Temas religiosos


"PRAESTET FIDES SUPPLEMENTUM SENSUUM DEFECTUI”1

 

Supra a fé a indigência de nossos sentidos, face às ocultas maravilhas do poder e do amor de Deus que aqui temos sob nossos olhos de batizados. Agucemos nosso senso do invisível que, só ele, dá sentido e valor às realidades materiais e visíveis.

Moisés, um dia, diante da sarça ardente que lhe revelava a divina presença, arrancou, impetuosamente, as sandálias, vendo que pisava terra sagrada - Deus estava ali!

Se o frêmito de uma forte emoção não crispa nossa sensibilidade cristã, se não experimentamos, neste instante, como o profeta, um sagrado terror diante do Senhor do céu e da terra, que nos visita na figura humana e humilde de um seu apóstolo, tomemos, ao menos, consciência religiosa da oculta significação do ato que testemunha­mos.

Quem recebemos, aqui, no pórtico desta catedral? Quem bate às portas brônzeas desta cripta, para entrar até ao altar de Deus? Acolhemos, em verdade, o Cristo, o Filho de Deus vivo, que vem até nós, na figura do pastor que elegeu, para guardar nossas almas para a vida eterna. Bendito seja, pois, o que vem em nome do Senhor!

O olhar da fé transfigura a prosaica aparência, humana e material, desse espetáculo que contemplamos: sentimos todos a emoção de uma divina presença aqui. É que soam, aos nossos ouvidos, palavras que foram ditas há dois mil anos: "Quem vos recebe, a mim recebe, e quem me recebe, acolhe aquele que me enviou". Esta Diocese, que recepciona seu Bispo, nele acolhe, pois, a Cristo e, com este, ao Pai que está nos céus e, ainda pelo Cristo recebe o Espírito Santo, a alma da Igreja universal.

E, assim, conforme a verdade revelada, Dom Vicente Scherer vem a nós em nome do Padre, do Filho e do Espírito Santo.

Esta é a origem da autoridade de que é portador. Este é o título do sobre-humano poder de que está investido.

Mas, não experimentemos um religioso pavor, diante dessa onipotência de Deus que nos visita. Vivemos no regime da redenção e do Evangelho, no regime da graça e da caridade.

Na realística e plástica expressão de são Paulo, diríamos que assistimos, neste momento a um místico colóquio nupcial. Uma esposa mística - esta diocese, recebe seu bispo, aquele que será, desde agora, o pai, o gerador espiritual de todas as almas que, nela, em seu seio maternal e santo, hão de nascer para a graça e para o céu.

Será um devaneio poético isto que vos digo? Mórbido misticismo expressará esta imagem de São Paulo sobre as núpcias de Cristo com sua Igreja, do bispo com sua diocese? Se pensais assim, então, não sois batizados. Trocastes, já, vossa primogenitura de filhos de Deus pelo prato de lentilhas do neopaganismo que, aliás, vale tanto quanto outro que jaz, há muitos séculos, no silêncio dos cemitérios greco-romanos. Afastai de vós essa dúvida, repetindo esses versos imortais do católico Shakespeare, dedicados aos incréus de seu século:

 

"Muita coisa há no céu,

Muita na terra,

Que ignora tua vã filosofia!"

 

Essa significação, teológica e mística, do ato que presencia­mos, o distancia, infinitamente de uma banal cerimônia de investidura administrativa e política. Entre ambos, existe a distância que vai do céu à terra, da natureza à graça, do poder de Deus ao poder dos homens, do governo espiritual ao governo secular.

Face a nós está alguém que não elegemos; está um eleito do Senhor, um filho de sua dileção. E o poder que lhe foi comunicado, pela onipotência de Deus, esse eleito do Cristo o recebeu, tão somente, porque é pastor e para que seja pastor. Foi para que amasse os homens, ao ponto de imolar-se pelas ovelhas a quem, em nome de Deus, há de gerar para a vida eterna, foi para que defendesse essa vida divina de seu rebanho, que Deus o investiu de poderes para governar a Igreja, o reino das almas imortais.

Que magnífica mensagem, dirigida a todos os homens, esta que se encerra nas cerimônias litúrgicas que hoje se desdobraram sob o encantamento de nossos olhos de cristãos. Se o mundo, que não crê, a recebesse e realizasse, seria modificada, então, a face da terra. Ela nos ensina que o Onipotente é Caridade, que Deus é Amor. Ou, como cantou, genialmente, Dante, na Divina Comédia: "É o amor que move o sol e as outras estrelas".

Se essa mensagem do Evangelho, que se repete, desde há dois mil anos, e de que é emocionante ilustração o ato a que assistimos, fosse ouvida e concretizada pelos Césares contemporâneos, que põem o poder a serviço do ódio entre as classes, entre as raças e entre as nações, então, os homens, enfim, conheceriam a paz, a paz de Deus, que eles ignoram e não nos podem dar.

É para dar às almas essa paz, que é a grande esmola que suplica o mundo atual, é para, ordenando as consciências, pelo perdão e pela graça, dar aos homens de boa vontade a doçura e alegria de vi­ver, ofertar-lhes a tranqüilidade na ordem, a serena posse dos bens desta vida e dos tesouros da vida eterna, é, enfim, para realizar essa divina e humaníssima missão que até nós veio e aqui está nosso pastor. Essa é sua vocação, essa é a vocação de todos os bispos que, dirigindo a Igreja, governam o mundo, lutando pelo reino de Deus, preservam a grandeza do reino de César, e, vivendo para o céu, iluminam e purificam a terra.

Essas células do Corpo Místico de Cristo, essas províncias do Reino de Deus, que são as dioceses, em verdade, são lares, doces lares de todos os seres redimidos, que neles sentem, na intimidade e no calor de sua vida, a alegria da fidelidade ao amor de Deus e à sua lei; são universidades que ensinam as palavras de vida eterna, a sabedoria do único necessário, e onde cada paróquia é uma escola, cada púlpito uma cátedra e cada sacerdote um professor; são hospitais de almas, de almas que, cansadas de si mesmas, exaustas de uma existência, sem Deus e sem ideal, buscam, enfim, o perdão, a cura de suas chagas interiores, a paz para suas consciências, batidas pela dúvida e pelo desespero; são focos de civilização e de cultura, de paz social, de disciplina dos costumes, de educação política e democrática e de devota­mento ao bem comum.

E, fato surpreendente! - essas parcelas da Igreja universal, es­sas dioceses, que foram criadas para salvar as almas para o céu, são, no entanto, o sal e a luz do reino deste mundo, forças que preservam a ordem e a paz, promovem o progresso e inspiram a cultura e a civilização universais. É magnífica a galeria de seus chefes - os bispos; nela há figuras que foram bênçãos para os séculos em que viveram e para as gerações que dirigiram; super-homens, autênticos heróis, líderes de salvadores movimentos espirituais, políticos, econômicos e sociais, chefes de reivindicações populares, de liberdade, de justiça e de fraternidade entre os homens.

Nada do que é humano, sadiamente humano, deixou de ser, ao toque de suas mãos ungidas, valorizado e transfigurado. E, quando as circunstâncias o exigiam, eles souberam, varonilmente, enfrentar os Césares, os déspotas, todos os salteadores das liberdades humanas, individuais e políticas. É de ontem o registro telegráfico que nos comunicou, laconicamente, ter pago, com a vida, seu devotamento à Igreja, à liberdade e à democracia Monsenhor Stepinac, o bispo mártir da Iugoslávia, trucidado pelo pelotão de fuzilamento dos carniceiros soviéticos do marechal Tito.

Excia. Revma. Dom Vicente Scherer, o laicato de sua arqui­diocese, como era de estilo na Igreja primitiva; elegê-lo-ia seu bispo, se não fosse, hoje, essa eleição da competência do Soberano Pontífice. Seus diocesanos não teriam errado na escolha de seu pastor: di-lo o Espírito Santo que vos elegeu, entre mil, para o governo de uma arquidiocese, em cuja direção passaram, já, figuras exemplares de apóstolos, e onde - estamos certos, V. Excia. Revma. realizará, para maior glória da Igreja e para o bem da Pátria, uma fecunda obra de evangelização das almas, de ordenação social e de redenção do mundo.

 

 



1 Saudação a D. Vicente Scherer no dia de sua tomada de posse como arcebispo de Porto Alegre, em 1947.