| Temas religiosos
COR DOMINI1 Esta alocução deve ser uma
prece, uma meditação orante. Diante de Deus, só se está, adequadamente,
adorando, confessando a própria miséria, cantando o cântico da gratidão. Em
face dele todo discurso é uma impropriedade, toda oratória é ridícula, toda
declamação é irreverência. Como estar diante do Legislador de todo o ser, do
Juiz de toda a consciência, do Médico de toda a miséria moral, senão de
joelhos? Quem, como nós, já
experimentou a fuga mortal em face dos apelos da misericórdia, quem já morreu,
ao menos uma vez, para a verdadeira Vida, pela infidelidade à graça e à lei,
quem já fechou os ouvidos à voz de seu Senhor e Deus, quem já cerrou as pálpebras
à luz da Verdade, quem já experimentou essa terrível noite de espírito, que
é o pecado, essa "morte segunda" a que aludia o seráfico trovador de
Assis, e conheceu, após, a aleluia radiosa do perdão, - que pode fazer em face
do Cristo, senão calar e, em silêncio, suplicar a cura de sua consciência, a
salvação de sua alma? Mas, se é certo que só o silêncio
é pleno de adoração e verdade, de virtualidades de recuperação espiritual,
de possibilidades morais transformantes, menos verdadeiro não é que o silêncio,
autêntico e fecundo, é um diálogo; nele há sempre ao menos duas palavras
interiores: a da criatura e a do Criador. E esse silêncio não se extingue,
prolonga-se apenas quando a alma fala, comunica às outras almas esse colóquio
interior. E essa linguagem silenciosa é a de todas as almas cansadas da
caducidade humana, das almas que já experimentaram que nada podem sem o
Cristo que as libertou de si mesmas, que as redimiu de muitos determinismos e
escravidões, e fê-las sentir a indizível consciência da própria liberdade,
a alegria da ressurreição moral. Esta, a linguagem que vos
falarei. Aqui estou para, em cordial colóquio, dizer da caridade do Salvador do
mundo. E cumpro um mandato, atendendo ao vosso apelo fraternal. Ao pecador de
Gerasa, liberto por Cristo, como os demais pecadores, dos mil demônios que o
acorrentavam, e que sonhou, no enternecimento de sua gratidão, seguir a divina
caravana que operava a redenção do mundo, o Senhor mandou que voltasse para os
seus, para a sua terra e para a sua gente, e lhes anunciasse as maravilhas de
caridade, que nele havia realizado o coração de Deus. Aqui estou, pois, não para
analisar, - seria ridículo - o Amor, esse Amor que, na expressão de Dante,
move o sol e as outras estrelas; não para comentar a palavra reveladora; não
para justificar a verdade desta divina mensagem que é a Igreja; não falo como
teólogo soletro apenas a ciência de Deus; não falo como pregador da palavra
divina - não sou digno dessa excelsa e redentora tarefa; falo, apenas, como
pecador grato, que fala ao seu Salvador, como convalescente moral que diz da
piedade de seu onisciente Médico. Sejam estas palavras um
confiteor, o gaguejar de uma gratidão que, jamais, se exprime adequadamente,
uma confissão da misericórdia do coração de Cristo e da miséria do coração
humano. O coração de Deus é a
suprema oferenda que nos proporciona a Vida. Ele é a divina resposta à humana
pergunta. Na verdade, todo 0 nosso ser é alguma coisa como uma grande pergunta.
Na psicologia da interrogação se exprime a nossa condição humana, o nosso
estado ontológico, a nossa situação de seres contingentes, de existências in
fieri, de seres itinerantes, que não possuem suas próprias raízes e
que marcham para um termo que lhes transcende as próprias forças. Toda nossa existência é uma
melancólica paisagem de indigências. Biológica e psiquicamente, somos seres
suplicantes. Suplicamos contínua, embora silenciosamente. Suplica a Economia, a Política,
o Direito. Suplica, consciência de insegurança, percepção de necessidade,
toda ação, todo pensamento do homem. E súplica suprema e flagrante,
universal no tempo e no espaço, é o fenômeno religioso, o fato da adoração.
O homem suplica a beleza na arte, suplica a verdade nas pesquisas da Ciência e
nas meditações da filosofia, suplica o bem nas escaladas da ascética e nos elãs
deificantes da mística, suplica segurança e Justiça nas criações do Direito
e da Política, suplica a conservação da vida nas pesquisas da medicina,
suplica o conforto nas construções da técnica, suplica eternidade, redenção,
paz, uma forma absoluta de vida, quando junta as mãos e cerra as pálpebras, na
atitude de abandono ao supremo mistério, ao Deus, cujo conhecimento perfeito
pelo homem consiste, na frase de Santo Tomás de Aquino, em conhecermos que não
o conhecemos. Fora dessa atitude orante, o
homem é um ser abortivo, no seio da natureza, um ser suicida, uma caricatura.
Contra essa atitude, ele se torna a encarnação tragicômica de uma blasfêmia.
Todo ser humano é um feixe de exigências, um aglomerado de necessidades, um
sistema complexo de apelos: exigência de eternização no ser, na existência
em perene fluir, em contínuo escoamento no tempo; exigência de estabilidade,
de equilíbrio psicológico, de recuperação moral, de redenção; exigência
de comunhão afetiva, de complemento espiritual, de compreensão e de ternura;
exigência de felicidade segura, não ameaçada pela ronda macabra da morte, do
pecado, da dor física e moral; exigência, enfim, de imortalidade, de absoluto,
exigência de Deus. Eterno faminto e eterno
sedento, o homem suplica a todo ser o pão substancial, a água misteriosa que
lhe sacie essa fome essencial, essa sede essencial. Seus ouvidos estão atentos
às palavras inauditas, seus olhos estão súplices de perspectivas repousantes,
buscam as radiosas visões da Luz do mundo, imprevistas e apenas pressentidas
revelações. Ele é um ser que busca: "Eu sou o que busca", disse
Goethe, definindo o homem pela boca de Fausto. Toda a História, sob esse realista
ângulo de visão, é a narrativa dos ensaios de resposta a essa complexa
pergunta: que é o homem. E ela é trágica quando coincide com a aceitação,
pelo homem, de falsas respostas; ela, porém, se torna um poema triunfal toda
vez que ele aceita e vive a divina resposta, e encontra a definição do seu próprio
mistério no mistério do Cristo. A experiência está feita.
Vinte séculos lhe confirmam o valor e a realidade. Não simulemos ignorá-la, não
a repudiemos. Cristo é a vital resposta à inquietante pergunta: que é o
homem. Sem a sua presença, diabolicamente, absolutizamos o relativo, e
confundimos o Bem com os bens. Sem a sua presença, transformamos, na retorta de
nossa malícia, o alimento em veneno, profanamos o real, caricaturamos a
beleza das coisas, desorganizamos a vida. Mas, se todo mistério do
homem se concentra e converge no mistério de Deus, todo o mistério de Deus
explica-se pelo mistério do Amor: "Deus é caridade", disse-o,
inspiradamente, o discípulo que repousou a fronte sobre o coração de Cristo.
A divina resposta cifrase assim na revelação da caridade e simboliza-se,
magnificamente, na oferenda do coração de Deus. No coração de Cristo, está,
pois, tudo o que lhe dá a própria definição, e que assim define o mistério
do homem e do mundo. O Coração de Jesus é o centro de gravidade moral da vida
humana. Nele está a explicação de todos os problemas, que são a vertigem da
inteligência. Nele, a fonte dessa felicidade que o homem busca, através de mil
ensaios frustrados e impotentes. Nele, as soluções tranqüilizadoras de todos
os problemas do pensamento e da ação, do indivíduo e da sociedade. Heráclito e outros filósofos
gregos pressentiram a verdade, quando indicaram o fogo como a origem e a causa
do cosmos. Esse fogo Margarida Maria de Alacoque o viu. Ele era a fornalha
ardente de caridade do coração de Deus, o fogo de onde emanou a criação
inteira, o Amor primeiro. Tudo é divinizado e transfigurado por esse Amor.
Quando ele domina o ser humano e o arranca do abismo do erro e do mal, o homem
ressuscita e vive, volta a experimentar a perdida alegria de viver, recobra a
consciência de sua destinação, da transcendência do seu posto no cosmos. Ele
cura o nosso ser enfermo e gemente. Dentro do coração de Deus tudo o que o
homem havia profanado recobra a sua pureza primitiva, readquire o seu sentido
original, reassume o seu próprio valor. A vida humana em todas as suas
expressões, purificada pelo fogo dessa piedade, redime-se, sacraliza-se,
diviniza-se. Sobrenaturalizando o homem, o Amor normaliza-o, possibilita à
nossa natureza a realização de suas mais nobres virtualidades, de suas mais
específicas exigências, e arranca-a do domínio do patológico e do mórbido,
libertando-a do pecado. O coração de Deus dá ao
homem a consciência luminosa de que o estado normal de sua vida é o estado
sobrenatural. Sobrenaturalizando-nos, Cristo humaniza-nos, possibilita em nós a
efetivação de nossa forma eterna de ser. A natureza se expande e floresce em
surpreendentes expressões de beleza, de vida e de graça na medida em que é dócil
e fiel a esse Amor sobrenatural. Dele emanou toda a criação, pois ele é o
coração do Verbo, "e no princípio era o Verbo". Nele e por ele se
processou a Redenção, a imprevisível esmola da caridade. Dele emergiu a
Igreja, com tudo o que ela representa para a vida humana, para a História e
para a cultura, para o tempo e para a eternidade. Todas as maravilhas deste
mundo e do mundo invisível foram criadas para os que aceitam e se abandonam ao
Amor desse coração. E, quando o homem o possui,
tudo o que existe é para si, pois tudo possui possuindo o coração do supremo
doador. Possuí-lo é dar às variadas expressões da súplica humana, a
resposta adequada e repousante. Se o homem suplica a Luz, como
Goethe ao morrer, ele é a Luz do mundo. Se o homem suplica, como Platão, um
mestre que com infalibilidade, lhe fale sobre a destinação humana, ele
responde: "Um só é o vosso mestre, o Cristo". Se o homem, cansado da
palavra confusa e pobre da ciência, sobrecarregado das mil futilidades da vida
e da civilização, implora a paz e a simplicidade, como Dante batendo às
portas de um convento franciscano, quando a tarde de sua vida já descia, o coração
de Cristo lhe responde - "Vinde a mim todos os que andais fatigados e
aflitos, e eu darei alívio às vossas almas". Se o homem sonha pelo espírito
de todos os Hipócrates, a superação da morte, o coração de Deus é a
Ressurreição e a Vida. Se toda a história da Filosofia é a narrativa das
aventuras da inteligência em busca da verdade, Cristo responde à inteligência:
"Eu sou a Verdade". A verdade não é uma abstração metafísica; ela
é uma pessoa, é um coração que palpita no fundo de todo o ser. Se o homem
suplica o pão substancial e a água misteriosa que alimente e sacie a sua sede
e fome essenciais, o coração de Cristo é o pão da vida eterna, pois ele é a
Eucaristia, e os que o encontram, acham a fonte das águas vivas que jorram para
a eternidade. Se o homem aspira a uma beleza que não pereça, ele é a fonte da
beleza imortal, da graça que transforma monótonas e feias vidas humanas em
empolgantes poemas de santidade e heroísmo. Para os corações angustiados pelo
pecado, para as consciências que sangram pelo remorso, ele é o perdão; ele
lhes repete a frase que dirigiu à adúltera que chorava a seus pés:
"Filha, vai em paz e não peques mais". Enfim, ele é a resposta ao
especifico, profundo e perene apetite da natureza humana, ao apetite da natureza
humana, ao apetite de imortalidade: "Eu sou a vida, e o que vive e crê em
mim não morrerá eternamente." Ele cura o homem total, a pessoa e a
sociedade, a História e a cultura. Ele redime o homem e todas as criações
humanas. Então, se pode tranqüilo e
feliz cantar, como disse o gênio de Claudel, o grande poema do homem liberto do
acaso. Não há mais determinismos onde impera o Amor Primeiro. Então, todo o
universo é a casa do pai que está nos céus. Todas as criaturas são irmãs
nossas, e podemos entoar, com o Poverello de Assis, o cântico do irmão sol, da
irmã água, do irmão lobo, da irmã morte, com a triunfal alegria dos filhos
de Deus. Tudo foi feito para os eleitos desse Amor. Toda vida humana superior e
autêntica, que não tenha traído suas leis essenciais, é um grande diálogo
entre Deus e o homem, entre os apelos de Deus na consciência e a liberdade da
pessoa humana. E essa vida será perfeita na medida em que, atendendo aos apelos
do coração de Cristo, transformar num idílio esse colóquio com o Ser
divino. Nesse idílio encontraremos a sabedoria que o mundo não nos dá, o Amor
que o homem não conhece, a felicidade que apenas poderíamos sonhar, aquilo que
os olhos jamais viram, que nunca ouviram ouvidos humanos, e que o coração do
Senhor preparou para os que o amam. 1
Proferido pelo Prof. Armando Câmara na sessão solene do Apostolado da Oração,
em São Leopoldo, na festa do Sagrado Coração.
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