veneração e gratidão. Sob a inspiração deles quero tomar nas mãos este novo arado para trabalhar novas terras.

Com imensa felicidade, o trabalho cotidiano de minhas mãos cria e permite que eu conclua minha tarefa.

(1) Aula inaugural na Universidade de Heidelberg, publicada na coleção Direito e Estado, Editora I.C.B. Mohr (Paul Siebeck), Tübingen, 1927.