Temas políticos


 

O COMUNISMO E A CRISE DA CIVILIZAÇÃO1

 

Falamos em nome dos professores universitários e intelectuais católicos do Rio Grande. Falamos, pois, em nome de inteligências disciplinadas por uma milenar, nítida e definitiva visão do ser e do homem, tangidas por uma fé, por um ideal de vida, que se situam, com rigorosa precisão, dentro do panorama da cultura, no interior das correntes do pensamento moderno.

Conscientemente, renunciamos às femininas posições gideanas de disponibilidade doutrinal. Não pertencemos àquele grupo de homens que Chesterton afirmou terem perdido o seu endereço. Não caducou, ainda, nossa carteira de identidade ideológica e temos a vi­são clara de nossa localização dentro das coordenadas do pensamento, dentro das exigências da vida atual.

Somos, pois, portadores, embora indignos, de uma mensagem de verdade, depositários de uma cultura que enche dois milênios da história, guardiões de uma tabela de valores da vida, com a qual se construíram as bases humanas da civilização do Ocidente. Não senti­mos nenhum desentendimento em face da Verdade do Cristo; guardamos ao menos, a nobreza de não condenar a fé que, eventualmente, nos possa condenar os atos.

E a essas determinações de nosso modo de ser espiritual se associa nossa situação de homens de cultura, de professores universitários. Tudo isto obriga-nos a ser confessores da verdade. Tudo isto investe-nos numa autêntica magistratura do espírito.

Tomás de Aquino, traçando a missão temporal do homem de pensamento, não lhe aponta, apenas, o dever da posse, mas, ainda, o da defesa da verdade e do julgamento do erro. Praticaríamos uma traição, aquela mesma traição que Benda atribuiu aos intelectuais da França, se silenciássemos em face das situações, sociais e ideológicas, que ameaçam o mundo do espírito, os valores da inteligência, os roteiros autênticos da alma humana.

E, nos dias que passam, mil sugestões avivam em nós a cons­ciência desse dever de afirmar a verdade, dessa obrigação de confessá-la, dessa viril e essencial tarefa de distinguir, no meio da confusão, de falar, quando dominam silêncios traidores, de definir, quando se ensaiam compromissos absurdos entre a verdade e o erro, entre o de­ver e o interesse.

Quando o Brasil comemora um episódio de sua história recente, como o da revolução comunista de 1935, nós, professores e intelectuais católicos, vendo nesse acontecimento um fenômeno que transcende os limites da sua crônica policial, cumprimos um dever, contemplando, nesta velada cívica, sua grave e perturbadora significação humana e nacional. Ele foi, entre nós, uma expressão, dolorosa e sangrenta, da crise da civilização moderna, um sintoma cruel de uma cultura enferma, de um Ocidente em queda. Ele nos oferta uma mensagem que merece, de todos os brasileiros, uma hora de meditação.

O mal, que nele se revelou, não foi ainda debelado: o comunismo não está, apenas, a bater às nossas portas; ele já se infiltrou em nossos porões; ele ronda, sinistramente, os caminhos de paz e de ordem da nacionalidade; ele ameaça e atemoriza, tenta narcotizar e ensaia a hipnose das correntes da opinião pública.

Ele é, em larga escala, o inspirador desse fenômeno alarmante de uma revolução semântica - de esvaziamento, de substituição e, mesmo, de inversão do sentido de palavras do nosso vocabulário moral, político e jurídico. Pensai, apenas, no processo de volatização do conteúdo conceitual de termos como estes: democracia - liberdade ­justiça - solidariedade - patriotismo - ditadura...

E uma revolução semântica, desse estilo, denuncia uma crise espiritual muito mais grave do que as que se costuma determinar as revoluções políticas comuns: é um sintoma de desagregação moral das consciências, de corrupção da inteligência, de instabilidade das nossas características humanas.

E a dialética dos camelos comunistas, embora inspirada por uma mentalidade pré-lógica, circula em folhetos de propaganda, se insinua em nossos diários, em nossa literatura, e se furta, sutil, escamoteante, aos critérios da censura oficial. O comunismo burla o policiamento da nossa cidade espiritual. As avenidas do pensamento, os roteiros espirituais do Brasil estão infestados de salteadores de certezas, de saqueadores de verdades, de semeadores de confusão e do erro. Nossa cidade espiritual não é uma cidade policiada.

E a força guardiã de suas avenidas chama-se crítica, advertência, pregação de doutrinas de vida e de salvação social.

Não é a Inquisição que se exige. Nem se sugere a criação da Gestapo. Urge a formação de correntes de opinião ajustadas à realidade humana e nacional, impõe-se a crítica das ideologias que narcotizam e matam, é necessária a denúncia pública dos erros que circulam, é vital sanear, iluminar as diretivas dos órgãos de informação popular.

Sofremos por carência de distinções, de definições. Defina­mos, distingamos, afirmemos - isto é mais humano do que salvar, de­pois, a verdade, pela violência e pela força. As idéias serão, amanhã, gestos: se verdadeiras, de salvação, se erradas, de morte. Só assim, talvez, ainda seja possível uma convivência humana de seres livres. De outro modo seremos, amanhã, partes de um rebanho...

É uma tarefa que nos cabe, é um dever que se nos impõe, o afirmar, o distinguir. Enquanto integrados na cultura católica, o exercício desse dever não nos levará, nunca, a posições negativas, de pura condenação doutrinal, de um fenômeno complexo como o comunismo, não apreciável, apenas, através de juízos morais.

A concepção cristã do mundo, que domina nosso espírito, não é somente uma interpretação da realidade; é uma vida, é uma energia transformadora do homem - a mais potente que conhece a história; é uma força criadora de formas de ação, disciplinadora do comporta­mento social; é uma energia histórica.

Da teologia católica emergiu uma sociologia; o dogma frutificou em teoria social, política, econômica e jurídica. E essas regras vitais de ação coletiva, incorporadas à legislação e às diretivas da política econômica, disciplinam e pacificam, hoje, numerosas nações. O Cristianismo não é um feixe de proibições, de recusas em face da vida; ele é realidade positiva e criadora, força estimulante e expansiva das autênticas energias humanas. Ele inibe, apenas, nossos instintos de morte, nossas tentativas de evasão do ser, de desnaturação da vida.

Nossa condenação do comunismo não consiste, pois, tão só, na formulação de juízos morais, proibitivos, de inspiração teológica. O dogma, pensado por Tomás de Aquino, já animou as mãos orientadoras, os gestos transformadores da matéria social de Leão XIII, de Pio XI. Os papas fizeram-se líderes sociais, condutores da ação corretiva das injustiças criadas pela sociedade burguesa.

Dissemos já que a revolução comunista de 35 impressiona­nos, particularmente, pela sua significação humana: ela é um reflexo, dentro da realidade nacional, da decadência do Ocidente. Para bem fixar a fisionomia informe dessa ideologia das estepes, meditemos sobre a civilização que a gerou, e da qual ela é apenas uma das expressões mórbidas - o estado final de um secular processo de decomposição espiritual e social.

 

1 - O comunismo e a crise da civilização

 

É um dado elementar de etnologia, é um simples registro de Filosofia da História, o fato das raízes cristãs e greco-romanas da civilização ocidental.

Desde Voltaire, passando por Augusto Comte, até os contemporâneos, Waldo Franck, Belloc, Berdiaef, Davenson, constitui um postulado histórico, uma condição de inteligibilidade da vida e da cultura ocidentais, a verdade de ter sido a Igreja a sua fonte, a sua artífice, a sua inspiradora. Disse o insuspeito Voltaire: "A história da Europa é a história da Santa Sé".

No período medieval, após séculos de ação disciplinadora do homem e da sociedade, a Igreja tinha já estruturado, espiritualmente, a Europa. Os seus fundamentos estavam lançados, as linhas mestras da construção do Ocidente estavam já traçadas e as grandes energias espirituais da cultura tinham já recebido a direção de seu curso evolutivo, de sua marcha expansiva.

Foi o período hígido da civilização ocidental. Ela era uma civilização sadia. Possuía unidade e harmonia: todos os ingredientes técnicos e culturais, todos os elementos de composição de uma civilização - sua vida política, jurídica, econômica, seus costumes, seu sis­tema educativo, sua arte, sua ciência, sua filosofia, sua técnica - tudo estava informado, disciplinado e harmonizado, em perfeita conjugação, em total sinergia funcional, através da livre aceitação de uma mesma concepção da vida, de uma única e fundamental doutrina sobre o mundo e o homem. Dela disse Comte: "É a obra-prima política da sabedoria humana". A fé cristã era a misteriosa força unificadora desse cosmos social; a unidade ideológica era a força polarizadora e o centro de gravitação, de todas essas energias humanas e sociais.

Mas uma civilização, como observa Davenson, tem condicionada sua rigidez e estabilidade, sua vida, pela fidelidade dos homens que a integram ao ideal, à verdade, à fé, que a forjaram. Está nas mãos dos integrantes de um círculo de cultura, dos componentes de um sistema de civilização, sua conservação e progresso, ou sua regressão e morte. A unidade, que explica sua harmonia e vigor, é fraturável. E a unidade da civilização ocidental vem, desde há vários séculos, sofrendo lesões progressivas e rupturas fatais.

Múltiplos fatores, de vária natureza - mas redutíveis todos a ações livres, a opções, a renúncias do homem ocidental - conspiraram na formação do processo mórbido de perda dessa unidade vital. Esse processo, no seu aspecto apenas ideológico, teve vários momentos: a negação da Igreja do Cristo, a negação de Deus e, como decorrência última, a negação do homem - a tentativa suicida, a luta contra a lei do ser e da realidade.

Renascença, Revolução Francesa - laicismo - cientificismo ­capitalismo e burguesia pagãos - socialismo marxista - totalitarismo, são outros nomes que designam essas etapas mórbidas, esses mo­mentos de desagregação do Ocidente.

Com o surto do totalitarismo, as forças de morte que ameaçavam a Europa, culminam em violência e assumem formas de ação revolucionária e militar. A raça e a classe são apontadas como realidades sobre as quais se deverá processar a reunificação ocidental. A unidade da civilização seria imposta pela coação, realizada pela violência.

No entanto, a unidade da civilização cristã resultara da aceitação livre, pelos homens, de uma mesma verdade; ela foi o fruto magnífico de uma mesma fé, de uma comum caridade, de uma idêntica esperança, de multidões de almas humanas, conquistadas, no mais íntimo do seu ser, pela divina sedução da Palavra do Verbo, pelos apelos do Cristo para que todos fossem um - pela fraternidade e pelo amor.

A unidade da nova ordem totalitária - comunista ou nazista ­seria toda exterior, apenas uma semelhança de gestos e atitudes, uma conformidade farisaica de comportamento coletivo, imposta pela coa­ção. Seria uma unidade passiva, resultante da intimidação, nunca fruto vivo e fecundo de uma colaboração de consciência livres. Seria a unidade do rebanho, a unidade de senzala. Essa é a terapêutica que se preconiza, para evitar o caos, o desastre social, a queda do Oci­dente, vaticinada por Osvaldo Spengler.

Contra essa terapêutica elementar e primitiva, a única e suficiente objeção que se levanta, é que não só agravaria o mal que tenta debelar; conduziria à liquidação de toda autêntica cultura humana.

Contra os totalitarismos nazistas e fascistas, já operou a reação do homem; contra eles a consciência religiosa, moral, política e jurídica do Ocidente, já lançou os únicos argumentos adequados e convincentes: a dialética dos canhões, a lógica da força.

Mas, contra o irmão siamês dos totalitarismos alemão e italiano, contra o comunismo, o Ocidente civilizado e cristão não pôde, ainda, por circunstâncias múltiplas, usar de eficazes meios de neutralização e de combate. Daí, sua temibilidade - daí, a gravidade de sua presença como ideologia inspiradora de uma força política, como a Rússia Soviética que conosco colabora no esmagamento do paganismo nazista.

 

2 - O comunismo como concepção de mundo

 

"Pergunta-se freqüentemente, observa Jacgues Maritain, por­que as soluções sociais comunistas relativas à organização do trabalho do homem sobre a terra, à comunidade temporal, não podem ser dissociadas do ateísmo, que é uma metafísica. A resposta consiste em observar que, considerado no seu espírito e nos seus princípios, o Comunismo, tal como existe, é um sistema completo de doutrina e de vida, que pretende revelar ao homem o sentido de sua existência, tenta responder a todas as questões fundamentais que a vida formula, e manifesta uma potência inigualável de absorção totalitária. Ele é uma religião, e das mais imperativas, e se considera chamado a substituir todas as religiões; uma religião atéia, cuja dogmática se concretiza no materialismo dialético, e a que o comunismo, como regime de vida, é a expressão ética e social.

Assim o ateísmo não é exigido como uma conseqüência necessária do sistema social; é pressuposto, como princípio. O ateísmo está na base, no ponto de partida desse sistema. E esta é a razão pela qual o pensamento comunista lhe é tão ardentemente fiel, pois o ateísmo é o princípio que estabiliza suas conclusões práticas, e sem o qual estas perderiam sua necessidade e seu valor".

A gênese dessa concepção não é difícil de ser apontada. O marxismo se deriva, largamente, como doutrina filosófica da ala esquerda do hegelianismo, através da influência de Feuerbach.

"Todo o ateísmo de Marx, observa Berdiaef, nada mais é do que a projeção, na ordem social, da tese feuerbachiana de que o homem não foi criado à imagem e semelhança de Deus": Deus é que te­ria sido engendrado à imagem e semelhança do homem. A religião nada mais seria do que a expressão de uma natureza superior no homem, e que dele se destaca, se lhe torna estranha, para se deslocar ao além de uma região transcendente.

A religião teria despojado, empobrecido o homem. O homem miserável possuiria um Deus rico. Toda riqueza atribuída a Deus lhe foi comunicada pelo homem. Pois se o homem tivesse sido forte, rico e livre, não necessitaria de Deus e possuiria, por si mesmo, os mais altos dons.

Dessas premissas, Marx extrai a seguinte conclusão: a fé em Deus manterá o proletariado na miséria e na baixeza. "Distribuindo consolações quiméricas, as religiões entravam as realizações imediatas, que constituíam a verdadeira libertação do operário. O proletariado vitorioso deve repudiar as consolações ilusórias do além, e situar na terra sua vitória. A religião deixa de ser um tema privado, para se tornar social, no mais alto grau. O comunista autêntico não pode ser um crente, um cristão. Uma concepção da vida, previamente definida, lhe é imposta: ele deve ser um materialista e um ateu militante. Aceitar o programa social do comunismo não basta para ser membro do partido. É necessário aceitar esse credo, contrário à fé cristã, e no qual consiste, essencialmente, o comunismo.

Os comunistas consideram-se adversários da moral evangélica, do amor, da piedade e da compaixão. Eis aí o seu aspecto terrível. Detentores do poder, exercendo uma ditadura, não somente política e econômica, mas, ainda, intelectual, e à qual não escapam nem as al­mas, nem as consciências, todos os meios são permitidos, e eles usam todos os meios. O que realizaram, de fato na Rússia, foi uma ideocracia, uma forma renovadora da utopia platônica; e a supressão da liberdade de consciência e de pensamento, a intolerância religiosa são as conseqüências inevitáveis dum tal sistema".

E Nicolau Berdiaef, que vimos citando, conclui sua análise do comunismo, como concepção do mundo, com estas palavras, dignas de serem meditadas pelos que, entre nós, acenam para a possibilidade de um comunismo teísta, espiritualista e, até mesmo, cristão.

"Os chefes comunistas estão preocupados com a alma de seus governados; querem salvá-la a seu modo, querem nutri-la com a única verdade que salva, e eles julgam que essa verdade é a do materialismo dialético. Há um terreno no qual o comunismo permanece irredutível, impiedoso, intolerante, no qual não admite nenhuma concessão - é o da sua concepção do mundo. O poder soviético, mais fácil e rapidamente, ressuscitará o capitalismo na vida econômica, que a liberdade de consciência religiosa, a liberdade de criar uma cultura espiritual".

Detivemo-nos no exame da concepção do mundo comunista dada a sua importância essencial: sem conhecê-la, torna-se impossível uma verdadeira inteligência do socialismo marxista, tal como se encarnou no tecido histórico e se fez regime político e econômico na Rússia Soviética. Impugnar essa ideologia é tomar posição crítica, em face do ateísmo e do materialismo.

Os comunistas não vêem, nessas posições filosóficas que adotam, nada de problemático; não "têm consciência do processo metafisico, logicamente implicado nessas posições doutrinárias. Eles se instalaram no terreno do ateísmo, como se fosse o único em que é possível construir, e como se não fosse necessária uma viagem filosófica, para chegar a esse terreno.

Esse universo ideológico é tão natural para os comunistas que eles não se preocupam de Ihe formular a significação. Essa religião, essa fé, não se lhes afiguram ser uma religião, porque são ateus; não as interpretam como credo, porque os consideram uma expressão da ciência".

E, no entanto, esse credo ateu-materialista, inspirador do comunismo, constitui um estado de espírito, superado já na Grécia pagã, pela Filosofia, e não encontra, na ciência moderna, nenhum fato que lhe confirme a dogmática absurda.

Sobre o problema de Deus, já dissera um dos mais irreverentes espíritos da Europa moderna, Voltaire: "Afirmar a existência de Deus poderá acarretar dificuldades; negá-la, acarretará absurdos". O comunismo, optando pela negação, situa-se, pois, num clima espiritual de absurdos.

A atribuição - implicada na doutrina do materialismo dialético - de uma matéria possuidora de atributos psíquicos, revela uma regressão do pensamento humano à fase quase pré-filosófica do espírito grego: ao período em que desabrochou o hilozoísmo dos atomistas e de alguns pensadores jônicos.

As figuras maiores da cultura greco-romana sorririam diante da candura intelectual dos que tentam hoje, sem nenhum sentido histórico-cultural, ressuscitar posições intelectuais já superadas. A não ser que Sócrates, Aristóteles e Cícero se dispusessem a considerar, como uma refutação de sua filosofia teísta, o fato indicado seriamente por um pensador francês contemporâneo, como prova e fundamento do ateísmo marxista: o fenômeno da luta das classes!...

 

3 - O comunismo como sistema sócio-econômico

 

O efetuamento deformador do comunismo, enquanto sistema econômico-social, dentro dessa primitiva concepção da vida, determina a sua repulsa por todas as inteligências que não aceitam o credo absurdo do materialismo dialético.

No entanto, um exame sereno e compreensivo de determina­das teses da doutrina social de Marx revela que, algumas dentre elas, estão inspiradas num nobre anseio de justiça e sugerem soluções plenamente realizáveis, fora do clima ideológico comunista.

Sem aceitar a doutrina de que a propriedade é um roubo, sem negar-lhe o caráter de um direito natural do homem, podemos, dentro de uma perspectiva espiritualista e cristã, reconhecer que, em nome desse direito, seculares injustiças foram perpetradas e, no seu uso, se realizaram muitos atos anti-sociais e anti-humanos.

Não é este o momento, não é esta a oportunidade de exame da dissociabilidade de várias teses e reivindicações da doutrina social marxista, em face da metafísica de hospital, que as sutura e lhes serve de fulcro. Esses elementos doutrinários, uma vez escoimados de suas impurezas originais, poderão ser incorporadas às grandes linhas de uma síntese teórica de inspiração cristã. Não necessitamos, no entanto, na realização dessa tarefa incorporadora das verdades esparsas no sistema econômico-social comunista, percorrer a fase revolucionária e bárbara, que preparou sua aplicação à realidade russa.

 

4 - O comunismo como experiência social na Rússia

 

Relativamente ao comunismo, como ensaio efetivo de experiência social na Rússia, sem considerar os meios cruéis de sua realização, registremos, apenas, sua significação e seu valor. Em estudo recente, sobre o sentido dessa experiência, observou, com muita lucidez e compreensão, Roberto Sabóia de Medeiros: "Esta enorme experiência humana coloca-nos diante das seguintes interrogações: a) Se o critério da eficiência basta para canonizar um regime. b) Se as trans­formações operadas na mentalidade e na moralidade das pessoas humanas e na sociedade indicam uma fórmula para remodelação econômica e social do resto do mundo. c) Se há exigências profundas vazadas nas concretizações comunistas: exigências rigorosas e reais, em si mesmas, possam ter tomado aspecto reprovável".

Relativamente à primeira interrogação, só há uma resposta: "para que se possa formar um juízo sobre um sistema eficiente, não basta a eficiência. Tudo depende de como é tratada a pessoa humana e quais os ideais que se lhe propõem".

Entre nós, a dialética da propaganda soviética, nesta questão de prova do comunismo, pela sua eficiência, revela-se tão, lamentavelmente, pré-lógica, que se torna constrangedora sua refutação. Fazer, como se ensaia tantas vezes, do êxito militar russo uma prova da verdade de uma doutrina, é em suma, substituir o silogismo pela baioneta e a lógica pela estratégia.

E o melífluo Deão de Canterbury, entre os motivos de credibilidade no êxito soviético, com uma candura de encantar, indica a existência na Rússia, um país, de lagos, de montanhas e de magníficos cereais.

A solução do segundo problema, que suscita a experiência russa - o saber se ela indica "uma fórmula para remodelação econômica e social do mundo", - exige a formulação de várias distinções.

Preliminarmente, registre-se o caráter nacional da revolução soviética: só no interior da realidade histórica e geográfica russa, se poderia processar uma tal transformação social. Berdiaef, em obra célebre: As fontes e o sentido do comunismo russo, registra essa in­comunicabilidade da experiência revolucionária operada na pátria de Lenine. Este reparo já nos adverte da temeridade de uma "repetição" desse ensaio de experimentação sociológica, em outro meio, física e culturalmente diverso.

Acresce, ainda, que sendo a pessoa humana a destinatária de toda a reforma social - pois a sociedade existe para o homem e não este para aquela - o problema da conveniência e legitimidade da generalização da experiência russa se reduz a saber se nessa operou-se, ou não, uma valorização do homem. O requisito elementar de qualquer regime valorizador é que trate "a pessoa humana como tal, independente de outros predicados".

Se o regime russo, como já foi observado, apenas vê o técnico, o trabalhador, o camponês e o homem - membro do partido, socializado, nivelado; se o regime diviniza o trabalho e a eficiência, se diviniza os objetivos e os resultados imediatos e horizontais - tal regime não é absolutamente democrático. Diremos mais: não é humano tal sistema; ele atenta contra as exigências essenciais daquele valor, em nome do qual se justificam os ensaios de reforma social - a pessoa. O comunismo soviético, observa Sabóia de Medeiros, simplesmente como experiência humana, "produziu uma falsificação ao desenvolvimento da pessoa, e, portanto, foi a experiência de um retrocesso".

No que tange a saber se o comunismo, embora "sob formas tremendas, inclui exigências profundas e reclamações espontâneas de valores espezinhados", a resposta só pode ser uma, e afirmativa. É um postulado da consciência social contemporânea, a necessidade da re­forma no regime da propriedade. Se o comunismo se equivoca, quando nela vê a fonte de toda tragédia da história, não erra, no entanto, quando lhe atribui a responsabilidade de muitos males de que padece a vida moderna.

É aqui que se revela a grande responsabilidade dos cristãos ­nunca do Cristianismo - na gênese e na evolução da crise da cultura. Eles não foram portadores fiéis da grande mensagem de libertação individual e social, que se encerra no Cristianismo; não atuaram, com energia e com zelo fraternal, no sentido de dar às verdades salvadoras do Cristo toda sua refração social.

Em sua obra, O humanismo integral, observa Jacques Maritain: "Não será irônico falar numa expressão social - temporal das verdades evangélicas, quando se completa a estrutura dos séculos modernos, em particular do século XIX? Quando se medita sobre este tema, parece fundado afirmar-se que o mundo cristão dos tempos mo­dernos faltou ao seu dever. De um modo geral, ele encerrou a verdade e a vida divinas, numa parte limitada de sua existência - nas coisas do culto e da religião e, ao menos entre os melhores, no terreno da vida interior. As realidades da vida social, da vida econõmica e política foram abandonadas à sua própria lei carnal, subtraídas à luz do Cristo!"

Marx, por exemplo, tem razão quando diz que a sociedade capitalista é uma sociedade anárquica, em que a vida se define, exclusivamente, como um jogo de interesses particulares. Nada é mais contrário ao espírito cristão.

Daí, o ressentimento dos comunistas diante do cristianismo; infundado, aliás, pois este não coincide com uma determinada ordem social, embora denominada, erroneamente, de cristã.

A experiência russa está, pois, como já se observou, a exigir de nós a realização de uma universal e humana experiência cristã - de uma aplicação coerente e enérgica do Cristianismo à totalidade da vida humana - individual e social.

 

5 - O comunismo como energia revolucionária

 

Sobre ser uma doutrina e uma experiência, o comunismo é, ainda, uma energia revolucionária, que procura impor o socialismo de Marx a todos os homens.

Sob este aspecto, como técnica de desagregação da ordem mundial, o comunismo é o crime organizado. A história recente registra toda a atrocidade de seus métodos de conquista e de seus processos antidemocráticos de domínio: na Alemanha, na Espanha, no México e no Brasil.

Aliás esses processos são coerentes com uma ideologia que define a democracia e a liberdade, como preconceitos burgueses e cujo líder, Lenine, considera bons todos os atos que servirem aos fins da revolução.

Foi para homenagear a memória de nossos patrícios, vítimas dessa força revolucionária, que aqui nos reunimos, nesta comemoração cívica. São suas vozes tumulares que, nesta hora, devemos ouvir. Delas, não dirão os técnicos da Terceira Internacional, que são vozes da quinta coluna. Essas vozes, na sua veemente repulsa de uma ideologia apta, como nenhuma, para armar mãos assassinas, nos advertem da ameaça que pesa sobre a Nação, de novos saques ao seu patrimônio espiritual.

Essas vozes de condenação e de repúdio não estão isoladas. Elas se harmonizam com os fatos serenos e definitivos, formulados sobre o comunismo, pela maior autoridade moral do mundo, pelo Pontífice de Roma. Elas corroboram as críticas que, à ideologia marxista, formularam, dentro de uma visão cristã da realidade social, os maiores líderes da democracia contemporânea.

Elas confirmam os anátemas candentes, lançados contra o comunismo pelo atual condutor da política nacional. Essas vozes nos sugerem o dever da vigilância constante em face dos sofismas, das confusões e da ação corruptora deste comunismo que, sob o pretexto de devoção aos interesses nacionais, agride as forças éticas que ainda preservam nossa Pátria do desastre e do caos. Todas as energias de disciplina cristã dos costumes que, através da formação intelectual e moral das novas gerações, trabalham pela fidelidade de nossa civilização às suas origens espiritualistas e católicas, são obstáculos à expansão comunista e, como tais, objeto de seu ódio.

Os bravos, que tombaram na revolução de novembro de 1935, não se imolaram, apenas, no cumprimento de um dever profissional ­militar.

Naquelas horas de pilhagem dos nossos valores morais, o quartel que eles defendiam simbolizava algo mais que o exército e o governo: simbolizava o templo, onde nossas almas se nutrem de verdade, de bem e de beleza; simbolizava o Iar onde se vive o poema familiar e se ouvem os madrigais do amor puro, fecundo e criador; simbolizava, enfim, o reduto onde se abrigavam os valores que fazem a vida digna de ser vivida, e que o comunismo tenta em vão varrer da face da terra.

Os heróis que se imolaram nessa luta não se sacrificaram apenas na defesa de uma pátria, de uma ordem social constituída; com seu sacrifício defenderam, dentro do Brasil, a humanidade ameaçada, a ordem moral agredida pelo homem-massa, pelo primarismo nostálgico da caverna.

Eles salvaram, enfim, aquelas forças espirituais que, únicas, poderão dar ao problema social uma solução autêntica e humana.

 

 



1 Conferência pronunciada em 29.11.1944.