Temas políticos


A RENÚNCIA AO MANDATO DE SENADOR

 

1 - Manifestação inicial em 21.11. 55

Sr. Presidente, senhores senadores, considerei grave a situação nacional, desde 11 de novembro deste ano. Meu pensamento expressou-se no telegrama que dirigi a V. Excia dizendo que, segundo meu modo de pensar, o Sr. General Teixeira Lott lesara gravemente a ordem constitucional e o regime democrático do país, ao depor o Presidente da República, Dr. Carlos Luz. Disse mais: que, em meu humilde entender, o Governo que, no momento, ocupa o Catete tinha tido uma investidura inconstitucional.

Considero no pressuposto de corresponder à realidade a de­núncia do meu eminente colega e amigo, Senador Alencastro Guimarães, considero, repito, gravíssima a situação nacional, em face das atitudes de impugnação do gesto do Sr. Café Filho de reintegrar-se no Governo da República.

Sr. Presidente, senhores senadores, considero, porém não grave, não gravíssima, mas uma agressão mortal à realidade nacional a todo nosso ser histórico, o fato de, no Governo atual, estar presente uma força revolucionária, que é a maior técnica de desagregação das nações soberanas, o comunismo ateu, materialista, oposto a todas as liberdades humanas.

Sobre o caráter dessa agressão, desejaria repetir, nesta hora, algo que disse há meses, quando, nos horizontes da vida política, já surgiam as nuvens que denunciavam o caos que se aproximava.

Peço a atenção, Sr. Presidente do Senado da República, para a gravidade do fato de nossa evolução social estar na iminência de as­sumir um ritmo revolucionário e catastrófico em virtude da presença, em seu processamento, de forças políticas hostis a essa energia reguladora do seu dinamismo, de sua direção e unidade, que é a tradição nacional.

Envolvemos sob a dramática tensão de duas polarizações distintas e opostas - a da civilização que gerou nossa realidade histórica e da barbárie marxista que agride.

Nação criada por transplantação de cultura, carecendo de forte espessura histórica e de denso espaço psicológico e humano, portadora de rarefeita tradição, esse estado social ameaça permanentemente a normal continuidade e o processamento orgânico de sua evolução. A essa ameaça acrescenta-se a da presença de uma força desagregadora de caráter internacional - o comunismo, que, agredindo as estruturas mais sólidas de estados do Velho Mundo, tentando sub­verter tradições milenárias, corrói, igualmente, os fundamentos de nosso processo histórico.

Herdamos, com a civilização que nos constituiu, suas grandezas e suas misérias. Essas grandezas integram tudo que de humano e fecundo existe na realidade nacional. Entre as misérias herdadas, a maior é a chaga do pauperismo. Sendo o drama da miséria econômica um fato universal, lá onde se manifestar a fome estará presente para lhe superar a realidade dolorosa, uma técnica de tratamento político­econômico de inspiração marxista. Essa ideologia é a negação frontal de uma civilização de dois milênios - a civilização ocidental e cristã. Enquanto gesto de piedade humana face à exploração do homem pelo homem, ela representa um valor positivo na história; enquanto interpretação e método de apuração do pauperismo, constitui um sinal negativo na crise do mundo moderno. Utilizado como instrumento de realização do paneslavismo, e encontrando na confusão moral, na crise espiritual de nossos dias, um saldo de cultura, o marxismo possui, entre nós, legiões de discípulos lançados na faina revolucionária e escravizante.

Sofremos, assim, a dilacerante pressão de duas forças perturbadoras do ritmo e da continuidade de nossa evolução social: uma interna - peculiar às características de nossa condição histórica; outra externa - derivada da situação internacional, do choque de dois mundos ideológicos. Sociologicamente considerada, a gravidade dessa situação exaspera-se e culmina pela ação de um movimento de opinião político nacional impugnador da harmonia natural existente entre a tradição e o progresso, que sugere a existência entre ambos de uma antinomia irredutível, responsabilizando o passado pela atual crise do país e pela injustiça social dominante. A civilização estaria para ser inventada, a justiça social acabaria de ser descoberta e o passado seria a cupidez capitalista e burguesa.

Distingamos em meio a essa confusão, propícia à ditadura ou à anarquia. - A tradição, o vocábulo o diz em sua etimologia, não é a imobilidade do ser social, a fidelidade a um passado morto. Ela ex­pressa, ao contrário, dinamismo, tendência para a frente, atitude transitiva, forte tensão vital; ela simboliza um gesto de doação e de oferenda.

No ser social, como no biológico, a lei da constância original dos seres é sempre a mesma: a fixidez é o princípio; a evolução é a conseqüência, o corolário. A natureza, como a sociedade, tem horror das variações; elas não realizam saltos. A evolução é um processo de fidelidade do ser a si mesmo, de resistência às forças que lhe ameaçam a vida: ele se adapta e evolui para perseverar na existência. Evolução, enfim, é autoproteção do ser.

Sem tradição, como já se observou, cada geração humana estaria no mesmo ponto inicial da primeira geração; não havendo progresso, estaríamos fixados na idade da pedra lascada.

"A tradição - como sugere recente e luminoso documento pontifício - é esse dinamismo pelo qual o homem eterno se inscreve no tempo, limitando-se a um certo contorno técnico-material e aceitando determinadas circunstâncias, sem renunciar à sua essência supratemporal. Através dela concilia-se o que há de fundamental; de inerente e de imutável no homem, as exigências constantes de uma natureza que é sempre a mesma, com o que lhe é acessório, exterior e variável, com novos ambientes e paisagens históricas, com formas novas de produção, de transporte, de processos técnicos descobertos ou inventados pelo homem".

As instituições tradicionais, disse De Bonald, não são válidas por serem antigas, são antigas por serem válidas.

Tradição não é, pois, um simples tema sentimental, arcaísmo estranho, saudade oposta à exigência de perfeição social, nostalgia dos cemitérios, amor a um mundo de fósseis ou mórbida necrofilia... Tradição não é paixão pelas ruínas, fidelidade aos desvalores é às taras de um passado que, dada a contingência humana, possuiu, como possui o presente e possuirá o futuro, males, erros, imperfeições e in­justiças sociais. O que se deve amar e servir na tradição é o seu conteúdo de valores positivos, comprovados por experiências históricas seculares.

É a esses valores que devemos fidelidade, não por serem passados, mas por serem eternos. O presente e o futuro valerão na medi­da em que os encarnarem, no interior de novas circunstâncias históricas, traduzindo-os em ordenamentos sociais mais justos e perfeitos.

Tradição é permanência na continuidade, é um feixe de tendências e de hábitos que "buscam manter a sociedade no equilíbrio das forças que a geraram, e a cuja fidelidade está condicionada a sua duração". Ela é, como observou Hipólito Taine a autêntica constituição de um povo. As constituições escritas, as cartas políticas são, apenas, traduções suas. Ela é a constituição ditada pelo passado, a segunda natureza da sociedade.

Este é o sentido político-social da tradição. A política nela tem ou deve ter a sua matéria, seu objeto próprio - deve traduzi-la, aperfeiçoá-la, colaborar com o seu dinamismo espontâneo, respeitando suas leis imanentes. Uma política autêntica é uma sabedoria e uma técnica de tratamento dessa realidade que constitui o próprio ser social e que se denomina tradição.

Uma política que lhe seja hostil é uma utopia anárquica, uma construção artificial e caduca, um desafio à realidade e à natureza.

A política dominante no país leva-nos a um salto no escuro, a uma aventura louca e suicida quando tolera a presença do marxismo, como força de colaboração no que se convencionou denominar ironicamente defesa da legalidade.

A índole revolucionária da política dominante, ainda, se deixa surpreender em sua agressão à força reguladora de nossa evolução social quando ensaia, praticamente, a impossível utilização da força política trituradora de toda a tradição humana que é o comunismo, com o mais orgânico esforço de sua utilização, para o bem comum da espécie humana que é o realizado pela Igreja. Para a teologia católica, a tradição assume até o valor de uma fonte de verdades informuladas e de riquezas dogmáticas potenciais, enquanto para o marxismo a tradição é literalmente o erro, o mal, o capitalismo e a putrefação burguesa. Em suma, busca-se utilizar politicamente, conferindo-lhes igual valor instrumental, as duas irredutíveis concepções do mundo, associando-se dentro de uma dialética perturbadora, Marx com Pio XII, os Evangelhos com o materialismo dialético, a verdade que liberta com o erro que escraviza, a tradição que conserva e aperfeiçoa o ser social, com a utopia revolucionária que lhe ameaça as estruturas e a existência.

Esta é a paisagem de desastre que se desenha no âmbito de nossa realidade social - ela revela a ameaça que pesa sobre a continuidade e o processamento orgânico de nossa evolução - pela hostilidade à força que lhe regula direção e o dinamismo. Essa força, embora rarefeita e de mínima espessura histórica, é a tradição nacional. Destruí-la seria guardar de um processo civilizador de três ou quatro séculos, como é o nosso, apenas sua forma cadavérica... E retornaríamos à fase colonial de nossa história. E, após essa regressão, o Brasil do futuro não seria aquele "que o português criou", na expressão de Gilberto Freire, mas tão só um feudo marxista modelado pelo chicote de um comissário político.

Sepultemos do passado tudo que é morto, libertemo-nos de suas taras, de suas injustiças e experiências fracassadas, mas, para que nossa evolução social não se torne uma catástrofe histórica, guarde­mos com lucidez e energia seus valores eternos - únicas fontes das normas e impulsos criadores de uma forma de convívio mais justa e humana, porque mais fiel à nossa tradição católica e latina.

 

                            2 - Manifestação a respeito do Projeto de Resolução sobre o impedimento do Presidente Café Filho, em 21/11/55.

Sr. Presidente, Srs. Senadores, não devo prolongar esta vigília cívica que, embora não sendo Cassandra, temo ser o velório da Democracia Nacional.

Abstenho-me, pois, neste instante de quaisquer análises, eruditas ou sutis, do Projeto de Resolução que enviou à apreciação desta Casa a Câmara dos Deputados.

O momento não é de ciência, mas de consciência, e julgo mais do primado dos valores éticos do que esses esfarrapados valores jurídicos que aí estão.

Sr. Presidente, limito-me a focalizar este Projeto de Resolução singelamente, dentro de posições de senso comum, de elementar bom-senso, sob o aspecto constitucional, e não como professor de direito. O impedimento em que, neste Projeto de Resolução, se colocou o Sr. Presidente da República, Sr. Café Filho, certamente não é um impedimento físico, a não ser que queiramos aceitar essa farsa que, na frase vigorosa do meu amigo e conterrâneo, Senador Alencastro Guimarães, é uma covardia, um crime.

O impedimento pode ser tão só moral: e, se moral, pressupõe, no pensamento da Câmara, incriminações ao Presidente da República Café Filho. Faz-se o Sr. Café Filho réu de crimes de responsabilidade, como Presidente da República. E o processo para declaração desses crimes e sua apuração - está expresso na Constituição Federal - é o impeachment, é algo bem diverso do projeto de resolução em que se cassa o mandato de Presidente da República.

Do ponto de vista político, Sr. Presidente, impugno, protesto contra esse Projeto de Resolução. Acho incoerente que se venha apelar ao Senado da República com argumentos derivados da necessidade da conservação da paz e da ordem social, paz e ordem sociais que acabam de ser perturbadas por um golpe militar.

Sr. Presidente, sinceramente prefiro ver instalada uma ditadura no país a assistir, a ter sob os meus olhos, essa forma cadavérica de um Parlamento, essa ficção de uma democracia.

Meu protesto é inspirado ainda em minha condição de gaúcho e rio-grandense. No Rio Grande e no Partido Libertador, senti que a liberdade se conquista a sangue. Habituei-me a orientar minhas ações por uma realidade legal e não por uma hipocrisia legal.

Sr. Presidente, termino dizendo que sentiria vergonha, em face dos meus alunos da Universidade de Porto Alegre, em voltar para lá sem ter tomado esse gesto de protesto contra essa doutrina que aqui se instala, de que a fonte do Direito é a força.

Tenho dito.

 

3 - Declaração de voto na madrugada de 25/11/55

Senhor Presidente, na madrugada de hoje, como membro da Comissão de Constituição e Justiça, formulei voto contrário ao Projeto de Lei que estabelece o estado de sítio em todo o território nacional.

Contra esse atentado alarmante de paralisação das garantias constitucionais, das liberdades democráticas, protestam, com veemência, minha sensibilidade política, minha consciência moral e meu senso jurídico. Julgo-o inconstitucional, improcedente e funesto, em suas decorrências.

Senhor Presidente, não vejo mais como salvar a Constituição e a Democracia, moralmente feridas pela espada dos generais sublevados e pela atitude suicida da maioria do Congresso Nacional.

Destruíram a base moral e jurídica do princípio da autoridade. E as conseqüências aí estão sob os nossos olhos. Após a violenta cassação dos mandatos de dois Presidentes da República, com lógica implacável, busca-se paralisar as garantias constitucionais: Após o garroteamento brutal dos direitos subjetivos de dois Chefes de Estado, os ditadores e seus cúmplices na Câmara e no Senado vão imobilizar os direitos políticos, e até civis, dos cidadãos, as liberdades fundamentais do povo.

Mas, Senhor Presidente, algo ainda subsiste nesse desmoronamento fatal das instituições: é o Brasil!

Feriram de morte sua existência constitucional, seu estilo democrático de vida, mas restam, como força incoercível face à pressão de ditadura, suas estruturas morais, os valores que lhe integram o ser histórico e social, os ideais e os fins cristãos que dinamizam e vivificam sua civilização secular, os valores que nortearam a constituição de sua psicologia social, do seu comportamento como grupo humano, como nação católica e latina.

E essas realidades essenciais, que integram o que tem de singular e específico o Brasil, estão ameaçadas.

O marxismo, com sua técnica desagregadora e com sua capa­cidade infernal de esmagamento de nações soberanas, espreita a oportunidade do golpe fatal. E nunca como hoje, em toda a extensão de nossa História, constituíram-se condições mais favoráveis à irrupção do seu elã revolucionário, nos quadros de nossa vida social e política.

As normas e os princípios morais e jurídicos que constituí­ram, até há pouco, barreiras sólidas contra a barbárie marxista, foram destruídas, no momento em que foram violados o princípio da autoridade e a intangibilidade da Constituição.

Estamos sob um regime de força. A autoridade, no momento, funda-se na violência, e não no espírito e na lei. Baseia-se na força dos tanques ou na dos números, que traduzem a maioria impassível do Congresso.

Mas a coesão das forças armadas, que seria o insubjugável obstáculo à revolução comunista, é, tão só, aparente. E, no momento em que essas forças se chocarem em luta fratricida, irromperá a força revolucionária do comunismo, para destruir, não apenas, a forma constitucional e o estilo democrático da vida nacional, mas para go­pear o coração da Pátria, na civilização cristã multissecular.

Senhor Presidente, não creio mais na eficácia da luta que travamos contra o rolo compressor da ditadura. Mas, para resguardo da minha consciência cristã e cívica, envolvida nesse crepúsculo do Brasil autêntico, quero, desta tribuna, perante a Nação, formular este último apelo: salvem os responsáveis pela crise política militar que vi­vemos, a civilização cristã do país, já que não quiseram resguardar sua intangibilidade constitucional e seu ideal democrático.

 

4 - Manifestação de 9.1.56, contrária à prorrogação do Estado de Sítio.

Sr. Presidente, Srs. Senadores, quando nesta Casa se discutiu o estado de sítio, em novembro do ano 1955, pronunciei-me em forma contrária por considerar o projeto de lei improcedente; face aos fatos apontados como justificadores de sua existência, inconstitucional e, ainda mais, funesto.

Hoje, Sr: Presidente, eu desejaria protestar contra o projeto de lei que prorroga o estado de sítio, atendendo à exigência de minha própria formação científica, de minha situação de professor universitário.

A verdade é o bem da inteligência. Sua busca é a finalidade última de todas as investigações que se processam em laboratórios, de todas as meditações que se realizam em gabinetes, de todos os trata­dos que saem da pena de especialistas é de pensadores.

Sr. Presidente, o pensamento, no entanto, paralisa-se no momento em que desatende às leis que lhe condicionam o dinamismo e a fecundidade. Entre essas leis está, na classificação dos lógicos, a lei da identidade, cuja fórmula se pode apresentar dentro de uma equação: a = a; um ser é igual a si mesmo.

Este princípio fundamental do pensamento humano não tem importância tão só para os lógicos que buscam comandar a ordem no plano das idéias. Ele interessa vitalmente às autoridades, aos poderes constituídos, aos políticos, conseqüentemente Se "a" não é igual a "a", se um ser não é igual a si mesmo, se o bem pode ser o mal, se a verdade pode ser erro, se a revolução não é revolução e pode ser a ordem, então, Sr. Presidente, estamos ingressando num plano só interpretável psiquiatricamente. Então este princípio lógico terá, no plano social, o efeito de uma catástrofe política e de um suicídio coletivo.

Sr. Presidente, é por esta razão, é por atender a esta polarização de meu pensamento e de minha formação científica que ainda protestaria contra a prorrogação do estado de sítio. Porque, em verdade, apela-se para que o Governo use poderes extraordinários que lhe confere o estado de sítio, em nome de fatos cuja existência, evidente­mente, está negada pelas próprias autoridades que se dirigem ao Congresso pedindo seja ele instituído.

Tive oportunidade de ler dois documentos que me escandalizaram o espírito. O Sr. Ministro da Justiça declarava a existência de uma ordem exemplar, paradigmática e total na vasta extensão do território nacional; e, simultaneamente o Sr. General Lima Câmara, com toda a responsabilidade de sua função de executor do estado de sítio, declarava a existência de focos subversivos, embora silenciosos. Dizia mais: que ainda não tinha sido atingida a pacificação do País, conforme seu desejo - determinada forma de pacificação.

Não quero pensar sobre o que seja essa paz desejada. Temo não seja uma paz que se associe à liberdade e à justiça e conciliável com os imperativos de uma ordem constitucional.

O Sr. Apolônio Sales - Permite V. Excia. um aparte?

O Sr. Armando Câmara - Com todo o prazer.

O Sr. Apolônio Sales - Meu nobre colega, é muito prazer e honra aventurar-me a apartear V. Excia.

O Sr. Armando Câmara - Tenho sempre grande honra em ouvi-lo.

O Sr. Apolônio Sales - A razão é simples. Tenho V. Excia. como um dos expoentes do pensamento brasileiro, e nós, Senadores, nos sentimos honrados em ouvir uma explanação por parte de V. Ex­cia. Gostamos de ouvi-lo e não queríamos nem interrompê-lo, mas estou no dever de o fazer, para dizer a V. Excia. que, na verdade, não há contradição no que expõe o Sr. Ministro da Justiça e no que aduz o Sr. Executor do estado de sítio. E não há simplesmente pelo seguinte: De uma parte, é missão do Sr. Ministro da Justiça tranqüilizar o País no que tem necessidade de saber, nesta fase difícil que atravessamos; de outro lado, o Executor do estado de sítio tem o dever de alertar a opinião pública, naquilo que somente ele tem conhecimento, do métier do estado de sítio. V. Excia. há de convir em que o Executor do estado de sítio julga conveniente se prorrogue o prazo dessa medida de exceção, e o faz diante de perquirições, de investigações, de fatos que conhece e dos quais deu ciência ao Sr. Presidente da República. O Sr. Nereu Ramos, em consonância com essas informações, no discurso memorável pronunciado no dia de Natal, advertiu a Nação dos perigos que ainda está correndo. Desejo repetir que não há contradição, mas precaução para que não haja alarme. Na verdade, o Sr. Presidente da República alertou o País, para que não se deixe envolver em uma convulsão que S. Excia. sabe como evitar.

O Sr. Armando Câmara - Senador Apolônio Sales, agradeço a generosidade de suas palavras, no aparte que acaba de formular. Devo declarar, no entanto, que V. Excia. deixa meu espírito na mesma perplexidade.

Apelo para que o nobre colega me diga se há ou não uma contradição entre duas afirmações relativas ao mesmo fato, à mesma realidade. O Sr. Ministro da Justiça declara que há ordem perfeita em toda a extensão do País, enquanto o Executor do estado de sítio denúncia a existência de focos subversivos, embora silenciosos.

Há de convir o Senador Apolônio Sales que uma das duas afirmações não é exata. S. Excia. dá-me sugestão para que eu supere essa contradição: diz-me que o Sr. Ministro da Justiça busca tranqüilizar a Nação. Há de concordar, entretanto, o nobre representante de Pernambuco que não se tranqüiliza mentindo ou realizando burlas. Se, em realidade, tem razão o Sr. Executor do estado de sítio, então não a terá o Sr. Ministro de Justiça. Eu não assumiria, eminente colega, a responsabilidade de tranqüilizar a Nação com ficções.

O Sr. Apolônio Sales - Responderei, prezado colega. Primei­ro, reafirmo que não há contradição, porque, quando o Sr. Ministro da Justiça diz que há perfeita ordem no país, vige, sim, a ordem, porque contida dentro do regime do estado de sítio. Na obra em que esta lei não tivesse mais eficiência na sua execução, pode ficar certo, V. Ex­cia., de que esses focos denunciados pelo Executor do estado de sítio e que estão contidos, deixariam de ser contidos, explodiriam. É a minúcia, a filigrana que V. Excia., evidentemente, com sua grande inteligência, perceberá. O Sr. Ministro da Justiça afirma a verdade, assim como verdade afirmou o Executor do estado de sítio.

O Sr. Armando Câmara - Trabalha o espírito de V. Excia., pelo que vejo, para que seja superada a contradição, a polivalência significativa da palavra "ordem". O Sr. Ministro da Justiça fala na existência da ordem. É ordem para o leiteiro entregar o leite, os padeiros entregarem o pão. Supõe a ordem das ruas. Parece-me, porém, há outro plano de vida - a vida social, aquela vida em que estão atuando as forças políticas que têm a responsabilidade de salvar esta Nação e conduzi-la ao progresso. O Senador Apolônio Sales sugere que, nesse plano, onde há responsabilidade, se processa a subversão e se prepara a revolta.

O Sr. Apolônio Sales - Bastava que se preparasse a revolução para se justificar a prorrogação do estado de sítio.

O Sr. Armando Câmara - Permita o nobre colega que, nessa minúcia, discorde de V. Excia. O nobre Senador Apolônio Sales, cuja dignidade eu afirmo e cuja boa-fé na defesa desta causa eu reconheço - e seus nobres colegas laboram em equívoco quando falam nesse conceito de revolução potencial para explicar o estado de sítio. Permita-me S. Excia. que o diga: se, na verdade, trabalharmos coerente­mente com esse conceito, prorrogaremos o estado de sítio até o fim do Governo do Doutor Juscelino Kubitschek.

Em realidade, uma revolução potencial processa-se em todo grupo social que está em estado de evolução, que tem suas forças vivas e sua energia transformante, no terreno social; em ação. Sem isso, nunca se sairá de uma existência de imperfeição do estado social, da miséria da ordem jurídica, das imperfeições de seus políticos. E basta a existência dessas forças para que o Senador Apolônio Sales e seus colegas de Maioria decretassem o estado de sítio.

O Sr. Apolônio Sales - Na verdade, V. Excia. há de convir que uma nação que não pudesse prever os focos de subversão a serem contidos...

O Sr. Armando Câmara - Quais focos?

O Sr. Apolônio Sales - Seria muito mais infeliz se não acre­ditasse no Executor de medidas de exceção, como a presente.

Ocorre, sem dúvida, no Brasil, um processo em que é necessário a existência de poderes de exceção para o Executor, a fim de evitar, enquanto humanamente possível, a virulência desses focos. E é justamente neste sentido que o Executor do estado de sítio diz haver focos, embora latentes. Quando o Ministro da Justiça, porém, se ex­pressa, não se refere somente à ordem pública do leiteiro que entrega leite, mas àquela que, mercê de Deus e da vigilância do Executor, ainda fruímos nesta hora difícil que o país atravessa.

O Sr. Armando Câmara - Dando este aparte a Vossa Excelência, não posso deixar de elogiar a agilidade mental do nobre colega. Entrego à aguda inteligência do nobre Senador Apolônio Sales a interpretação harmônica dessas duas formas de depoimento sobre uma mesma realidade que, em meu espírito, são e serão sempre contraditórias.

Por esta razão, Sr: Presidente, formulo meu voto, como disse, não apenas por motivos de ordem política, mas por atendimento humano, que é a identidade que afirma que um ser não pode ser e não ser ao mesmo tempo e sob a mesma relação; em atendimento a essa exigência, sem a qual se paralisa o pensamento, voto contra o estado de sítio, solicitado em nome de fatos que uma autoridade responsável, como Ministro de Estado, diz inexistir e outra autoridade também responsável, como o Executor do estado de sítio, declara existir, e de forma perigosa.

Sr. Presidente, formulo meu voto contrariamente à prorrogação do estado de sítio ainda por mais uma razão: não compreendo que se esteja corrompendo assim a imalidade de uma categoria, de um instituto constitucional, como o estado de sítio, finalidade que, precipuamente, é a do resguardo da integridade de uma normatividade constitutiva de toda a ordem jurídica do país.

O estado de sítio é solicitado por um governo que se constituiu, inicialmente, pelo desconhecimento, por uma deposição do Chefe supremo do Estado - O Sr. Presidente Carlos Luz. Só após apelou-­se ao Congresso para legitimar um estado de força, um estado de fato.

O processamento constitucional, da constituição dos poderes, foi interrompido. Em verdade, constituiu-se um governo inconstitucional.

Como expressei, com profunda melancolia por apreciar as qualidades morais e intelectuais do Vice-Presidente do Senado, considero o Sr. Nereu Ramos inconstitucionalmente investido no cargo.

Pois bem: agora este Governo, que surgiu de uma fratura da ordem constitucional, que surgiu pela força, apela para poderes extra­ordinários a fim de manter-se pela força.

O estado de sítio não foi instituído se não para resguardo de uma Constituição e, agora, com ele, quer-se assegurar uma violação permanente.

O Sr. Alencastro Guimarães - Muito bem!

O Sr. Armando Câmara - Além disso, Sr. Presidente, protesto contra a lei que prorroga o estado de sítio pelas razões que, há pouco, brevemente, acenei, no diálogo - aliás, para mim, muito cordial e grato - que mantive com o nobre colega, Senador Apolônio Sales.

Sr. Presidente, não se processa a história humana, não se realizam os anseios de perfeição humana na história sem a presença, nos grupos sociais, de uma fermentação, de uma inquietação, de um desejo de perfeição a atingir e que não foi ainda conquistada. Em uma palavra, Senhor Presidente, a história marcha, a evolução se realiza ao preço dessas conquistas dolorosas e, muitas vezes, tensas, revolucionárias que buscam formas sociais mais perfeitas.

Sr. Presidente, instala-se aqui um concerto brutal e totalitário, não só profundamente antipolítico e contrário às liberdades humanas, mas ainda rigorosamente anticientífico, segando o qual lá onde houver um foco subversivo, como se diz numa expressão equívoca e lata, existe o fato que logicamente justificará a aplicação do estado de sítio.

Contra essa forma de tratar a realidade política nacional presente, é que protesto, votando contra a prorrogação pretendida.

 

5 - Renúncia ao mandato, em 27/04/56

Senhor Presidente, Meus Nobres Colegas. Esbocei, em documento dirigido à Mesa Diretora desta Casa, a estrutura lógica e o embasamento étìco-político da renúncia que, nesta hora, apresento ao Senado da República.

Não lerei, desta tribuna, essa motivação. São óbvias as razões desta omissão; inspiram-se em motivos de alto sentido humano e de austera devoção patriótica.

                            Não estou aqui para reabrir qualquer debate sobre a problemática política nacional, tão complexa e tão dramática. Busco, ao contrário; encerrar com um gesto os diálogos que, em vários discursos, tive a honra de realizar neste plenário.

Na motivação de minha renúncia, não elaborei novos juízos de valor sobre a tensa situação histórica e social que aqui tínhamos analisado - recordei, tão só, os que já havia formulado evidenciando que deles fluía, como decorrência inexorável, o dever do gesto que, agora, realizo.

Meus Nobres Colegas, se aqui não estou para fundamentar este gesto, porque então, minha presença, nesta tribuna?

Considerei indeclinável imperativo, malgrado meu estado de saúde, vir à presença de meus pares, para dizer-lhes de minha enternecida gratidão pelo puro teor cavalheiresco do apelo que fizeram, através dos seus eminentes líderes, para que eu reconsiderasse a decisão de devolver ao Rio Grande o mandato que me outorgara nesta Casa.

Esse cordial chamamento dos meus prezados amigos é uma esplêndida revelação do alto estilo parlamentar e da exemplar educação política que dominam o Senado da República. Agradeço à Providência a inestimável dádiva dessas amizades nascentes, cuja revelação tanto emociona minha sensibilidade de gaúcho e de cristão.

Nobres Senadores, é por sentir-me assim, amigo dos meus ilustres colegas, que lhes devo, não só palavras de afeição, mas, igualmente, palavras de verdade. Atendo a um dever, revelando-lhes, com respeito e compreensão, o sentido último, a significação essencial de minha renúncia, que me é, sobremodo, dolorosa por privar-me do tesouro espiritual do seu convívio.                            Senhores Senadores, meu gesto de abdicação ao mandato que exerço nesta Casa é o corolário de um teorema político e moral; decorrência lógica de juízos que aqui formulei, de atitudes que aqui assumi, face à crise quase mortal do regime, deflagrada em 11 de novembro. Esses juízos, que não tenho por que retificá-los, essas atitudes, cuja justeza à realidade nacional, episódios posteriores de nossa tumultuada vida política, sobejamente, confirmaram, exigiam de mim algo mais que uma conclusão teórica: apontavam para a necessidade moral de um gesto prático, de uma ação positiva e concreta, em que eu simbolizasse, com sinceridade plena e plena responsabilidade, minha atitude face ao drama que empolga minha pátria.

Minha renúncia é, assim, a sedimentação, o precipitado moral desse processo psicológico, dessa exigência interior de coerência, dessa necessidade de agirmos como pensamos, para que não acabemos pensando como agimos.

Ela é o desfecho de um drama de consciência, em cuja superação intervieram apelos e ordens dos supremos valores da vida. Renunciando, escuto vozes ancestrais; sou fiel, também, ao clamor daqueles homens que, em quatro séculos de história, plasmaram, com sua mensagem de fé, os fundamentos da civilização cristã de minha pátria; e busco; enfim, ser digno dos ensinamentos dos mestres de minha formação jurídica, que me evidenciaram não serem os fatos, não ser a força, a.base do direito e o fundamento das leis.

O Sr. Filinto Müller - Permite V. Excia um aparte?

O Sr. Armando Câmara - Com todo o prazer.

O Sr. Filinto Müller - Estou ouvindo, como todo o Senado, com imenso respeito e acatamento o discurso de V. Excia.

O Sr. Armando Câmara - Na mesma atitude ouvirei o aparte de V. Excia.

                            O Sr..Filinto Müller - Neste passo, entretanto, quero deixar inscrito nos Anais da Casa minha divergência. O Governo que aí está, eminente Senador; é oriundo da vontade popular; não teve a alicerçá-­lo as armas. Foram elas apenas empregadas em determinado mo­mento da vida pública brasileira, para assegurar o respeito à vontade do povo. Este o ponto de vista em que me coloco, lamentando divergir do de V. Excia. Desejo, ainda, acentuar que o atual Governo, escolhido pelo povo brasileiro, não tem complacência para com o imperialismo comunista a que V. Excia alude. Constitui este, sem dúvida, perigo para todas as nações. Assim como V. Excia, de formação cristã, nutre o maior respeito pela religião que nos embalou a todos no berço, e que respeitamos e queremos respeitada. Tranqüilize-se V. Excia, nobre Senador Armando Câmara. O governo não tem complacência com aqueles que querem destruir nosso patrimônio de civilização cristã.

O Sr. Armando Câmara - Ilustre colega, o relato de V. Excia é plenamente coerente. Está em perfeita harmonia, certamente, com o conceito que o nobre colega formula sobre o caráter da atual situação política dominante no país.

O Sr: Filinto Müller - Exatamente.

O Sr. Armando Câmara - V. Excia há de convir, no entanto - e preliminarmente o anunciei -, que não vim à tribuna reabrir debates, ao despedir-me do Senado e ao dizer à Nação dos motivos de minha resolução, certamente não derivados de personalismo patológico, de alergias ou antipatias histéricas.

O Sr. Filinto Müller - Não estariam, aliás, de acordo com a atitude de V. Excia.

O Sr. Armando Câmara - Há de permitir V. Excia que eu diga que era dever meu traduzir brandamente, eminente colega, conceito que desenvolvi em análise anterior, neste Plenário.

Aproveito a oportunidade para declarar que não desejaria expressar, por consideração à amizade a V. Excias o que há pouco, com a sinceridade do homem do Rio Grande registro.

O Sr. Filinto Müller - Muito obrigado a V. Excia.

O Sr. Armando Câmara - ... por apreço à nobreza - porque suponho ser esta uma atitude nobre - do gesto da Maioria, quando apóia esse Governo que critico, V. Excias. hão de ter no interior das próprias consciências uma fórmula que harmonize a devoção à pátria com os imperativos pragmáticos e partidários. Não nego haja no reparo do Senador Filinto Müller plena coerência. V. Excia entretanto, há de convir que a minha afirmação é o resultado de uma concepção sobre o atual Governo, que não desejaria expor, neste momento.

O Sr. Filinto Müller - Respeito a opinião de V. Excia.

O Sr. Armando Câmara - É uma convicção que, creio, V. Excia. respeitará. Deriva não apenas de minha consciência moral, do testemunho do drama nacional, mas resulta de minha formação jurídica e das responsabilidades de professor de Direito.

O Sr. Filinto Müller - Agradeço o esclarecimento prestado por V. Excia. e quero acentuar que também não desejo abrir debate no momento, em que V. Excia. se afasta desta Casa, deixando em todos nós uma grande tristeza. Ressalto, entretanto, respeitando embora o ponto de vista de V. Excia. o pensamento da maioria, quando divergência profunda nos separa. Fique certo, o nobre colega, de que se desejo deixar nos Anais de nossos trabalhos a opinião da maioria, faço-o com o máximo respeito à de V. Excia., embora discordando do ilustre colega. Desejaríamos, entretanto, Senador Armando Câmara, que continuasse V. Excia. no Senado, sofrendo todos aqueles problemas cruciais que o Brasil terá de enfrentar, e contribuindo com sua inteligência, com seu patriotismo e sua dignidade moral para sua melhor solução.

Desejaríamos, outrossim, estivesse V. Excia. aqui para combatê-lo nos pontos em que divergíssemos; e não longe, lutando em outras trincheiras. Respeito, porém - e em nome da Maioria o declaro - o gesto de V. Excia., que considera o certo. Nosso dever é respeitá-lo porque V. Excia. bem merece esse respeito da maioria do Senado e da Nação brasileira.

O Sr. Armando Câmara - Muito obrigado.

O Sr. Cunha Mello - Permite Vossa Excelência um aparte?

O Sr. Armando Câmara - Pois não, com prazer.

O Sr. Cunha Mello - Nas poucas vezes em que V. Excia. com­pareceu no Senado, em 1955, fui um dos Senadores que teve mais preocupação em se aproximar de V. Excia. enlevado pelo seu passado de professor e de homem público. Saiba V. Excia. que, ainda agora, quando seu pedido de renúncia chegou a esta Casa, sem as formalidades legais, fui signatário de um telegrama, solicitando que Vossa Excelência desistisse desse propósito. Assinei esse telegrama como então líder do Partido Trabalhista Brasileiro. Dada, portanto, a elegância dessa minha atitude, peço a V. Excia. aceite meu aparte, não como censura ao seu procedimento, mas como lástima. Sinto que, nesta hora, tão difícil para a democracia, dela seja V. Excia. um egresso, abandonando o Senado em cuja tribuna teria uma trincheira, para defender seus ideais, que, acredito são os do próprio Brasil. Meu aparte não importa em censura, repito, a V. Excia., longe de mim tal pensamento. Lamento, apenas, que V. Excia. tome essa atitude, afinal de contas pouco democrática e que importa, sobretudo, num gesto de descortesia para conosco, que tão bem tratamos V. Excia.

O Sr. Armando Câmara - Lamento dizer, mas V. Excia. não te­ria formulado o seu aparte tão amistoso e que, em determinada passagem, fala da minha situação de egresso da democracia - se tivesse esperado alguns minutos, para ouvir a leitura integral da minha mensagem. Com minha atitude, não condeno sequer um dos meus colegas do Senado, aqueles em oposição doutrinária aos processos de trata­mento da coisa pública, dos quais divirjo.

                            Devo dizer a V. Excia., com a amizade que já nascia de nossas relações no Senado, que não sou um egresso da democracia. O conceito de democracia, meu eminente colega, é algo que não desejaria, no momento, analisar. Poderia levar-nos a afirmações que não desejo sejam registradas, nesta hora de despedida cordial. Devo, no entanto, dizer que democracia não é só um regime em que funcionam, não sei com que realidade, com que sinceridade, determinados fatores em atividade nas duas Casas do Congresso. Democracia não é só o atendi­mento a uma lei sem conteúdo, sem vivência das liberdades profundas de seus pressupostos superiores metafísicos e morais. Democracia, em essência, pode-se realizar, pode-se ser fiel à mensagem democrática em outros setores, trabalhando pela restauração dos valores da Pátria, ameaçada por déspotas de agitação política e moral do país.

O Sr. Cunha Mello - Por isso, V. Excia: preferiu - e faz muito bem - continuar na sua cadeira de professor de Direito, na qual poderá prestar os maiores serviços ao Brasil.

O Sr. Armando Câmara - Registro com cordial O Sr. Cunha Mello - Só tem cordialidade.

O Sr. Armando Câmara - ... prazer e gratidão o aparte de Vossa Excelência, por considerar que não encerra ele ironia florentina.

O Sr. Cunha Mello - Não há ironia. O passado de V. Excia. desmentiria essa afirmação.

O Sr. Armando Câmara - Devo dizer ao eminente colega que jamais renunciaria ao Senado, se fatos ulteriores à minha eleição - em 1954 não podia prever a evolução política do país, que só se realizaria em 1955 - não me levassem a este drama de consciência, do qual saio pela renúncia, que não é de fuga nem de fraqueza, mas de protesto, de advertência.

O Sr. Cunha Mello - Permite V. Excia. que conclua meu aparte. (Assentimento do orador.) - Esses fatos posteriores se processaram em virtude da vontade do próprio povo, do eleitorado que o elegeu.

O Sr. Armando Câmara - V. Excia. talvez tenha dado às palavras "fatos ulteriores" significação diferente da minha. Sabe o nobre colega que o mês de novembro de 1955 vem depois do de outubro de 1954. É apenas questão de sucessão cronológica.

O Sr. Cunha Mello - É fácil saber. Eu só viria para o Senado ciente disso.

O Sr. Armando Câmara (lendo) - Renunciando, meus nobres colegas, não atendo, pois, a um toque de retirada, dentro de uma ba­talha; obedeço antes, a uma clarinada que me convoca para outras formas de luta pela restauração do regime democrático, pela intangibilidade da ordem constitucional, e, sobretudo, pelo resguardo das estruturas seculares da civilização católica do país, ameaçadas pela suprema ameaça que pode pesar sobre um povo livre e evangelizado ­pela técnica insidiosa e escravizante do imperialismo comunista. - É esta ameaça, meus colegas, que confere em minha opinião, ao drama político-militar que sofremos desde 11 de novembro, toda sua tensão desesperante e dantesca. Um governo, definido como oriundo da de­cisão das urnas, e que foi, amplamente, constituído pela força das ar­mas, assiste, entre complacente e cúmplice, à livre expansão, em nos­sa vida pública, das forças da revolução mundial, que são as maiores forças que a história já registra de esmagamento das liberdades democráticas e de corrupção da dignidade da pessoa humana. Em verdade dinamita-se, subrepticiamente, os fundamentos do Corcovado: está inclinada, pendente, a cruz da nacionalidade, essa Cruz criadora das energias redentoras do homem e das nações, e que, na frase de Joaquim Nabuco, "deu ao Brasil o seu traço eterno". Renunciando, nobres senadores, recuso-me a aceitar a responsabilidade, mesmo indireta, de colaborar de qualquer forma, nesse transviamento dos destinos cristãos de minha pátria; reajo contra os rumos dessa política que lança o Estado na confusão, na indisciplina e, talvez, no limiar de uma guerra civil e responsabilizo seus líderes pelas trágicas decorrências históricas dessa sua infidelidade aos princípios da civilização cristã, de democracia e da constituição do país.

Meus nobres colegas, concluo o depoimento sobre as razões de minha renúncia: ele é mais uma dolorosa confissão que um apaixonado libelo.

Falei, neste plenário, para dizer por que desde agora, silenciará minha voz nesta Câmara Alta da República. Estou presente nesta tribuna para conferir significação a minha iminente ausência desta Casa.

Mas esse silêncio e essa ausência não significam o meu desconhecimento ou desapreço do valor cívico e moral das lutas, das providências patrióticas e sábias que meus nobres colegas aqui realizam com o idealismo exemplar pelo bem da pátria.

O Sr. Lima Teixeira - Permite V. Excia. um aparte?

O Sr. Armando Câmara - Com muito prazer.

O Sr. Lima Teixeira - Cheguei ao recinto na parte final do discurso de V. Excia. Lembro-me, no entanto, de que, durante a permanência do nobre colega nesta Casa, algumas vezes tivemos o ensejo de conversar. Numa dessas palestras o ilustre representante do Rio Grande do Sul declara-me ser um sacrifício o exercer o mandato, uma vez que, professor no seu Estado, inúmeras dificuldades o impediam de comparecer, assiduamente, às sessões.

O Sr. Armando Câmara - Embora não me recorde desse diálogo como de todos os que tracei com os prezados colegas e que me deviam ter sido muito caro - aceito a veracidade do depoimento com a confiança que tenho na memória de V. Excia.

O Sr. Lima Teixeira - Mantivemos a palestra a que aludo, na sala do café.

O Sr. Armando Câmara - Não tenho dúvida.

O Sr. Lima Teixeira - Não é, porém, a esse ponto que me desejo reportar. Se V. Excia., como bom democrata, encontra graves erros no regime atual, devia continuar, nesta tribuna, a sua trincheira, combatendo o bom combate. Aí sim, estaria representando o pensamento do povo do Rio Grande, que o mandou para esta Casa. Estou certo de que Vossa Excelência deve ter fortes razões para renunciar ao mandato. Mas, no seu caso, se ponderáveis razões eu tivesse, estaria nesta tribuna, no combate democrático.

O Sr. Armando Câmara - Nobre colega, agradeço, do seu aparte, a revelação de amizade e aceito, para atender a uma crítica, seu registro, relativamente ao que eu deveria realizar, segundo a opinião de V. Excia. Quero lembrar ao eminente par - que estava provavelmente ausente, quando li essa passagem - que, em certo trecho deste breve depoimento, dizia eu que minha renúncia era o desfecho de um drama de consciência. Espero respeite V. Excia. meu drama de consciência e compreenda que fatores múltiplos nele estiveram presentes, e que eu, com a     minha responsabilidade, incomunicável e intransferível, devo cumprir um dever sem estabelecer consulta, embora muito grato aos meus amigos e familiares. Uma atitude de consciência, eu suponho, que se toma com toda responsabilidade pessoal, portanto, intransferível e incomunicável.     Fiz a síntese necessária do que considerei oportuno e pedagógico, para anunciar e revelar aos meus colegas e amigos que eu sofria uma angústia interior da qual me libertava - desse drama de consciência política e moral - através de gesto que não considero de desprezo para com meus pares, conforme acabei de afirmar, com sinceridade integral. O nobre Senador Lima Teixeira conhece-me um pouco para saber que não estou fazendo madrigais insinceros, hipócritas!

O Sr. Lima Teixeira - Declarei a V. Excia. ter chegado ao recinto no final do seu discurso. Reportei-me ao trecho no qual V. Excia. alude aos motivos que o teriam levado a tomar essa decisão. V. Excia., ignorava tratar-se de um drama de consciência.

O Sr. Armando Câmara - Aceito a explicação do nobre representante da Bahia.

(Lendo)

A todos os meus colegas - aos que integram a bancada da maioria e da minoria parlamentar, quero prestar a homenagem de minha compreensão dos seus nobres propósitos de devotamento à Nação, ainda quando divirja de suas opiniões políticas, dos seus métodos de tratamento dos problemas nacionais, de sua visão do bem comum da pátria.

Concluo, expressando-lhes algo mais que a minha compreensão - confesso-lhes, com a sinceridade de homem do Rio Grande que assumi atitude superior à compreensão, atitude de amizade nascente, vigorosa e cheia de conteúdo patriótico e moral.

Mas, senhores senadores, não posso deixar esta tribuna, sem confessar à Nação que as macabras experiências que assistimos, de decomposição do regime presidencialista que, sob os nossos olhos, degenera em ministrismo, para descambar, inexoravelmente, na irresponsabilidade do sargentismo, converteram-me à doutrina parlamentarista.

Nesta hora em que esta aspiração da mais alta consciência política do país é, absurdamente, vetada pelas forças secretas da revolução de 11 de novembro, instaladas no Ministério que parece considerar o livre funcionamento do Congresso Nacional como um obséquio, um favor de sua magnanimidade, protesto contra essa estarrecedora denegação da autonomia do Parlamento, apresentando ao Partido Libertador e; de modo particular, ao apóstolo do parlamentarismo em terras do Brasil, que é Raul Pilla, minha adesão e o meu aplauso aos seus ideais de salvação do regime.