Temas religiosos


FREI EPHREM1

 

Padre Ephrem:

Só o silêncio, um silêncio orante, tecido de adoração e de conformidade com os desígnios de Deus, seria adequado e justo nesta hora; homenagem proporcionada à silenciosa e oculta grandeza de vossa vida.

É humano, porém, que, sofrendo, choremos, e a palavra é, muita vez, .como neste instante, um gemer incoercível.

Padre Ephrem: Tudo evidencia que só Deus é necessário. Mas, o santo é uma tão vigorosa afirmação da presença de Deus entre os homens, uma revelação tão dominadora da realidade do espírito, uma sugestão tão enérgica sobre a imortalidade dos valores morais, que se nos afigura estranho, paradoxal e quase absurdo verificar sua morte - registrar que emudeceu sua boca oracular, que dizia palavras de vida eterna; que não mais escutam seus ouvidos as súplicas de nossa indigência, os apelos de nossas angústias morais; que estão inertes e impotentes essas mãos ungidas que traçavam sobre nossa fronte o sinal da redenção e da paz, mãos que traziam até nossa miséria momentos de Absoluto, no mistério da oferenda eucarística; que estão paralisados esses pés de Bom Pastor que, através de estradas lamacentas e sombrias, não se fatigavam nunca, na busca das ovelhas desgarradas; que não mais habita esse templo do Espírito Santo, que é o corpo macerado do asceta, a imagem fiel de Deus, que é a alma do justo.

Quase tanto como pensar, absurdamente, num atestado de óbito de Deus, repugna verificar a morte de um santo. E Cristo parece morrer na morte de seus eleitos, pois, neles, na sua carne redimida, ele continua, através do tempo, sua hipóstase com a enferma natureza humana.

Padre Ephrem: Integráveis, tão substancialmente, nosso uni­verso moral, nosso mundo interior, estáveis tão vinculado à existência das vitais certezas cristãs de nosso espírito, à história de nossas almas, aos seus episódios sombrios ou luminosos; vossa caridade de apóstolo havia penetrado, tão intimamente, o mistério do nosso próprio eu; estáveis tão presente em nosso modo de ver as coisas e os homens, de sentir a paisagem dos seres e das almas, que, nesta hora em que a piedade nos força a encerrar, sem esperança, num esquife, o semeador de esperanças, e a levar para a cidade dos mortos, o portador magnífico da vida eterna, nossos corações espantam-se, estranham que a morte, ferindo-vos, não tenha ferido, também, a natureza, as coisas e os seres humanos, que vosso espírito vivificava e transfigurava.

Vossa presença foi sempre, em nossa vida, uma força transfiguradora: nas horas de alegria, para dar-lhes um acento que não vinha nem da terra, nem da carne; nos transes de dor, para transformá-los em alvoradas de esperanças, para neles abrir clareiras que apontavam para o céu.

Vós, Padre Ephrem, Vós o doador inexaurível das únicas consolações necessárias; Vós que éreis o bálsamo das dores de toda uma multidão de almas gementes e doridas, que direis, agora, para nos consolar por vossa morte? Como nos consolareis da dor que nos causais?

Antecipastes as palavras pacificadoras que queríamos ouvir neste instante em que sangram nossas almas, o sangue branco das lágrimas. Elas saem do fundo luminoso da vossa vida heróica de imita­dor do Cristo; elas não deixam de ser ouvidas por que vossos lábios de missionário estão fechados pela rigidez cadavérica; elas ressoam como aleluias em nossas almas: Pita mutatur, non tollitur.

                            Porque choramos, então? Não choramos como os que não têm esperança. Nosso soluço emerge de um amor e traduz uma fé. Choramos vossa morte porque amamos o Cristo que vivia em vós e pelo qual vivíeis. Choramos a perda de uma vida que era uma das mais sugestivas revelações da realidade do reino de Deus, da ordem invisível e sobrenatural, da existência do Senhor do céu e da ter­ra. Choramos o Cristo que nos visitava em vós; choramos o Cristo que, em vós, nos redimia, choramos o Cristo que, através de vós, nos curava de misérias ocultas, nos restituía a paz do perdão, a alegria de viver.

Padre Ephrem: Deus está visível, o Cristo está tangível nos seus santos, nos seus místicos e ascetas. Perdendo-vos, perdemos uma das nossas mais profundas experiências do divino, uma das mais suaves e luminosas aparições do Cristo em nossa vida.

Padre Ephrem: Ao entregarmos à irmã terra vosso corpo de asceta, parece que vamos enterrar um pouco de nós mesmos; a melhor parte de nós mesmos. Enterramo-vos numa hora quase vesperal de um dia do Senhor, dia de repouso, dia dominical.

E fechastes vossas pálpebras para o sono da morte, no crepúsculo de um sábado, na hora em que, após uma semana de rude lidar, regressavam ao lar, franciscanamente, humildes e pobres, com o salário ganho em luta áspera, os operários da cidade terrena.

Operário da cidade de Deus, lavrador na vinha do Senhor, regressastes à casa do Pai, na tarde da vida, após uma farta semeadura da semente evangélica sobre terras áridas e fecundas, sobre as urzes do caminho e os pedregulhos das estradas.

E ao Senhor da seara das almas, aprouve dar-vos o vosso salário, e deu-se-vos, pela morte, como vos havia prometido na primavera de vossa vocação religiosa - Ero merces tua - Eu serei a tua recompensa.

Estáveis maduro para o céu. Tínheis atingido a plenitude de vossa misteriosa e esplêndida vocação. E despedistes-vos da vida em estilo franciscano: afirmando-lhe o valor positivo Até vossos últimos instantes de consciência, irradiastes entre os homens energias morais, ensinastes a santa alegria dos filhos de Deus, e tínheis, cantando no coração, as estrofes do Cântico do Sol - afirmação triunfal do magnífico dom da vida.

Bendissestes, certamente, na penumbra de vossa subconsciência de agonizante, como o seráfico poeta-trovador de Assis, a irmã morte:

 

"Louvado sejas, ó bom Senhor,

Pela irmã morte corporal;

À qual nenhum ser vivo se pode furtar.

Bem-aventurados os que fazem a tua santa Vontade,

Pois, a morte segunda não lhes faz nenhum mal".

 

Padre Ephrem: Nós vos agradecemos a esmola dessa emocionante e patética tradução literal dos Evangelhos, que foi vossa vida: o terdes, com docilidade heróica, vos abandonado à invasão da Caridade, para que ela, através de vós, visitasse nossa miséria e redimisse nossas almas; o terdes sido, para nós, um místico caminho, através do qual nos era fácil e bom ir ao encontro do Pai que está nos Céus – e por onde descia até a escuridão de nossa vida, a Luz do Mundo, o Cristo que é Deus.

Dai-nos, agora, a esmola derradeira: intercedei pelas almas que deixastes órfãs, vós, o solitário, que acompanhastes muitos; vós, o só, que consolastes tantos!

 



1 Oração fúnebre para o capuchinho Frei Ephrem de Bellevaux, em 11.03.1945.