Temas religiosos


CONTEMPLAÇÃO1

 

Dentre as atitudes cristãs, a contemplação é das que mais ferem a sensibilidade das chamadas inteligências práticas, realistas e positivas.

Colocai, no ângulo visual desses espíritos, o perfil psicológico dessa genial contemplativa que foi Teresa de Lisieux. Eles, que não vêem o mistério difuso, em toda a expressão do ser, que se esconde atrás de cada fenômeno, e que com sarcasmo cruel se instala na própria razão que quer ver, e tudo tenta explicar, estranharão, no entanto, essa forma de vida que se lhes afigura misteriosa e anormal. A vida de oração, de silêncio, de renúncias, de amorosa contemplação das realidades invisíveis e divinas, afigura-se a muitos como antinatural, como um paradoxo biológico, um caso de patologia nervosa: ela estancaria as fontes da vida humana, deformaria suas mais belas expressões e profundas exigências, enfim, desvalorizaria o homem.

Em vão observareis que, ao contrário, o Cristianismo afirma e reconhece o valor positivo da vida, postula o dever de superarmos, com a graça, a ordem natural do ser, enriquecermos nossa existência frágil e efêmera, integrando-a no plano das realidades sobrenaturais.

Em vão direis que, na lógica dos princípios, a vida contemplativa é a racional permuta do inferior pelo superior, do menos pelo mais, do pior pelo melhor, da vida elementar pela vida perfeita e plena.

Em vão advertireis que a contemplação dos ascetas, com seu imenso conteúdo de renúncias, não possui, tão somente, beleza moral, forte expressão de senso comum, alto coeficiente do valor estético, mas, ainda, uma forte dose de sadio utilitarismo.

Em vão provareis que o Cristianismo definiu a verdadeira função da renúncia na economia da vida, dando-nos a forma de conjugação do irreprimível desejo de viver com o espírito de abnegação, e ensinando-nos que a renúncia é, enfim, a busca de uma plenitude, de uma vida eterna e total: "De que serve ganhares o universo, se vens a perder tua alma?"

Em vão direis tudo isso.

Falareis uma linguagem ininteligível, pois a ascética "não é coisa de comer", o Evangelho nada diz sobre os valores cambiais, nada ensina sobre a lei da oferta e da procura; a contemplação nada produz, economicamente, e a renúncia pode, até, provocar crises na indústria fabril!

Essa incompreensão da vida orante, da atitude contemplativa caracterizará um estado de espírito - a amnésia do Evangelho, a nostalgia dos cemitérios greco-romanos?

Não; ela denuncia algo mais grave.

No paganismo, havia um pouco mais de nobreza intelectual, uma melhor compreensão da beleza de uma existência de contemplação amorosa de Deus: Lede esta página magnífica:

"Se possuíssemos o espírito justo, que deveríamos fazer, to­dos, em comum, e, cada um, em particular, senão glorificar a Deus, cantar seus louvores e dirigir-lhe ações de graças? Sulcando a terra, trabalhando, fazendo nossas refeições, cantemos sempre a glória de Deus. E por que vós, o grande número, sois cegos, não será necessário que exista alguém, que realize essa divina tarefa e, por todos, glorifique a Divindade? Que posso eu fazer, eu, velho e enfermo, senão cantar o meu Deus? Se eu fosse um rouxinol, realizaria o destino de um rouxinol; se cisne, o de um cisne! Sou um ser racional: meu destino é glorificar o Senhor! Eis minha vocação, e eu a cumprirei. É uma vocação a que não trairei jamais: e eu vos convido, a todos, a cantar comigo!"

Quem escreveu este magnífico poema filosófico e teológico? O autor do Cântico do Sol? Talvez, a genial doutora de Ávila? Será seu autor Kempis ou Tomás de Aquino, ou Dante?

Devemo-lo ao filósofo escravo, a um romano pagão, a Epicteto.

A incompreensão do valor evangélico e racional da vida contemplativa, de sua grandeza espiritual e, até, de seu valor social, é um sintoma que denuncia, não apenas a mediocridade moral de certas al­mas, mas, principalmente, sua incapacidade mental para ver esse mundo maravilhoso, em que reina o milagre permanente da vida, esse mundo que Chesterton denominou de "País das Fadas", e que é, exatamente, o mundo real, o mundo em que todos nascemos e vivemos, e que, para honra da espécie humana, não é apenas um lugar onde se come, nem uma oficina onde se produz, mas, ainda, uma paisagem que se contempla, uma beleza que se admira, um mistério que compreende e um templo onde se adora.

 

 



1 Publicado no Jornal do Dia, em 16.02.1947.